Um almirante da mais alta consideração da Marinha do Brasil tentando “quebrar uma” no posto da Receita Federal em um aeroporto, para liberar um mimo de R$ 16,5 milhões destinado à primeira-dama da República. Essa talvez seja a última das imagens acachapantes que o ex-governo deixa impregnadas nas Forças Armadas, como resultado do confuso mas almejado, por Jair Bolsonaro (PL), conluio entre governo e militares.

Em todo seu finado desgoverno, o hoje refugiado palestrante da extrema direita fez o que pôde e um pouco mais para cooptar todas as fardas, de soldados a generais. Tinha uma arma poderosa e sedutora: a caneta presidencial, com a qual nomeou milhares de militares da reserva e da ativa para cargos em Brasília e em todas as unidades federativas, de modo a ocupar postos que, na maioria, antes eram exercidos por civis.

Bolsonaro, em seu imaginário particular, sempre acreditou que poderia se manter no poder se tivesse do seu lado aqueles que retivessem consigo o poder de dissuasão. E aqui não se fala apenas dos que detêm por lei o monopólio da violência, a serviço do Estado – o velho “Leviatã”, como descreveu Thomas Hobbes como solução para que não houvesse uma eterna guerra de todos contra todos no que chamava “estado de natureza”. Abusando de seu apelo popular, o “mito” incitou o “povo” – expressão que, na verdade, sempre foi reduzida àqueles que o apoiavam incondicionalmente – para que se armasse, porque, em um mantra próprio que criou, “povo armado jamais será escravizado”.

E foi assim que foi “milicianizada” a relação dos civis brasileiros com as armas. Em redes sociais como o Instagram, “patriotas” passaram a destacar em seus perfis sua relação pessoal, por vezes até afetiva, com revólveres pistolas e fuzis, sessões em estandes de tiro e vídeos exaltando a cultura armamentista. Uma cena emblemática nesse sentido é a do empresário idoso que se filmou lambendo o cano de uma espingarda e ordenando que Bolsonaro liderasse um golpe de Estado. Era o mesmo cidadão que já havia ameaçado Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de morte. Tanto fez que acabou preso, em outubro do ano passado.

Esse foi o resumo de um mandato sem rumo de um presidente sem projeto de País, sem postura, sem nada: além de açambarcar as Forças Armadas como se fossem aliadas de seu governo, também tomou posse dos corações e mentes de seus apoiadores, civis ou militares, por meio do discurso militar-religioso.

Enquanto tudo isso acontecia, parecia gritar “eu avisei” o passivo histórico e doloroso da Nação consigo mesma: a falta de acerto de contas com os detratores do período da ditadura. A partir do golpe de 1964, ao desmontar a então incipiente democracia até a eleição indireta de Tancredo Neves no colégio eleitoral de 1985, uma série de arbitrariedades, em diversos graus de gravidade, foi cometida contra cidadãos brasileiros: intimidações, perda de direitos políticos, chantagens, ameaças, torturas, mortes e desaparecimentos. Gravadoras musicais e veículos de comunicação estiveram sob a tutela de um censor, enquanto que, por meio do AI-5, todos tiveram habeas-corpus suspensos e, assim, ficaram sujeitos a serem conduzidos para uma delegacia ou um quartel sem aviso prévio.

A anistia “ampla, geral e irrestrita” foi motivo de alívio e mesmo alegria, em 1979, quando concedida durante o governo do último general-presidente, João Baptista Figueiredo. No fundo, era um “contrato” cuja redação e posterior anuência da sociedade civil também serviria de salvo-conduto para os autores de crimes durante os 21 anos do regime escaparem de punição.

Bolsonaro, na Presidência, coloca o mel na boca dos cidadãos saudosistas do autoritarismo e do formato reacionário da sociedade brasileir

A saída conciliatória para a redemocratização teria seu preço. Deixaria sua marca em uma sombra militar que perpassou todo o período de José Sarney – agravado por ser ele um vice-presidente a assumir o cargo com os votos dados a Tancredo e, como já referido, em uma eleição indireta –, pareceu se amenizar entre os governo de Fernando Collor (1991-1992) e Lula (2003-2010) – e voltou com tudo a partir do governo de Dilma Rousseff (PT), uma presa política torturada pela ditadura e que, ao querer fazer justiça e apurar os malfeitos dos anos de exceção, por meio da Comissão da Verdade, abria involuntariamente a caixa de Pandora dos extremistas. Ora, se tinha havido lá atrás uma anistia que valia para os dois lados, como ousava aquela “comunista” tocar nesse assunto? Ora, ela ousava porque não tinha havido uma paridade entre os dois polos de modo a que o acordo fosse firmado em bases honestas: de um lado, havia agentes públicos torturadores; do outro, exilados por contestar um governo ilegítimo.

Por não ter tratado a questão da ditadura militar como deveria, nem política nem pedagogicamente, cultivou-se a imagem de um período que “não foi tão ruim assim”, em que “não havia corrupção”, quando “o Brasil cresceu”, no qual “as pessoas tinham mais segurança” e que “bastava não andar no caminho errado”. Foi esse tipo de discurso que, tendo sido legitimado pela omissão, fez com que emergisse uma figura diretamente do porão da política como Bolsonaro, conquistando apoio ainda que tivesse sido um “mau militar” – nas palavras do próprio general-presidente Ernesto Geisel, o mesmo que iniciou o processo de abertura.

E Bolsonaro, na Presidência, coloca o mel na boca dos cidadãos saudosistas do autoritarismo e do formato reacionário da sociedade brasileira: está de volta o “patriotismo” (na apropriação das cores nacionais pelo movimento de extrema direita), a “família” (branca e de classe média), um “governo cristão” (o que implica a exclusão/marginalização das demais crenças) e a “ordem” (pela atuação dos militares).

Nesse último aspecto, o que se viu, no entanto, foram quatro anos de fardados trocando os pés pelas mãos em todo o organograma do desgoverno federal. A volta dos militares ao poder se mostrou um fracasso retumbante e, como alertou o hoje senador e então vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão (Republicanos), os tropeços da gestão refletiriam diretamente na reputação das Forças Armadas, tal era a cumplicidade que havia entre as partes.

E escândalos não faltaram: houve sargento pego com quilos e quilos de cocaína em avião da FAB; teve compra suspeita de estoques de leite condensado, comprimidos para disfunção erétil e próteses penianas; militares tiveram envolvimento em ações e omissões na Amazônia. Mas nada que pudesse superar a tragédia anunciada que foi a gestão do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde em meio à pandemia, com o posterior “perdão” dado a ele após participar de um comício de Bolsonaro no Rio ainda como militar da ativa.

Assim, a revelação da intercessão de Bento Albuquerque pelas joias da família Bolsonaro no aeroporto de Guarulhos soa como um réquiem para a gestão cívico-militar que, no fim, serviu como uma reprise, entre a tragédia e as trapalhadas, dos piores momentos dos governos dos generais. Cumpre-se, assim, pelas vias tortas, a revelação do óbvio que não veio pela Comissão da Verdade: militares nunca deveriam ter deixado suas funções de Estado para se arvorarem em chefes de governo. Pior, a última amostra que deixaram foi o maior dos incompetentes – Jair Messias Bolsonaro.