Condenação do “patriota” Aécio Lúcio alerta: a vida não está no WhatsApp

17 setembro 2023 às 00h01

COMPARTILHAR
Aécio estava de férias no início de 2023. Servidor técnico da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) desde 2014, era também síndico do condomínio em que residia, em Diadema, na região do ABCD Paulista. Tinha evidentes preferencias políticas, mas até o dia 8 de janeiro apenas fazia parte do grupo considerável de bolsonaristas radicalizados que não se conformavam com a eleição do adversário político, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
No entanto, incomodado com o resultado das urnas, em vez de aproveitar o período de descanso no trabalho, Aécio resolveu se juntar aos patriotas que saíam de suas casas para viajar até Brasília em um ônibus fretado para um protesto marcado para o domingo seguinte. Nos grupos de WhatsApp, as conversas no estilo “o bicho vai pegar”.
O funcionário público chegou à capital federal ao raiar do dia 7 de janeiro. Acomodou-se em instalações próximas ao quartel do Exército, onde havia mais de dois meses estavam acampados apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), aquele que às vésperas da posse do sucesso, resolveu continuar, na Flórida, seus dias reclusos desde a divulgação dos números finais do segundo turno pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
No começo da tarde do outro dia, então, Aécio se juntava à turba que, escoltada pela Polícia Militar, descia do QG rumo à Esplanada dos Ministérios e, em seguida, para a Praça dos Três Poderes. Sem que as forças de segurança esboçassem reação efetiva, a multidão de patriotas invadiu o Congresso Nacional, o primeiro dos prédios que seriam atacados e depredados. Aquela tarde, nosso personagem foi um dos “patriotas” que, com facilidade, adentrou as dependências do plenário do Senado.
Aécio estava emocionado. Lá de dentro da Casa legislativa, usando uma camiseta com a frase “intervenção militar federal” estampada no peito, não resistiu ao momento e o registrou em vídeo, com um discurso inflamado em que dizia, já descontados os palavrões enfáticos:
— Amigos da Sabesp: quem não acreditou, estamos aqui! Olha onde eu estou: na mesa do presidente [do Senado]! Vai dar certo, não desistam! Saiam às ruas!
Vivia ali uma espécie de catarse de fatos reais, aquilo que, durante os anos em que Bolsonaro instigou sua militância, várias vezes foi esboçado sem que nunca se concretizasse. Aécio representava ali a dupla de caminhoneiros sulistas que em 7 de setembro, como os que estavam ao seu redor em um estacionamento em Brasília, acreditou, por conta de uma mensagem num grupo de WhatsApp, que havia sido decretado estado de sítio e que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) seriam presos. Era fake news.
Representava aquela multidão de bolsonaristas que, dois dias depois do segundo turno das eleições presidenciais, em Porto Alegre (RS), entrou em êxtase celebrando a prisão do ministro do STF e também presidente do TSE, Alexandre de Moraes. Estava compartilhado em um grupo de WhatsApp. Mas, claro, a informação era falsa, novamente.
Representava outros extremistas que, na mesma semana, acampados na porta do Tiro de Guerra, em São Paulo, vibraram com a notícia, lida diretamente no aplicativo WhatsApp, segundo a qual o portal R7 havia acabado de informar “possibilidade de erro grave na eleição…”. Não esperaram nem o comunicador da mensagem, portando um microfone, terminar de ler. No fim, a mensagem de WhatsApp tinha um meme do deputado-humorista Tiririca com os dizeres “É mentira, abestado!”. Mais uma fake news.
Ali, em cima do palco mais importante do Legislativo nacional, Aécio gravava um vídeo para mostrar que era tudo verdade agora, que era ele mesmo, em carne, osso e vestes patrióticas, a abastecer ao vivo seu próprio grupo de WhatsApp. Era um desabafo, acima de tudo, para gritar ao mundo que haviam conseguido, com as próprias mãos, tomar o poder.
Horas depois, Aécio Lúcio Costa Pereira seria preso em flagrante pela Polícia Legislativa. Na mesma semana, por conta do vídeo que divulgou, foi demitido por justa causa de seu emprego público na Sabesp.
Denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), tornou-se, na quinta-feira, 14, o primeiro condenado pelos atos golpistas de 8 de janeiro. Seus crimes? Dano qualificado; deterioração de patrimônio público tombado; abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; e associação criminosa.
Ele foi sentenciado a 17 anos de reclusão, com um placar de 8 a 3 no plenário da Corte a favor da condenação pelos cinco crimes. O relator Alexandre de Moraes estabeleceu a pena total, no que foi acompanhado pela maioria de seus pares, além de 100 dias/multa no valor de um terço de salário mínimo e R$ 30 milhões em danos morais coletivos – essa última parte em rateio solidário com todos os demais condenados.
Diz-se que Aécio, como síndico, servidor ou cidadão, coleciona confusões, seja pessoalmente, seja pelas redes sociais. Parte delas, certamente, se deve a divergências partidário-ideológicas. Nada que não seja tão comum nos dias atuais em que – conforme pesquisa divulgada pelo Datafolha na semana passada – o Brasil continua politicamente rachado ao meio.
Aos 51 anos, é um homem de meia-idade que, conforme assegurou sua defesa, não apresenta antecedentes criminais. Aécio também não teria participado ativamente de depredações nos prédios públicos nem portava arma quando foi detido. Consta também que, sem a renda de seu trabalho, sua família estaria em dificuldades financeiras, sobrevivendo à custa de doações.
Ao fim de tudo, Aécio Lúcio se tornou um daqueles anônimos a entrar, de forma atravessada, para a história do País: foi o primeiro réu a ser julgado e condenado pela primeira real tentativa de golpe desde a redemocratização, em 1985. Seu nome bem como a sessão de seu julgamento serão lembrados também pelo comportamento nada ético nem profissional de seu advogado, o desembargador aposentado e também militante da extrema direita Sebastião Coelho, que, embriagado de ativismo político, achou pertinente a máxima de que “a melhor defesa é o ataque” e partiu para cima, desancando o plenário do STF.
A pena de 17 anos partindo do regime fechado é pesada, sem dúvida. Há dezenas de exemplos de crimes mais chocantes que tiveram menor repercussão penal. A questão é que o julgamento ocorre tendo por base um valor não visível, mas extremamente simbólico e precioso para a República: a existência da democracia.
Pessoas que agora sofrem processos e tem o curso de suas vidas alterado de forma abrupta foram abastecidas durante muito tempo com lixo informacional
Baseados em anos e anos de notícias falsas espalhadas de forma industrial e estratégica por meio de redes sociais ocupadas muito mais em lucrar com elas do que em coibi-las, milhões de pessoas acham mesmo que as eleições não só foram como vêm sendo fraudadas há tempos, sem que disso haja qualquer prova. O propagador número 1 das fake news, se não em qualidade, mas em estatura de importância, é o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, que chegou a promover um encontro com embaixadores para contestar o processo eleitoral brasileiro.
Ora, se o líder do rebanho assim se posiciona reiteradamente, como não esperar que, em determinado momento, haja uma reação explosiva, ainda que de alguma forma coordenada?
Todas as pessoas que estão agora sofrendo processos e tendo o curso de suas vidas alterado de forma abrupta foram sendo abastecidas durante muito tempo com esse lixo informacional. Mais do que isso, nele se viciaram. Colocaram o próprio tempo livre, como no caso de Aécio, a serviço de uma mentira travestida de patriotismo. E agora vão pagar caro por isso.
Como elite da magistratura, o STF não vai afrouxar a dosagem das penas aplicadas a pessoas que atacaram, inclusive fisicamente, as instituições democráticas. A partir daí, cabe, entre outras coisas, que tantos militantes parem para pensar no que fizeram, dentro de suas cabeças, com o conceito de liberdade.
Se Aécio e mais algumas centenas serão condenados, é importante lembrar que, nas portas dos quartéis e nas manifestações golpistas, estiveram centenas de milhares. Todos pedindo às Forças Armadas que dessem um basta no regime que, por força das “notícias” dos grupos de WhatsApp, acreditavam (e acreditam) ser uma ditadura. Anos de vida perdidos para uma quimera.