Têm oportunidades e oportunidades na trajetória de um ser humano. O que as separa é que a primeira metade delas pode ser perdida; a outra precisa ser aproveitada, por talvez jamais se repetir. Vale o mesmo para a vida pública.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem, em seu mandato, a prerrogativa – que se transmuta em oportunidades, ambas este ano – de fazer duas escolhas para o Supremo Tribunal Federal (STF).

A primeira já desperdiçou. Ao optar por Cristiano Zanin para a vaga aberta por Ricardo Lewandowski, o petista abriu mão de abrilhantar sua própria biografia e, muito mais do que isso, traçar novo rumo também para uma nova forma de fazer justiça, literalmente.

Falemos antes da primeira parte, talvez a menos importante. É sobre Lula não ter se mostrado com a grandeza esperada de um presidente reconduzido da forma que foi, depois de tudo que passou, inclusive cadeia, por causa das ações da Operação Lava Jato. Não deixa de ser uma visão romântica, claro, mas foi também nessa perspectiva que o PT se consolidou politicamente com relevância. Ao escolher o próprio advogado para assumir uma vaga na Suprema Corte do País, ele quebrou um recorde negativo, fazendo uma escolha inacreditavelmente inédita para alguém de um partido que surgiu para arrebentar com o “status quo” da moral patrimonialista do poder.

Nem o execrado Jair Bolsonaro (PL) ousou tanto – talvez porque o equivalente fosse indicar o aloprado Frederick Wassef ao cargo. O máximo que o ex-presidente prometeu e cumpriu foi alguém “terrivelmente evangélico” para o STF, o que se configurou no então titular da Advocacia-Geral da União (AGU), o também pastor presbiteriano André Mendonça.

Assim como o outro antecessor seu, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), havia feito com Gilmar Mendes, em 2002, Lula também escolheu seu AGU, Dias Toffoli, em 2009. Antes, Fernando Collor, em 1990, indicara o primo, Marco Aurélio Mello.

Mas indicar o próprio advogado particular é uma inovação lulista que, realmente, abre um precedente temerário. “Entrando” na cabeça do presidente, não é possível admitir que ele não tenha entendido que havia outros nomes pelo menos tão competentes quanto o de Zanin e que gerariam bem menos desgastes ao governo. Todos os analistas políticos tinham em sua conta que o petista optaria por alguém de sua confiança estrita, mas, meses atrás, a maioria imaginava que deixar o próprio advogado entre os candidatos seria apenas um balão de ensaio, algo como colocar o bode na sala para que, quando o retirasse, qualquer situação ficasse mais palatável.

Mas não: Lula realmente queria era Zanin lá. Por quê? O palpite desta coluna é de que menos para se sentir protegido do que para demonstrar poder e, sim, tripudiar em cima dos que o levaram à prisão, especialmente o hoje senador Sergio Moro (UB-PR). É sempre importante lembrar que, nos planos ambiciosos do ex-juiz, sua toga foi abandonada para uma curta temporada no Ministério da Justiça rumo ao outro lado da Praça dos Três Poderes, indicado por aquele que ajudou a eleger após prender o primeiro colocado nas pesquisas de intenção de voto.

Não deu certo para Moro: sem o menor tato para política – como se pôde atestar novamente depois, na desastrada pré-campanha a presidente –, ele foi destratado por Bolsonaro até se demitir, em maio de 2020. Ele e o ex-procurador da República, ex-coordenador da Lava Jato e também agora ex-deputado Deltan Dallagnol contemplarão Cristiano Zanin, com quem dividiram salas de audiência em lugares opostos, ser empossado ministro do STF. A cereja nesse bolo é que o senador Moro vai sabatiná-lo, em um confronto que pede tempo reservado na agenda e pipocas no colo.

E o nome de Zanin não corre o menor risco de ser rejeitado pelo Senado, algo que só ocorreu no século 19, no governo do segundo presidente da República, o marechal Floriano Peixoto. Além de tudo, o futuro ministro já é benquisto pelos iminentes colegas, tendo sido, inclusive, elogiado por vários deles.

E aqui este texto chega a sua segunda parte, pela qual soa ainda mais lamentável a opção por Zanin, pela mensagem que poderia ter sido enviada à sociedade por Lula e não mais será.

Lula não quis escutar os apelos para escolher uma mulher negra para o Supremo

A escolha de alguém para a Corte máxima de um país é recheada de simbolismos, ainda que seja mais do mesmo, como o que está em discussão. No caso, o que haverá é a repetição do que sempre existiu: com raríssimas exceções, o STF é a casa dos homens brancos e de famílias tradicionais do Sul-Sudeste brasileiro. Mulheres, negros e pessoas nascidas e crescidas fora do eixo econômico nacional tendem a ver a Justiça por ângulos menos estritos e isso, por si, já seria um grande ganho.

Voltando meses atrás, qual era a mensagem passada com a posse de Lula, em que o novo velho presidente, subindo a rampa de mãos dadas com as minorias, portava o sentimento de desagravo por tudo o que elas haviam sofrido durante quatro anos sem qualquer política afirmativa? Era a de que, ao vestir aquela faixa presidencial, os simbolismos estariam livres para se tornar concretudes.

Lula não quis escutar os apelos para escolher uma mulher negra para o Supremo. Seria a oportunidade de dar à Casa uma visão nova e única, ainda que postos todos os dados preliminares esperados – claro que seria uma progressista, com visões de mundo que não contrariariam as do presidente e de seus aliados. Legítimo: afinal, ninguém imaginaria algo diferente, como não esperariam que Bolsonaro escolhesse alguém nem mesmo de centro-esquerda. Se a escolha para o Judiciário é feita por políticos, não tem como não ser uma escolha política – parece algo bem óbvio.

Desde sua criação, após a independência do Brasil, ainda com o nome de Supremo Tribunal de Justiça, a mais alta instância do Judiciário só teve três mulheres em seus quadros. A primeira foi Ellen Gracie, indicada por FHC em 2000. Ou seja, mulheres passaram mais de um século e meio sem presença na Corte. As outras duas ainda estão lá: são Cármen Lúcia e Rosa Weber, que havia assumido a cadeira deixada por Ellen.

Rosa é a próxima a deixar o STF. Vai completar 75 anos em outubro e a saída por idade é compulsória. Com a escolha por Cristiano Zanin, Lula não terá mais como aumentar de duas para três mulheres a composição do STF. Esse seria o seu legado: mudar a porcentagem da presença da mulher em um meio que precisa cada vez mais do olhar menos enviesado de homens, ainda mais brancos.

Pelo menos, imagina-se, ninguém espera que Lula “inove” negativamente, reduzindo a uma única cadeira a representação feminina no Supremo. Escolher um homem para o lugar de Rosa Weber seria brincar com coisa muito séria.

Não obstante que faça um excelente governo, que a economia bombe e que eleja seu sucessor ou até mesmo se reconduza, e por melhor que seja o nome da pessoa escolhida quando outubro chegar, Lula já se reduziu a um estadista menor do que poderia ter sido, ao indicar seu advogado particular, o competente Cristiano Zanin. Foi uma oportunidade única que ele, como presidente, deixou passar, preferindo saciar a própria vaidade. Lamentável para quem pensa em um Brasil diferente.