A sessão de promulgação da reforma tributária, realizada na Câmara dos Deputados na quarta-feira, 20, já entrou para a história: Executivo e Legislativo alcançaram o feito de encerrar uma demanda de décadas que, no melhor dos cenários, promete revolucionar para melhor as finanças do poder público, de empresas e da população em geral. Mas o dia solene também serviu para escancarar como a classe política tem assustadoramente involuído em termos de civilidade – e, pior, como parece ter potencial para regredir muito mais.

Se o Congresso Nacional já há tempos não anda com moral muito elevada diante da opinião geral, a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à sessão fez com que os instintos mais primitivos dos políticos presentes e envolvidos na polarização fossem acionados. E que o evento solene – tratado em princípio, por conta de sua pauta, como algo quase tão grandioso como o anúncio da nova Constituição, em 1988 – acabasse se tornando infantilizado.

O nível e a exposição das emoções envolvidas dariam ao evento um lugar melhor se se trocassem as confortáveis poltronas do plenário pelas cadeiras numeradas de um estádio num dia de clássico decidindo campeonato. Parecia não a cerimônia de mudança do regime de tributário de uma nação inteira, mas a divulgação do resultado da gincana de um grupo de adolescentes.

A bagunça começou já antes da sessão, quando o deputado Abílio Brunini (PL-MT) arranca as placas que estavam reservando a primeira fila às autoridades convidadas à cerimônia. É mais ou menos como o sobrinho do dono da casa aproveitar a distração da família para passar cola escolar nos assentos das mesas da festa de 15 anos da prima.

Nada que surpreenda vindo de quem veio. Se a infantilização da política tivesse um ícone, seria a redonda e desnuda cabeça do parlamentar mato-grossense. Membro da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou os atos golpistas de 8 de janeiro, Brunini estava sempre pronto para interromper as sessões, celular na mão a postos para uma boa zoada, como o aluno do fundão da sala da 5ª série.

A entrada de Lula ao recinto atiçou ainda mais a já agitada turba bolsonarista. O presidente foi apupado com o coro “o ladrão chegou!”, puxado pela turma do PL – paródia para o canto “o [nome ou apelido de qualquer time/jogador] voltou!”, consagrado nas arquibancadas. Do outro lado, a turma do PT respondia com o não menos futebolístico “olê, olê, olá, Lula, Lula!”.

Durante a execução do hino nacional, uma triste e comum rotina da era das redes sociais: em vez da posição de sentido e reverência, deputados de smartphone em punho gravando a cena ou, pior ainda, de costas para a mesa diretora e para a bandeira do Brasil, tudo para transmitir o momento ao vivo e engajar seus seguidores no Instagram ou em outras redes. Uma parte dos bolsonaristas também se virou de costas para protestar contra a presença do presidente da República na Casa. Se falta de decoro voasse, que tamanha inutilidade teria a iluminação do plenário naquele momento!

Mas o espetáculo indecoroso ainda pioraria. O ponto alto “pelo avesso” do evento seria o duelo entre os deputados Washington Quaquá (PT-RJ) e Messias Donato (Republicanos-ES). Um, vice-presidente nacional de seu partido; o outro, novato na Casa. Durante uma segunda onda de insultos ao presidente por parte dos deputados da extrema direita – “Lula ladrão, seu lugar é na prisão!” –, Quaquá tomou as dores do correligionário e foi filmar (mais um “armado” de celular) lá no meio da muvuca da direita. Agrediu Nikolas Ferreira (PL-MG) com um palavrão homofóbico e, gritando que iria “representar” aquela ocorrência na Comissão de Ética, sofreu a tentativa de tomada de seu aparelho por Messias. Imediatamente respondeu com um tapa no rosto do colega.

Depois da sessão encerrada, o agredido foi à tribuna e, ladeado por seus parceiros ideológicos, literalmente chorou as mágoas e alertou para os “abusos” cometidos. Já o agressor, sem se arrepender, foi contar vantagem na internet, faltando só falar que faria de novo. Apesar da evidente falta de decoro, até o momento o PT não mostrava muita disposição em punir Quaquá. Tudo caminha para terminar com uma tradicional pizza sabor “treta à parlamentesa”.

A problemática da política é muito mais complexa do que supõem as cabeças pensantes que acham que é só combater a corrupção e tudo vira uma maravilha

O Congresso Nacional, é bem verdade, já foi palco de coisa ainda muito mais grave: no Senado, ali do lado daquele circo, houve um assassinato há 60 anos. Em dezembro de 1963, uma cena de bangue-bangue entre dois senadores de Alagoas, o militar reformado Silvestre Péricles e o empresário Arnon de Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor, terminou em disparos, dos quais um acertou o abdome do representante do Acre José Kairala, que participava de sua última sessão antes de devolver o cargo, já que era suplente.

Se dentro da Casa talvez não se chegue a tanto, o comportamento irascível dos parlamentares atiça ainda mais suas legiões fora de lá. O ódio à política já existia de forma difusa pela sociedade, mas ganhou força com o discurso lavajatista e capilaridade com as redes sociais. Jair Bolsonaro não teria jamais sido presidente não fosse a união desses fatores.

Só que a problemática da política é muito mais complexa do que supõem as cabeças pensantes que acham que é só combater a corrupção e tudo vira uma maravilha. Há uma série de antigas questões estruturais que precisam de solução e ali, naquele dia de circo, os palhaços não compreendiam que se celebrava uma delas.

Para coroar este texto no estilo “doces ou travessuras”, vamos voltar a Abílio Brunini. Como todo guri orgulhoso de suas traquinagens, o representante-mor do espírito infanto-juvenil do Legislativo esperou o fim da sessão solene para, juntamente com alguns outros “meninos levados”, gravar mais uma peça para seus seguidores, com o plenário vazio e no mesmo lugar em que as placas foram retiradas. “Cê tá incomodado que eu tirei as plaquinhas de ‘reservado’? Quero dizer para vocês: este lado já tá reservado! Esse é o lado da direita! Ministro do Lula tem que ficar daquele lado de lá, o lado da esquerda! (…) Se você achou ruim, chora pro Lula, porque aqui a gente vai rir pra caramba”, explicou, em meio às gargalhadas dos coleguinhas “conservadores”.

Ao fim do vídeo, o episódio torna-se um tutorial completo de como age a extrema direita com uma “cereja do bolo”: Brunini diz que entregou as placas ao cerimonial e compara a devolução daquilo que retirou indevidamente à fake news espalhada pela bolha reacionária, segundo a qual canetas Mont Blanc (na verdade, eram lápis comemorativos) teriam sido furtadas por Lula e a primeira-dama, Janja da Silva (na verdade, receberam-nos como presente) em reunião do G-20, na Índia.

Com essa turma do barulho, aplica-se ao Congresso a expressão que Aldir Blanc e Maurício Tapajós gravaram ainda em 1984, na canção “Sai da Frente, Brasil”: se cobrir, vira circo; se cercar, vira hospício.