Êxito do início do governo Lula mostra que a direita tem se reinventar
23 julho 2023 às 00h00
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Não existe governo ruim, você é que bebe pouco. A frase é a adaptação de uma frase ultramachista que eu, ainda criança, vi nas costas de uma camiseta de um rapaz que, no alambrado, acompanhava o futebol no campo de terra do bairro. Tive de chegar à adolescência para entender o que aquilo queria dizer – e que, hoje, para mim pelo menos, é indizível.
No início do mês, mais precisamente em 6 de julho, o ex-presidente Jair Bolsonaro, hoje garoto-propaganda (bem) remunerado de seu partido, o PL, esteve com os deputados federais da sigla em uma reunião à qual o presidente de fato da agremiação, Valdemar Costa Neto, havia convidado o governador Tarcísio de Freitas, que é do Republicanos. A discussão era sobre a votação da reforma tributária, que ocorreria na noite daquela terça-feira.
Tarcísio já havia se convencido da necessidade de aprovação do texto-base – após mudanças que foram muito favoráveis ao Estado que governa, frise-se. Tentou dialogar com os parlamentares presentes, para que prezassem o bom senso, mas foi interrompido várias vezes e, por fim, ouviu de seu ex-chefe: “Pessoal, se o PL estiver unido, não aprova nada”, disse Bolsonaro aos presentes.
O ex-presidente achava que, os votos do partido impediriam a aprovação da matéria, que naquele momento já estava totalmente costurada por Arthur Lira (pP-AL). No começo do dia seguinte, o “mito” via as manchetes dos sites e jornais lhe revelando que perdera duas vezes: a primeira, obviamente, pelo resultado catastrófico para quem queria barrar o sucesso da votação, depois de ele ter se esforçado, inclusive indicando seu “contra” nas suas redes sociais – baseando-se, para resumir, em que seria uma reforma “do PT” e isso já bastava para ser votar “não”; a segunda era ver que um quarto do próprio partido não seguiu sua orientação e apoiou a proposta do governo.
A partir de então houve outras derrocadas para Bolsonaro. A briga do grupo de WhatsApp dos deputados do partido, entre os extremistas e os mais moderados, por conta da votação da reforma tributária, foi só um dos sinais de que algo não vai bem. Outros viriam.
Na semana passada, o empresário Alberto Saraiva, bolsonarista desde 2018, disse textualmente, em entrevista ao portal UOL, que “não apoiaria” o ex-presidente de novo e que “tem 500 coisas para justificar isso”. Mais: que “Haddad [Fernando Haddad, ministro da Fazenda] é 10” e que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tem “muita sorte”, mas também “competência”.
No mesmo dia, repercutia na internet um vídeo do líder religioso Jackson Vilar, gravado em um supermercado. A peça era uma pancada de críticas ao ex-presidente e, principalmente, a seu ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Vilar é ninguém menos do responsável pela organização das motociatas do evento Acelera para Cristo, que colocou milhares de motos a serviço do coronavírus durante a pandemia, Bolsonaro à frente.
Em meio às gôndolas, Vilar comparava os preços atuais dos alimentos com o que se havia no governo de quem tinha apoiado. “Isso aqui custava quase ‘15 paus’’ hoje está a R$ 5”, segurando um litro de óleo de soja. E, dirigindo-se, diregamente: “Viu, Paulo Guedes, pilantra, por que no seu governo você não conseguia baixar essa p*rra?”. Da mesma forma fez na seção de carnes, mostrando o valor do quilo do contrafilé: R$ 30,69. E completou: “Eu peguei logo três peças”. Em meio a isso, com o vídeo editado, aparecem as previsões de Guedes – dadas em uma entrevista para o canal Primocast em março de 2021 – sobre o que aconteceria com o Brasil se tomasse o rumo errado na economia: “Para virar a Argentina, seis meses. Para virar a Venezuela, um ano e meio. Se fizer errado, vai rápido”, declarou, no bate-papo. O link direto é com um eventual governo petista, mas justiça seja feita: na conversa, de mais de dois anos atrás, pelo menos nesse momento ele não citava nem Lula nem o PT, embora isso pudesse ser inferido por uma simples contextualização.
O fato é que, com pouco mais de seis meses de governo, Lula e seus auxiliares, Haddad no comando, estão fazendo um governo muito longe de qualquer previsão apocalíptica. Ao mesmo tempo, parlamentares que se elegeram apoiados na figura de Bolsonaro estão se distanciando. Empresários e pastores que foram seus cabos eleitorais também se afastam. O que está acontecendo, afinal? A direita não seria “resistência”?
A verdade é que, refém de Bolsonaro, a direita se radicalizou e se desgovernou. Parodiando outro adágio, desta vez sobre ricos, o “mito” é um político tão ruim que só tem voto. Ganhou a eleição, mas o destino de um país não é uma gincana, que se encerra na própria festa. Após a vitória nas urnas, era preciso governar, coisa que Jair nunca fez e, mais, nunca pareceu fazer questão nem mesmo de aprender. O resultado é que um quadriênio que já seria muito prejudicado pela pandemia acabou totalmente perdido como Nação porque era preciso defendê-la de seu próprio comandante.
E o mais impressionante é olhar para trás e constatar que pelo menos metade da população estava convicta de estar no rumo certo. O que leva a perguntar ao próprio Bolsonaro qual seria o principal legado de seu governo, questionamento feito a ele em um podcast bolsonarista: “Agora você vê a bandeira do Brasil em todo lugar”, respondeu, então.
Com a inelegibilidade, a direita perde seu referencial para se opor diametralmente ao que Lula representa para a esquerda
É uma resposta no mínimo ruim, mas muito mais do que isso. É como a mulher cobrar do marido a parceria nos cuidados com a casa e ele se sentir orgulhoso por lavar o prato em que comeu.
Com sua inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a direita perde seu referencial para se opor diametralmente ao que Lula representa para a esquerda – mesmo o presidente sendo, no máximo, um social-democrata.
O problema verdadeiro é exatamente este: como estabelecer um projeto alternativo ao que tem – porque realmente tem, e as seguidas aprovações de matérias importantes no Congresso mostram isso – o atual governo, se sua bússola é aquele que foi o presidente mais desorientado dos últimos cem anos?
O problema é que a direita viável para a democracia, hoje, não tem ninguém para lançar. E não se pode negar que o bolsonarismo seja uma grande força mobilizadora. Para mostrar seu cacife, o “mito” fez aceno a Ronaldo Caiado (UB), em recente visita a Goiás. O governador tem pretensões nacionais para 2026 e, político experiente, sabe que Bolsonaro tem o que ele precisa: voto. Em troca, ele serve momentaneamente a que o ex mande um recado velado a Tarcísio de Freitas depois do climão na questão da reforma tributária. O carioca no comando de São Paulo talvez seja o único nome que hoje poderia juntar razoavelmente os moderados da direita aos extremistas, estes no caso de Bolsonaro dar seu amém.
Outro nome seria Michelle Bolsonaro. Mas a ex-primeira-dama lançada diretamente à Presidência teria de enfrentar obstáculos demais, inclusive o ciúme do próprio marido ególatra. E ela também não anda se ajudando. Em um evento do PL Mulher em João Pessoa, Michelle Bolsonaro pediu, como condição para passar o microfone à deputada federal Amália Barros (PL-MT), que a parlamentar tirasse a prótese ocular. “Eu amo vê-la sem prótese, gente”, justificou a mulher de Bolsonaro, para depois colocar o olho postiço da correligionária no próprio bolso. Se quiser sobreviver, a direita não pode dar mais aval para esse tipo de bizarrice. Mas será que a direita já acordou do porre de governo ruim?