O Cerrado morre pelo olhar que lhe falta da política
17 dezembro 2023 às 00h01
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1) “Há uma imensa disparidade na preocupação da sociedade e dos tomadores de decisão sobre a proteção da Amazônia e do Cerrado. O que está se passando no Cerrado jamais seria admitido pela sociedade para a Amazônia.”
2) “O bioma Cerrado acabou se tornando um bioma de sacrifício em prol do desenvolvimento do Produto Interno Bruto do País, com enormes áreas de expansão do agronegócio para exportação de commodities.”
3) “Ao degradar o Cerrado, estamos degradando o nosso futuro, pois faltará água. Estudos já mostram isso e um em especial mostra que já perdemos 15% da vazão dos rios do Cerrado e que haverá uma perda de 34% da vazão de água no Cerrado até 2050.”
Todas as três frases, cada uma com graves advertências, são da mesma pessoa: Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Uma cientista – tem mestrado em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB) – e também militante pela causa do Cerrado. Os excertos são de entrevista publicada pelo Correio Braziliense na semana passada.
Esta coluna Conexão não é de ciência nem de meio ambiente, mas, sim, de política. O foco deste artigo não é, portanto, nada técnico, mas sim de análise dos fatores que envolvem o poder e que levam – ou pelo menos, estão levando – à destruição silenciosa de um bioma tão importante quando a Amazônia para um País continental como o Brasil. Para fazer esse trabalho, vamos tomar cada uma das três aspas destacadas no início do texto.
Partindo do item 1): vamos ser diretos e falar francamente? O Cerrado e a Caatinga são os patinhos feios do meio ambiente no Brasil. Ninguém liga para esse “mato”. E não é puro achismo: já é a partir da própria Constituição que ocorre a discriminação. A Carta de 88 colocou Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Serra do Mar, Pantanal e Zona Costeira como como biomas de patrimônio nacional, um status que lhes dá mais proteção e, entre outras coisas, possibilidade de obtenção de recursos extras para sua preservação. Desde 1995, pelo menos, se tenta sanar a desigualdade – a primeira iniciativa, com uma proposta de emenda à Constituição (PEC), foi do então deputado federal goiano Pedro Wilson (PT). Já se vão 28 anos e a lacuna persiste.
A área de vegetação nativa de Cerrado ocupa um quarto do território brasileiro. Com a Caatinga, isso chega a mais de um terço. Ao contrário da Amazônia Legal – que ocupa quase 60% do País –, os dois biomas se encontram em áreas cada vez mais povoadas. Isso, porém, não significa maior preocupação com o bioma, ao contrário: o povoamento tem significado avanço da fronteira agrícola, a qual foi turbinada com outro incremento – o tecnológico, no desenvolvimento de sementes de alta qualidade e adaptabilidade para solos tido antes como “indomáveis”. Enquanto “ninguém liga” para o correntão que devasta ipês, jatobás, mulungus, copaíbas e tantas outras árvores tortuosas das savanas do Planalto Central, os olhos do mundo se voltam para deter as queimadas na Floresta Amazônica e no Pantanal – o que é necessário e não tem nada de ilegítimo, diga-se.
Se não é uma falácia, é uma meia verdade: o agro produzir para pôr comida no prato do brasileiro
Esse “mato” do Centro-Oeste tem uma das maiores diversidades do planeta: há um número estimado de 6 mil espécies de árvores e 800 de aves no Cerrado – isso sem falar no restante da fauna e da flora.
Ligando o ponto 1) ao 2): Estados como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul devem muito do crescimento de seu PIB ao agronegócio, obviamente. Mas a roda da prosperidade indica que os magnatas do agro – e são muitos, e cada vez mais ricos –, se fossem gratos, deveriam no mínimo pagar um dízimo à Embrapa ou à pesquisa nacional em geral, pois foi pela ciência financiada pelo Estado que se desenvolveram tantas monoculturas, em especial a soja. Hoje sabe-se que seria possível produzir ainda mais sem que fosse necessário derrubar mais um pau-ferro sequer do Cerrado.
Aqui é preciso ser claro sobre um aspecto que, se não é uma falácia, é uma meia verdade: o agro realmente produz para pôr comida no prato do brasileiro? Ora, seu foco é o mercado internacional de commodities e o destino de enorme parte da safra é a China. Ou seja, no fim de toda a cadeia, o dinheiro investido em pesquisas bancadas pelo Estado – portanto, pagas por toda a população – está promovendo a destruição de um bioma, bem de todos, e diminuindo custos e gerando riquezas para um nicho proporcionalmente muito pequeno e privilegiado de famílias que fazem fortuna negociando sua produção no exterior. O resultado é que o Estado se vangloria de um PIB que cresce para beneficiar uma elite e, no fim, concentra ainda mais renda. Como País, quantas vezes perdemos – ambientalmente, socialmente, eticamente –, apenas com o que foi relatado neste parágrafo?
A questão é que o prejuízo não cessa por aí. Então, chegamos à declaração número 3) de Isabel Figueiredo ao “Correio”: tudo que está sendo produzido de riquezas agora, por meio do rolo compressor em cima de vegetação nativa e de toda a cadeia alimentar, vai se voltar, cedo ou tarde – pelo andar da carruagem, mais cedo do que tarde –, contra todos, inclusive os que estão agora nadando em agrodólares. Porque não há tecnologia que substitua a água, assim como não há tecnologia humana que produza água. A única engenhoca capaz de fazer brotar água no solo é a mesma que insistem em derrubar para abrir espaço para gado e soja: é a árvore torta e feia do Cerrado, a mesma que, por debaixo da terra, tem raízes tão sofisticadas que podem levar a sagrada água das nuvens que vêm da Amazônia para os grandes aquíferos no mais profundo da terra cerratense: o Urucuia, o Guarani e o Bambuí.
Em vista de seu tamanho e sua importância, o Cerrado ainda tem pouquíssimos defensores. Principalmente na classe política. Basta dar uma olhada em quem manda no Congresso e o que aprovam quando se trata de agricultura e meio ambiente. Basta ver como foi a votação na Câmara e no Senado para impor o inconstitucional e bizarro marco temporal das terras indígenas. A boiada do antiministro Ricardo Salles, no desgoverno passado, estourou a responsabilidade ambiental por todos os lados e atrasou a urgente necessidade de salvar o que resta.
Urge que os governos ajam. Não só o federal – e talvez ele menos que os de algumas unidades federativas, como Goiás, que vive de braços e abraços com o agro num romance astral. É preciso pensar em estratégias de não só preservar o que se tem, mas de recuperar o que der do Cerrado, para evitar dissabores para a própria economia já no médio prazo. Preservar o Cerrado, ora, é preservar o próprio negócio dos senhores ruralistas.