Altaico: língua fundamental ou ‘seita pseudocientífica’?

21 novembro 2021 às 00h01

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Pesquisa genética e arqueológica reacende maior polêmica da linguística, dando força à teoria de que uma única língua asiática – o Altaico – deu origem a mais de 80 idiomas

Um novo estudo utilizou linguística, arqueologia e genética para triangular as origens da cultura mais controversa da Ásia. A pesquisa reacende a maior disputa da história da linguística ao dar força a uma hipótese que estava sendo abandonada desde 2008. Trata-se da ideia de que mais de 80 idiomas asiáticos atuais pertencem a uma única família, ou seja, descendem todos de uma língua antiga falada por um povo conjecturado, uma cultura pressuposta – o Altaico.
Até então, os cientistas não tinham evidências da cultura antiga que supostamente usava o altaico para se comunicar, mas um grupo numeroso de pesquisadores acreditava que a linguagem poderia realmente ter existido por conta das fortes semelhanças entre línguas asiáticas. Esses defensores da hipótese altaica compararam o vocabulário das supostas línguas parentes e elencaram palavras semelhantes, sons correspondentes e, conhecendo a taxa média de mudança das linguagens em função do tempo, conseguiram reconstruir um altaico teórico que teria sido falado 9 mil anos atrás.
Os indícios são convincentes: em comum, as línguas altaicas (ou transeurasianas) utilizam a ordem “sujeito-objeto-verbo”, usam radicais com muitos sufixos e poucos prefixos, possuem vogais que harmonizam, preferem pós-posições a preposições, têm palavras sem gênero, não empregam agrupamentos de consoantes no começo das palavras, e têm pronomes que começam com B, C e S. As coincidências são muitas e se estendem por línguas tão diversas e geograficamente distantes como o turco, o mongol, manchu (tungúsico, na atual China).
Em 1770, o erudito Tō Teikan foi o primeiro a colecionar semelhanças entre o japonês e as línguas chinesas e elocubrar que os idiomas deveriam ter parentesco. A teoria ganhou força na segunda metade do século 20 com a escola linguística de Moscou. Em 2003, a reconstrução foi publicada no “The Etymological Dictionary of the Altaic Languages”, por Sergei Starostin, Anna Dybo, e Oleg Mudrak.
Controvérsia
Entretanto, os oponentes da ideia não pouparam críticas. Um grupo de linguistas sempre afirmou que as semelhanças podiam ser explicadas pela história compartilhada entre as línguas asiáticas – empréstimos de termos, migração de populações e influências mútuas. Isso significaria uma convergência evolutiva linguística, ou seja, idiomas com origens distintas se tornando similares com o tempo, ao invés de idiomas com mesma origem se diferenciando em função do tempo.
Em 2005, um antigo apoiador da teoria altaica, o russo-americano Alexander Vladimirovich Vovin, deixou o grupo de defensores para se tornar um crítico ferrenho. Ele afirmou que o projeto tinha falhado e seus proponentes se recusaram a reconhecê-lo. Os defensores do altaico, segundo Vovin, escolhiam evidências favoráveis à dedo enquanto ignoravam as evidências que não lhes interessavam. Ele afirmou que as tentativas de desmembrar palavras atuais para compor supostas palavras altaicas se assemelhava a uma construção de quimeras.
Vovin disse ainda que, ao contrário da ciência linguística bem feita, que é capaz de prever palavras cognatas e calcular indicadores de semelhança entre duas línguas, o estudo do altaico se parecia com “tentativa de encontrar correspondências aleatórias.” (The End of the Altaic Controversy, Alexander Vovin, 2005). Além disso, os céticos afirmavam que os defensores da família transeurasiana recorriam a um método pré-científico que se assemelhava mais a uma “seita linguística” (palavras duras do próprio Vovin) , um culto cujo livro sagrado era o dicionário publicado em 2003.
Reviravolta?
No dia 10 de novembro de 2021, Martine Robbeets, uma arqueolinguista do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, na Alemanha, publicou na revista Nature uma pesquisa que afirma ter encontrado evidências dos povos que teriam falado o idioma altaico. Para trazer novas evidências para o debate, ela se juntou a linguistas, arqueólogos e geneticistas da China, Japão, Rússia e Coréia do Sul para construir uma extensa árvore genealógica linguística para línguas em toda a Eurásia. Eles se concentraram no que Robbeets chama de vocabulário “livre de cultura”, incluindo palavras para itens básicos como “campo”, “porco” e “casa”.
A equipe usou semelhanças entre esses termos básicos e mudanças históricas conhecidas no som para reconstruir uma linguagem ancestral, o proto-transeurasiano. Sua árvore genealógica, que remonta a aproximadamente 9200 anos, sugere uma origem comum para dezenas de palavras relacionadas ao cultivo e colheita de um grão conhecido como milheto (no Brasil também chamado de milhete, milho-miúdo, painço).
Em seguida, os arqueólogos examinaram dados de 255 locais na Ásia Central e Oriental datando de cerca de 8.500 a 2.000 anos atrás. Pesquisas anteriores descobriram que o painço totalmente domesticado surgiu no vale do rio Liao, na China, há pelo menos 6.000 anos. Os pesquisadores rastrearam como as semelhanças entre os locais próximos em estilos de cerâmica, estilos de sepultamento e o uso das mesmas plantas domesticadas se agruparam ao longo do tempo. Eles acompanharam a disseminação desses “pacotes culturais” à medida que saíam do Vale do Rio Liao e divergiam e se mesclavam com outras culturas ao longo do tempo. Essa disseminação correspondeu aproximadamente à marcha da linguagem hipotética proto-transeurasiana.
Finalmente, os geneticistas analisaram o DNA de 23 indivíduos que viveram entre 300 e 9.000 anos atrás no que hoje é a Sibéria, Mongólia, China, Coréia do Sul, Japão e Taiwan. Eles usaram algoritmos de computador para prever como esses indivíduos estavam relacionados entre si e com 2.000 pessoas modernas cujos genomas foram carregados em bancos de dados genéticos. Juntas, as três evidências sugerem um ancestral comum comum para os falantes modernos das línguas japonesa, coreana, tungúsica (manchu), mongólica e turca: fazendeiros que viviam no vale do rio Liao há aproximadamente 9.000 anos.
Com o tempo, os fazendeiros antigos ficaram melhores no cultivo de painço e sua população se expandiu, diz Robbeets, espalhando sua língua pelo mundo. Eventualmente, suas populações se dividiram e se fundiram com outros grupos na Eurásia, desenvolvendo línguas e culturas distintas, mas mantendo uma espinha dorsal lingüística ainda reconhecível.