Opção cultural

Companheiros, tranquem a porta da sala, assistam aos filmes, saquem os seus lenços de seda, mas chorem com moderação

A simplicidade dos recursos estético-literários e o talento narrativo e conciso de Ernest Hemingway fazem do conto “Os Assassinos” uma das obras-primas do conto moderno

Se as primeiras composições de Villa-Lobos trazem a marca dos estilos europeus da virada do século 19 para o século 20, será a partir de 1914 que ele iniciará seu “repúdio” aos moldes europeus e o desenvolvimento de uma linguagem própria. O folclore musical será a base de toda a sua criação artística

Cédric Klapisch foca na natureza apaixonada do homem como objeto de estudo para uma série de desencontros dos quais, muitas vezes, somos os próprios culpados

[caption id="attachment_10371" align="alignright" width="620"] Foto: Kumar Gauraw[/caption]
Graça Taguti Especial para o Jornal Opção
A premência de atos de coragem se manifesta em nossas vidas desde o instante do nascimento. Ambos, o bebe e sua mãe, precisam de imensa determinação e desejo, para trocar, abandonar um ambiente aquoso, seguro e acalentador pela vinda à luz na terra dos homens.
Mudar de hábitos, largar ambientes mornos por outros desconhecidos — ainda que anunciem o bônus de certa prosperidade, demanda entrega e decisão.
Mergulhar na névoa, nas ondas escuras e geladas de viagens solitárias são ações que acarretam desvendamentos, nem sempre doces de fatias do nosso psiquismo.
Coragem para se enxergar em carne-viva, sem escamoteações quaisquer. Detectar o medo lá dentro de suas caixas fechadas, as defesas algemadas na garganta e crispadas nas mãos trêmulas de dúvidas.
Ter a ousadia de convocar os diabos e demais anjos da maldade a se reunirem conosco, intimando-os a revelar seus fétidos estratagemas de demolição da alegria e paz, nossa e alheias.
Arrancar o amor, entranhado à língua, levando-o às palavras. Uma confissão de bem, um ramalhete de flores para quem nos cerca a toda hora de atenções e delicadezas.
Ter coragem, como insígnia da bravura eleita, é trocar as infinitas mortes cotidianas por sobressaltos verdes, vermelhos, lilases. Gargalhadas soltas e úmidas, prontas a invadir cenários de vento e a se refestelarem, displicentes, ao ar livre.
Coragem para ser feliz. Como sonegamos de nós essa tal felicidade, como se ela não nos fosse devida, um bem legítimo, herdado dos céus. Também poderemos estendê-la à solidariedade macia, móvel e atenta ao entorno, evoluindo em um balé glorioso, pelos arcos planetários.
Coragem carimbada nas mínimas escolhas. Levantar os olhos do celular, guardar o tablet em uma gaveta, o notebook na mesa do quarto e, então, partir para trocar dois dedos de prosa com a revoada de andorinhas que se exibem diante de nossas janelas.
São tantas e multifacetadas coragens de que carecemos nos pequenos e grandes movimentos que compõem a partitura nossa de cada dia, com suas melodias assíncronas, que nos faltam indumentárias apropriadas. Abraçar o doente, o bêbado, o paciente terminal e lhe oferecer água e mel, a ternura mais fresca da alma, introduzindo-a neste quadro de dores e discretas bênçãos.
Coragem para se dizer o que sente. Sem eufemismos, perfumes de toucador ou maquiagens pesadas por acúmulos de autoenganos. Perdoar, ou pelo menos buscar esquecer, quem nos odeia ou inveja- nossos traiçoeiros inimigos, vigilantes do alto das coxias, desde o palco em que nos apresentamos à sociedade — essa gestora de ferro. Implacável julgadora de direitos e deveres dos homens.
Um misto de coragem, humildade e tolerância consiste em receber sem discórdias a presença de noites sem lua. Aristóteles sentenciava: “A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras”.
Sem coragem, deslizamos sobre o mundo como vermes na pele de pessoas apáticas e sem rumo. Repetimos rituais de convivência sem questioná-los. Repudiamos as sementes da boa nova, em várias nuances de nossa esgarçada existência.
Anaïs Nin, libertária escritora, apregoava “a vida contrai-se e expande-se proporcionalmente à coragem do indivíduo”.
Na maior parte do nosso espremido tempo, pulsamos encolhidos em conchas, torres prisioneiras de castelos em cujas masmorras apodrecemos desejos, energias, prenúncios de gestos fecundos. Shakespeare sublinhava “os covardes morrem muitas vezes antes de sua verdadeira morte; os valentes provam a morte só uma vez”.
Por fim, há algo inevitável nos pequenos movimentos das coragens nossas de cada dia. Olhar nos olhos da morte. Encará-la de perto, aceitando seu convite para enfrentá-la em mais um combate. Aqui, viver ou morrer não está em questão. Lutar é o que importa.
Graça Taguti é escritora.
via Revista Bula
[caption id="attachment_10323" align="alignnone" width="620"] Jorge Luis Borges[/caption]
J.C. Guimarães
Sou o autor desta coletânea ordinária, e quem pretendesse encontrar vestígios de ficção na história que segue daria com os burros n`água. A realidade tem suas intromissões fantásticas, e uma dessas janelas me surpreendeu para provar que não existe fronteira entre o fato mais prosaico e o mais absurdo. Antes de reproduzi-lo é necessário algumas observações, de que a crítica poderá se valer para referendar-me ou me condenar ao esquecimento.
Considerei este fato tão inverossímil que, ao transcrevê-lo, não me dei conta de que imitava Jorge Luis Borges. Consola saber que inúmeras linhas de Borges são linhas de Kafka e que alguns de seus versos pertencem indiscutivelmente a Whitman, sem que ele tenha sido o primeiro e o último de uma série. O português Álvaro de Campos foi de uma fidelidade admirável: “Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!”
Imitação, em alguma medida, é inevitável: cada um de nós é menos si mesmo que outros, ao longo da vida. E estou convencido de que é melhor se parecer com Borges do que com ninguém. É verdade que reescrevi esse conto mais de uma vez, mas não consegui me livrar de suas impregnações. O preço pode ser este: meu próprio obscurecimento como escritor, à procura dum estilo (o de não tê-lo, por exemplo, amorfo ao contrário do imitado). É o diabo, mas fica a história, boa ou má. Contento-me em saber que fiz o melhor que pude.
Digo logo: acredito que eu sou eu mesmo, J.C. Guimarães. Entre outras coisas, não pretendo morrer completamente como pretendeu Borges — Jorge Luis Borges. Apesar das ressalvas, é provável que o leitor familiarizado perceba nessa história o estilo pessoal do mestre, o uso de certos chistes e principalmente a dicção. Reconheço a dívida e permito que ela me apague, se convir ao resultado que almejo. Confesso o esforço inútil de evitar certos rudimentos do idioleto deste apreciador de milongas, que terá sido eu (ele não foi todos os homens do mundo?) e quem não fui. Não fui, apesar das aparências (quando eu era jovem, perseguiu-me também o terror imaterial de Hume). Acho até que tais reminiscências darão a estas poucas palavras certa graça que possivelmente não teriam por si mesmas, por isso deixo que fiquem.
Pouco me importa, pois não alcancei um estilo pessoal e cheguei a duvidar que tivesse talento para fazer qualquer coisa de original.
Borges foi o primeiro grande escritor que eu li. Houve um tempo em que o argentino foi na minha opinião o maior escritor de todos os tempos. Eu ainda não conhecia as vertiginosas galerias de William Shakespeare. De qualquer modo, deixei-me influenciar por sua poesia porque minha ideia de mundo guardava prováveis semelhanças com aquela dos seus livros mágicos. Hoje duvido é que um homem possa ter um estilo e espelhar a multiformidade do mundo. Mudei muito, desde então; passei a ver as coisas de uma maneira mais realista e menos fantástica, explicação, no fundo, destituída de sentido. Um lógico pode perfeitamente pulverizá-la. Quem é que não se influenciou um dia por alguém? Com a metamorfose eu deixei de ser quem fui. Li outros fabulistas e até senti certo enfado pela metafísica, por essa falta de calor humano e especialmente de mulheres, que é a prosa de Borges. Para se parecer mais comigo mesmo, reitero que amo as divas.
A verdade, única e verdadeira, é que somos tantos ao longo da vida, e também nossa maneira de ser e de fazer as coisas. A identidade que a burocracia inventou para mim é a do cidadão cotidiano e maçante das contas e obrigações civis. Invejo sinceramente quem se enquadra nesse esquema mesquinho e não perde o juízo. Fosse comerciante e talvez fosse mais feliz.
A natureza não gosta de pessoas complicadas, aquelas que tentam desvendar os seus mistérios, como Borges e outros homens de gênio. Ela os amaldiçoa com maus pensamentos, com conflitos íntimos, com angústias insanáveis que nenhum entretenimento mundano pode atenuar por muito tempo. Tira toda sua fé, para que morram secas. É o preço que se paga, por se querer comer os frutos da árvore da sabedoria, do bem e do mal. Faz todo o sentido que a descrença seja generalizada entre os rebeldes: a curiosidade invasiva nos domínios de Pandora nunca fica impune.
Não é difícil compreender a felicidade mais palpável das pessoas comuns. A natureza não tem por que hostilizar os que não a incomodam com perguntas indesejadas.
Talvez, ao invés de um conto, eu devesse fazer uma crônica do material que disponho, de sorte que o episódio ligeiramente descrito a seguir de fato aconteceu: é tão autêntico quando a vertigem de Borges, às margens do rio Charles, em fevereiro de 1969. Não inventarei outro, nem um dia nem uma data, a fim de fraudar os dados que esqueci. O que narrarei poderia ser escrito para o jornal da manhã seguinte, ao invés de aspirar a forma literária.
O objetivo desta peça simples, cuja principal virtude é o panteísmo, é falar de espelhos: a imagem preferida de Borges. Concluí, após uma tarde de revelações, que os espelhos têm verdadeira correspondência no universo de Aristóteles. Para tanto, bastou uma ocasião trivial e a feliz intuição deste plagiário. Felizmente, as metáforas têm o dom da diversidade (realmente esta frase não me pertence). Minha conclusão não encerra todas as possibilidades e ângulos do problema, mas certamente encontrei um de seus termos (outra fraude). É talvez o produto de uma alucinação e poderia integrar o rol das teorias conspiratórias.
Percebam que realmente não pretendo ser igual a Borges. Como, se inclusive sou militante de um partido político? Não sei ainda se por sorte ou infelicidade, a história é que vai dizer.
O desprezo do mestre pela matéria nunca me escandalizou, sobretudo depois que, por aqui, fomos cúmplices da infâmia, como todos os outros que estiveram no poder. Infalivelmente o poder tresmalha, infalivelmente desagrada. Pouco saberíamos pelas páginas do renomado portenho qual a sua opinião sobre os generais que pisaram sua pátria argêntea. Talvez soubéssemos sobre Péron, a quem a literatura política consagrou um ismo. No mais, preferiu ignorar nossos desencantados Sólons. Foi a forma sutil que encontrou de, outra vez, repetir os gregos e metê-los no ostracismo. Neste caso, permanente:
“Contam que Ulisses, farto de prodígios, Chorou de amor ao avistar sua Ítaca Humilde e verde. A arte é essa Ítaca De um eterno verdor, não de prodígios”.
Assim é Borges. Seja como for, como Dante, que não envergonhou-se de servir à sua cidade, a política me interessa como caminho sem volta. É por isso que cultivo a leitura daquele Carlos Daneri que, com uma só pergunta, afrontou os extremismos que assolam esse mundo: “Quantas igrejas tem o céu?” Minha resposta é nenhuma.
Mas, então, aconteceu o fato, e inevitável foi associá-lo ao gênero fantástico. De repente, certas provocações metafísicas de Borges me pareceram cobertas de sentido. Um plano repete outro, e isto é São Paulo e outras metáforas a que Borges recorreu. Tudo só depende de você estar no lugar certo e na hora certa para perceber as correspondências. Em meu caso, foi quando recebi a visita de dois missionários em casa.
O endereço foi a rua 7, e achei que eram corajosos. À maneira de Pedro e os outros discípulos, vivem de bater nas portas, infinitas, e operar o convencimento, reclusos por anos a fio em sua própria versão de Nicósia, Patmos e Éfeso. Essa loteria vulgar (uma locução típica do mestre) os pôs diante de mim e os atendi, e talvez tenham me visto como um pagão. Pedi que entrassem e se sentassem, embora soubesse que o convite alargasse a sua insistência. Sabia que não seria convencido por nada desse mundo, mas dei-lhes guarida por tolerância. Sorriram, eu os retribuí com sinceridade e tudo ficou bem entre nós.
Não fosse pela delonga, nossa conversa teria sido apenas curiosa. Um dos dois rapazes, o louro de cabelos lisos, falou-me enquanto seu companheiro limitou-se a ouvir com atenção (este talvez iniciasse o colega no complexo idioma de Manuel Bandeira). Trazia no peito o nome fictício de Elder Benquerer, um missionário vermelho de uma tal Castle Deale, Utah. O outro, mais baixo, mais franzino e pardo era natural do Maranhão, e atendia pelo mesmo nome, Elder. Este último Elder contou que morou em Pires do Rio, e eu informei que foi lá que nasci. É verdade que essa cidade do interior goiano não foi para mim, aos trinta e tantos anos, mais do que um berço puramente imaginário, tão improvável quanto... o Indostão, é claro.
Foi ao escutar o forasteiro que Borges se intrometeu entre nós, com sua mania de replicar a realidade. Julguei disparatosa a história que Benquerer se pôs a me contar, absolutamente certo de sua veracidade. Quanto ao livro que me vendeu — eu o comprei como um objeto curioso, mas, verdade seja dita, nunca tive paciência de lê-lo (já nem sei mais onde o guardei) — seria trabalho de uma civilização do oriente médio. Povos dessa região atravessaram não sei que oceano e vieram parar em nosso continente. Curioso é que tenham alcançado o território norte-americano, onde também despencou a ogiva do Super-Homem. Não quis, entretanto, parecer deselegante com minhas ironias e deixei que concluíssem sua exposição.
Tive a impressão de que falávamos sobre fábulas e não sobre fatos, sobre Atlântida e não sobre o Oriente. Os arqueólogos e historiadores legaram informações precisas sobre as populações originárias desta região: medos, partos, cassitas, hititas, cananeus, jebuseus. Que eu me lembre, nada sobre os nefitas. Faço um desconto, porém, e suplicaria desculpas aos meus visitantes: é que minha opinião teve o dom de juntar um cético a um leigo.
Aliás, que eu seja apenas um ignorante é a mais pura verdade. Nunca ostentei ferrenhamente um credo. Qualquer instituição me é suspeita, pelo simples fato de agregar pessoas: a conjugação dos homens trás consigo a força e o poder, mas também o teatro, inevitavelmente. Até a juventude eu quis acreditar nas associações, mas as próprias pessoas levaram-me a desconfiar delas e de seus objetivos.
O tal livro que os missionários trouxeram é uma imitação da Bíblia, com profetas, mandamentos e povo eleito. A despeito do meu ceticismo insignificante, um estado inteiro da América acredita na realidade dessa história e no profeta Joseph Smith, recebedor de algumas placas e sucedâneo de Moisés. Seus seguidores repetiram mitos antigos e atravessaram milhares de quilômetros até se internarem, também, num deserto, que (eu me ative) é feito de areia: a matéria-prima dos espelhos. O tom é fantástico, mas mais fantástico ainda é que eu não estou inventando nada.
Isto não poderia mesmo se chamar ficção, que é o que são as peças borgianas. Isto aqui, caro leitor, é a mais assombrosa realidade, motivo suficiente para que a confusão entre mestre e admirador seja apenas aparente.
Benquerer lembrou-me uma gasta fabulação: a de que os Estados Unidos souberam com mestria confundir o seu destino com o de Israel. Recapitulo para o leitor: os perseguidos de Tutmés I foram os mesmos que perseguiu a intolerante coroa dos Stuarts; o deserto dos 40 anos foi o mar do Myflower (e certamente a penosa travessia de Brigham Young e seus adeptos pelo Meio-Oeste); a Terra Prometida a Nova Inglaterra, aonde, decerto, também abundaram o mel e o leite; o povo eleito de Deus, os norte-americanos, entre os quais Kissinger e Leo Strauss, que escreveram uma parte da história, uma página torpe e decadente. Talvez o fim esteja mesmo próximo.
Quem sabe se Canaã não é extensa como o mundo e nela preservaram-se muitos filisteus, aos quais é necessário declarar a sua guerra? Não sem perplexidade ou assombro, pressenti pela primeira vez, sob o auspício de meus simpáticos visitantes do Norte, como os espelhos de Borges são fatos da realidade, bem próximos de nós. Assim como esta imitação, deliberada e naturalmente imperfeita.
J.C. Guimarães é ensaísta, contista e historiador.
via Revista Bula
Leitores e colaboradores apontam os poemas mais significativos do poeta mato-grossense

[caption id="attachment_10332" align="alignright" width="620"] Foto: Jefferson Bernardes/VIPCOMM[/caption]
Hélverton Baiano Especial para o Jornal Opção
A derrota da Seleção Brasileira de futebol na Copa de 2014 ensejou muita baboseira, comentários de futebolistas querendo aparecer e muita gente, nas redes sociais ou na imprensa de um modo geral, posou de politicamente correto, querendo consertar alguns erros que acometeram a nossa Seleção e também o nosso futebol. Muitos querem fazer do Brasil uma Alemanha, para ficarmos na maior das bobagens, como se não houvesse diferenças culturais, econômicas, sociais e tudo o mais. Mais interessante é que há muito alemão querendo o seu país como o Brasil no futebol.
Êxitos e desacertos são normais no futebol e na vida também. Como o futebol é o assunto, vamos às bobagens. Nossa maior dificuldade é querermos que o Brasil vença sempre, mesmo com times inferiores, como foi o caso da Copa 2014. Às vezes um time de futebol inferior ganha do melhor (vide Copa de 1982) e aí reside mais uma graciosidade do futebol. Mais um detalhe: num campeonato de tiro curto, como uma Copa do Mundo, e com jogos de mata-mata, acontecem surpresas, para nosso gáudio.
Não estou falando que a organização no futebol seja ruim, não. Ela é importante, mas nem sempre suficiente. Um exemplo: a Alemanha estava com o futebol totalmente desorganizado em 2000, 2001, mas chegou à final da Copa do Mundo de 2002. Outro exemplo: nosso futebol brasileiro, que sempre foi muito desorganizado e corrupto, vivia uma merda em 1993, inclusive com viradas de mesa nas classificações e subidas de série, mas fomos campeões da Copa do Mundo de 1994 (Tetra).
Mais um exemplo: em 2000 o campeonato brasileiro viveu um dos períodos mais conturbados, com uma bagunça total e instituições de Módulos, Copa João Havelange e Clube dos 13, várias aberrações; quem foi o campeão da Copa do Mundo de 2002? O Brasil (Penta), dono deste desorganizado e esculhambado futebol. Nossos dois últimos títulos de Copa do Mundo foram conseguidos nesta desorganização total e com dirigentes que não eram exemplo de boa conduta com o dinheiro da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Essa é uma história triste, mas os exemplos mostram que não pode ser usada para justificar êxito ou derrocada do futebol jogado em campo. Além do que, nos últimos 30 anos, o Brasil rivalizou com a organizada Alemanha.
Na verdade, o Brasil foi até melhor: ganhou dois títulos mundiais, foi segundo colocado em 1998, deixou duas Copas nas Quartas-de-Final e ganhou quatro Copas das Confederações (1997/2005/2009/ 2013). Dá raiva quando vejo comentaristas de futebol invocando essas coisas para justificar a derrota. Fazem o mesmo tipo de corrupção com a opinião pública como os cartolas (que dirigem o futebol) com o dinheiro do futebol.
Não gosto desse parâmetro de Copa do Mundo para avaliar o futebol de um país e talvez esteja aí o nosso maior erro. Nem quero também sacrificar o técnico Felipão pelo erro que cometeu contra a Alemanha, no fatídico 7 a 1. Ele errou, mas os jogadores erraram muito também e isso é imprevisível. Da mesma forma, os jogadores da Espanha erraram no primeiro jogo, contra a Holanda. Quero dizer que a discussão sobre a convocação feita pelo Felipão é outro papo. Até o momento em que a Seleção se habilitou para a semifinal, ninguém questionava isso, mesmo porque ela vinha de ganhar a Copa das Confederações. (Chegaram a elogiar as ligações diretas (defesa-ataque), sem passar pelo meio de campo, mesmo porque quando a bola era passada para nossos jogadores do meio campo, nesta Copa, era um deus-nos-acuda). Com a Argentina foi diferente, houve questionamento da convocação, mas ela chegou, elogiada, à final e quase ganha. Não é por aí. Brasil e Argentina estão no mesmo nível de organização e corrupção no futebol.
Outra bobagem ouvida até de político que não entende nada de futebol (e devia ficar calado ou calada) é que precisamos reter nossos jogadores (novos valores) do futebol por aqui. Antes, no entanto, falavam que o Neymar precisava ter experiência no exterior. Baita incoerência. O Brasil é o maior exportador de jogador de futebol do mundo e isso traz divisas e melhora a vida de milhares de famílias brasileiras. Brasil e Argentina são grandes exportadores de futebol, Alemanha e Holanda, não. Foram as quatro melhores seleções da Copa do Mundo 2014. Vê-se que a argumentação não é boa. Messi, um dos maiores valores do futebol na atualidade, saiu da Argentina com 13 anos de idade e foi para o Barcelona (Espanha), depois de ser rejeitado por vários clubes do seu país.
É furado também o argumento de que a Seleção Brasileira precisa ser constituída mais de jogadores que atuam aqui. Balela. Há uns 30 anos, tudo bem. Mas agora, depois que o futebol mundial se globalizou, esse argumento não faz sentido. É usado para tentar engambelar a opinião do incauto torcedor. Desconfie de quem usa esse argumento ou então desligue a TV ou o rádio ou mude de canal. O Brasil é celeiro de jogadores de futebol e foi o único país com 30 atletas nesta Copa, 23 do selecionado e outros sete de outras equipes: Espanha, Portugal, Itália, Croácia e Chile. Isso não é ruim e nem demérito, ao contrário.
Não vale o argumento de criticar a Lei Pelé (que na verdade é Lei Zico) por isso. Ela tem seus pontos negativos, seus defeitos, e precisa ser revista, principalmente para valorizar mais o clube formador do jogador. Mas não é a Lei Pelé sozinha a responsável pelo êxodo dos nossos jogadores. Dos últimos 30 anos para cá, o jogador de futebol passou a ser uma mercadoria valiosíssima, que dá dinheiro e emprego a muita gente e também esconde muita malandragem por trás das negociações. Mas isso é em todo lugar, não apenas no Brasil. Vimos uma Copa com praticamente todas as seleções cheias de ‘estrangeiros’.
E quando todos se organizarem, que argumentos vão usar? Praticamente todos os países da Europa têm o futebol organizado e investem na formação de novos atletas. As escolinhas do mundo todo estão cheias de garotos bons de bola e o futebol tem melhorado de nível. A Copa serviu para mostrar isso. Três times se destacaram na competição: Alemanha, Argentina e Holanda. Mostraram organização, jogadores se doando e tiveram o que considero essencial no futebol: técnica, raça e melhor preparo físico. Esses três fatores decidem o futebol hoje, aliados à tática, essa em uma escala menor.
Acho que a Seleção Brasileira teve dificuldades nesses aspectos, isso era visível. Felipão chegou a falar, em segredo, que não convocaria um dos que estavam no grupo. Para mim, uns cinco ou seis ali estavam em maus momentos nas partes física e técnica e também não deveriam ser convocados. Por isso mesmo não conseguiam também cumprir bem as determinações táticas e, sem um bom preparo físico, não puderam mostrar raça também. Em todos os jogos o Brasil apresentou defeitos visíveis, que deveriam ser corrigidos especialmente para enfrentar adversários que se mostraram melhores na competição.
Acho que assim como em outros esportes, o futebol precisa incorporar mais tecnologia para que tenhamos resultados mais justos e também deve melhorar as regras para que o esporte seja mais atraente. O vôlei fez isso, o futsal também e ficaram melhores. As mudanças no futebol são muito lentas.
Sobre a decisão, a Alemanha teve duas oportunidades claras e aproveitou uma. A Argentina teve três e não aproveitou. Mas soube ler bem o jogo alemão e anular suas principais jogadas. A Alemanha faz um jogo simples, mas bem organizado e não entrega a bola fácil ao adversário. Não ficou muito evidente o que os comentaristas politicamente corretos apregoaram. O futebol, dentro de campo, foge, e muito, dessa razão cartesiana e por isso mesmo derruba muito comentarista. Chato é que - talvez em função disso fica mais atraente - machuca também a paixão da gente, muitas vezes até em demasia.
Hélverton Baiano é jornalista e poeta.

Mostrando grande habilidade no manejo com a linguagem, Luiz Ruffato mescla ficção e realidade para contar a história de personagens desiludidos e, de certo modo, resignados quanto ao rumo que o destino lhes deu
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Carlos Augusto Silva Especial para o Jornal Opção
“Flores Artificiais”, de Luiz Ruffato, só é um romance, na concepção tradicional da palavra, se assim quiser o leitor que por ele se aventurar. Trata-se de um conjunto de histórias independentes que, em um olhar de superfície, tem como único elemento de ligação o fato de serem todas conduzidas por um mesmo narrador. Lembra um pouco a estrutura de “Os Inocentes”, de Hermann Broch, na qual histórias independentes foram reestruturadas de modo a se tornarem parte de um todo. Distancia-se da perspectiva de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, de “romance desmontável”, dada a possibilidade de se poder ler, no caso do livro de Graciliano, cada um dos capítulos como narrativas independentes.
Na obra de Ruffato, desde o seu início, com uma apresentação na qual o autor se pronuncia, quebrando o que Henry James chamaria de pacto ficcional — segundo o qual o leitor deveria tomar por verdade absoluta o que lhe é contado e o autor deveria praticamente desaparecer do imaginário daquele que lê —, vemos que o livro não seguirá o molde clássico de romance.
“Flores Artificiais” é o resultado de memórias que lhe foram enviadas por um engenheiro, Dório Finetto, funcionário do Banco Mundial, sujeito de vida errante, que não fixou raízes em nenhuma cidade ou país. Suas memórias, sem qualquer cuidado de estilo, foram enviadas para Ruffato para que este delas se desfizesse ou as transformasse em literatura. Dório, que enviou as memórias para Ruffato, reconhece que, para ser literatura, é necessário mais que enredo: o autor não lhe priva dessa lição. Sentencia: “assunto demandando estilo”. E disso nasce o “romance”, que grosso modo poderia ser assim resumido: oito narrativas apresentadas por esse viajante, sempre a trabalho, nas quais apresenta pessoas que lhe rendem histórias para contar.
A apresentação inicial, coisa pouco usual para um livro de ficção, que pode sempre soar como um “senão” preventivo do autor com forte tendência a levá-lo a uma redundância não planejada, não tem efeito negativo no livro. Pelo contrário, justifica-se e recebe uma nota a mais de harmonia quando, nas páginas finais, o autor volta a aparecer, literalizando, em um capítulo que é bem nominado de “Memorial descritivo”, a vida de Dório Finetto.
As narrativas, por mais que sejam aparentemente parte de um todo apenas pelo fato de serem contadas pela mesma voz, têm mais fatores de unidade, que acabam dando ao livro organicidade, harmonia quanto à forma e ao conteúdo, mostrando grande habilidade no manejo com a linguagem por parte do autor.
Todos os personagens apresentam desilusão quanto à vida, e estão, de certo modo, resignados quanto ao rumo que o destino lhes deu. A presença do narrador diante dessas personagens é tímida, ressaltando seu aparente aspecto de escada para que a história das figuras com as quais se encontrou possa aparecer, o que em alguns casos leva a um discurso demasiado longo por parte das narrações feitas pelos personagens a esse interlocutor que, diante das cenas que lhe são contadas, simplesmente desaparece. Um discurso indireto, que desse mais voz ao narrador, poderia conferir ao texto menos rememorações com aspecto de monólogo que leva o texto a uma quebra de verossimilhança — quem, em um bar, ficaria horas calado diante de um estranho ouvindo uma história, de forma ininterrupta, que não lhe é familiar, por mais que seja esse ouvinte interessado em histórias, digamos, exemplares?
Outro aspecto de unidade do livro é que os personagens, de alguma forma, são expatriados, tal como o narrador, e voltam ao passado para terem seus momentos catárticos. O interesse pelo outro é o motor das narrativas, que torna o íntimo matéria de interesse. Isso os coloca também em um clima de encontro com a solidão, porque, sendo os personagens dotados de histórias que se revelam somente quando encontram alguém que se interesse por elas, e sendo esse ouvinte alguém sem raízes e declaradamente sozinho, que, caso morresse, como ele mesmo diz, não seria chorado por ninguém, revela-nos uma dupla enseada de solidão: quem ouve o faz porque é só, como quem conta o faz pelo mesmo motivo.
O texto de Ruffato é firme, com estilo escorreito e econômico, sem resvalar para a aridez vocabular. Ruffato não desliza ao apresentar personagens e ambientes de forma categórica e precisa, e assim o leitor é muito bem conduzido por um estilo que sabe de onde parte e para onde quer ir, e especialmente de que forma chegar lá. É um trabalho de linguagem amadurecido e consciente dos instrumentos de que faz uso para atingir o seu efeito, e por isso merece ser lido.
Carlos Augusto Silva é crítico literário.
via Revista Bula
Ao invés de arenas de rodeio e estádios suntuosos, ou o hexacampeonato (que vai sendo adiado pela nossa incompetência de jogar bem em casa), deveríamos sonhar mesmo com de salas de aula e bibliotecas, erguer o caneco do índice de leituras e de alfabetização
Ronaldo Cagiano Especial para o Jornal Opção
O vexame, o fiasco, a vergonha e a humilhação do oito de julho já vieram tarde. Há muito o povo brasileiro merecia essa surra. Depois da Segunda Guerra Mundial, foi o maior holocausto imposto a um povo.
A nação brasileira precisa deter-se no essencial, no que realmente importa, não na ilha de fantasia do milionário e corrupto futebol brasileiro, com seus cartolas miliardários e jogadores ídolos de barro, que jogam sem suar a camisa, sem amor à arte, mas com os olhos nos contratos milionários.
Não precisamos de neyMARKETING Jr. Não necessitamos de daviDOLAR Luiz. Muito menos de feliPROPAGANDA Scolari ou de freDINHEIRO ou de imperadores de araque, como Júlio César (que não impedem a derrocada desse império sujo do futebol de várzea que jogaram).
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Se precisamos de atletas com espírito esportivo (como foram um Garrincha, um Pelé, um Nilton Santos e um Barbosa), tanto mais almejamos vencer outro campeonato. Golear as carências e construir mais escolas, hospitais; ao invés dos bilhões para novos templos do futebol, verbas para segurança, estrada, emprego, saneamento, moradia popular.
Venho dizendo há tempos que o Brasil vai se mediocrizando há décadas e a passos largos, nivelando tudo por baixo. E o sintoma disso é tanto o futebol anêmico como temos praticado (ganhamos as últimas Copas sem brilho e sem jogadas inteligentes), como nas artes e na política, esta apequenada, da negociata e do escândalo (esse o padrão FIFA a que estamos sendo condenados?).
Um país que dá mais valor ao futebol e ao Pedro Bial; à tv e ao BBB; que enche estádios para ver Michel Teló, Luan Santana, Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Daniela Mercury ou entra em delírio diante da profusão de duplas sertanojo; que lota praças num transe demencial para assistir à manipulação estelionatária e mercenária das pregações evangélicas, esse país está fadado a se bestializar cada vez mais.
Ao invés de arenas de rodeio e estádios suntuosos, ou o hexacampeonato (que vai sendo adiado pela nossa incompetência de jogar bem em casa), deveríamos sonhar mesmo com de salas de aula e bibliotecas, erguer o caneco do índice de leituras e de alfabetização, orgulhar-se do diploma de um curso bem concluído e da qualificação profissional. No lugar de templos evangélicos e presídios, precisamos semear livros e cultura de qualidade. Mais salas e menos celas. Mais educadores e menos pastores. Mais Paulos Freires e menos Edir Macedo. Mais Pestalozzis e menos Marcelo Rossi.
O nosso jogo é contra a miséria, a ignorância. É para driblar a pobreza de espírito, a falta de educação (que vaiou equipes adversárias nos estádios). É para dar um olé na péssima condição da saúde e do ensino público, da insegurança. É para derrotar a alienação e o provincianismo de todas as classes que dominam o país.
É tudo isso que nos avilta e humilha mais que a goleada germânica sobre a seleção macunaíma. O que empobrece e nos joga ainda mais no esgoto da civilização são os salários nababescos desses jogadores (a maioria sequer sabe usar o plural ou colocar corretamente um pronome), enquanto um professor, um médico do SUS, um policial, um gari, um trabalhador rural ganham uma miséria. Essa é a grande tragédia, não o Maracanazo de 1950 ou o Mineirazo de 2014. O Brasil da Copa, agora é um povo na Cova. Como diria Nelson Rodrigues, “o pior cego é aquele que só vê a bola”. Esse país que lê Paulo Coelho e Fábio de Melo, que ouve pagode e funk, só podia ser goleado por quem nos deu um Goethe e Thomas Mann; por quem tem Mozart e Beethoven na escalação de sua civilização.
Toma jeito, Brasil!
Ronaldo Cagiano é escritor.

Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, Tadeu Alencar Arrais fala sobre o polêmico projeto de desafetação de áreas públicas em Goiânia e sobre o seu novo livro, “Morar na Metrópole, Viver na Praia ou no Campo”
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Ademir Luiz e Adriana Ap. Silva Especial para o Jornal Opção
Um dos maiores clássicos da literatura geográfica é o livro “A Geografia: Isso Serve, em Primeiro Lugar, Para Fazer a Guerra”, do francês Yves Lacoste. Em Goiás, um dos geógrafos mais aguerridos é Tadeu Alencar Arrais, Professor Associado do IESA-UFG e Coordenador da Rede Goiana de Pesquisa em Desenvolvimento Regional e Análise da Informação Geográfica. Com graduação e mestrado em Geografia pela UFG e doutorado em Geografia pela UFF (RJ), Tadeu Arrais é conhecido pela personalidade forte e, principalmente, pela seriedade e rigidez com que desenvolve suas pesquisas. Intelectual ativo e antenado, sendo bolsista nível 2 do CNPq, está lançando pela editora da UFG o livro virtual “Morar na Metrópole, Viver na Praia ou no Campo”. Nessa entrevista Tadeu Arrais fala de sua participação na polêmica sobre o projeto de desafetação de áreas públicas em Goiânia (PL-50), a distância entre a universidade e o poder público, o mercado imobiliário, educação geográfica, o fenômeno da difusão dos condomínios fechados e conta os motivos que o levaram a desistir da literatura. O livro que Tadeu Arrais está lançando encontra-se disponível gratuitamente no link: (http://bit.ly/1ogJQvb).
Ademir Luiz — O projeto de desafetação de áreas públicas de Goiânia (PL 50) foi aprovado na câmara de vereadores em votação realizada do dia 13 de maio de 2014. O senhor foi o principal crítico e opositor dessa proposta, encabeçando inclusive um abaixo-assinado contra ela. Agora que a desafetação é uma realidade, embora alguns vereadores de oposição estejam levando o caso à justiça comum, quais seriam as consequências imediatas para a cidade?
Temos que pensar o impacto em duas escalas. O mais imediato é para a escala dos bairros que perderam a possibilidade de construção de equipamentos públicos de lazer, bem como de receber infraestrutura de serviços públicos, como escolas e postos de saúde. Além disso, a verticalização, em todos os bairros, provocará prejuízos irreparáveis ao trânsito e, especialmente, ao meio ambiente. O segundo impacto é na escala da cidade, de forma geral, uma vez que esse tipo de procedimento abre precedentes para novas desafetações em grande escala. Veja. Estamos tratando de mais de 200 mil metros quadrados. Na verdade, o governo municipal quer financiar a política urbana com a venda de ativos públicos. Imagine uma dona de casa que, a cada crise financeira, resolva vender um cômodo de sua residência para complementar o custeio mensal. O que sobrará para o futuro? É muito sério. Dezenas de bairros de Goiânia não têm sequer uma área pública e a população, basta observar o perfil demográfico, necessitará cada vez mais dessas áreas. Veja um exemplo sintomático da falta de compromisso com o futuro: existe uma área no setor Bueno de 4.795,06 m2 que será doada. A SMT (Secretaria Municipal de Trânsito) necessita de uma sede. Pergunta: será que ninguém percebe que aquela área no Setor Bueno, de excelente localização e acessibilidade, é um espaço ideal para sede da SMT, assim como para a Guarda Civil? Não. É melhor gastar com aluguel do que melhorar as condições de trabalho da Guarda Civil e dos agentes de trânsito.
Ademir Luiz — Alguns dos partidários da desafetação afirmam que os argumentos dos opositores são mais emocionais do que técnicos. Como o senhor se posiciona frente a essa acusação?
Concordo em parte. É claro que também são emocionais. Quem não se emociona ao ver um campo de várzea, única opção de lazer da garotada, ser destruído? Quem não se emociona ao ver uma praça construída por um idoso com recursos de sua aposentadoria ser vendida? Também compreendo que alguns vereadores não entendam os argumentos técnicos e isso tem uma explicação simples: não conhecem o Plano Diretor. Não se importam em ler, em estudar as leis que regulam o uso e a ocupação do solo. Leis aprovadas naquela casa. É mais fácil fazer discurso e ceder às cotidianas chantagens do Paço Municipal do que olhar para o futuro e preservar os espaços públicos. O argumento comum foi que precisamos desse recurso para fazer obras nos bairros. Alguns até disseram que a UFG é elitista, que não compreende as demandas da população. Pura chalaça. Um pequeno exemplo. O PL-50 não autoriza apenas a venda, permuta ou doação de áreas, mas também transforma, automaticamente, essas áreas em PDU-I (Projetos Urbanos Diferenciados), o que resulta, em síntese, na autorização para verticalização total dessas áreas. Sem essa transformação, uma afronta ao Plano Diretor, essas áreas não teriam interesse algum para o mercado imobiliário. Bingo. Então quem atende aos interesses da elite? A UFG ou o governo municipal que apoiou integralmente o PL-50? Em nosso relatório apontamos que apoiaríamos a destinação dessas áreas para moradia popular, mas nem isso sensibilizou os vereadores da base, mesmo porque a população pobre, jamais, poderá residir nas regiões nobres da cidade, não é mesmo? Quem poderá adquirir aquela área de 60.632,62 m2, no Portal do Sol? Assim responderam os representantes do governo municipal que estiveram presentes na audiência pública: “Qualquer um!”. Não sei em que cidade eles vivem.
Adriana Ap. Silva — Durante o desenrolar da votação do projeto de desafetação das áreas públicas em Goiânia, ficou evidente o distanciamento de opiniões entre a academia e o pensamento da maior parte dos representantes públicos desta cidade. Como promover o diálogo entre a administração pública e a academia?
Sou cético em relação ao diálogo. Vamos lembrar. O prefeito é egresso da UFG e não é a primeira vez que o IESA se manifesta contra a sua política urbana. Ele até fez visita ao novo reitor. Apenas um protocolo. Um dos vereadores do PT que defendeu o PL-50 foi aluno do IESA. Então não posso dizer que existe alguma ponte entre o governo municipal e o IESA. E por que isso acontece? A chantagem é o macro componente da atual política do governo municipal e o maniqueísmo é a forma discursiva que procura, por exemplo, classificar aqueles que hoje são contra venda de áreas públicas (esse é só um exemplo) como intelectuais conservadores e patrimonialistas. Não podemos ser ingênuos. A arena da pesquisa, da técnica, é distinta da arena da intervenção política.
Ademir Luiz — Qual foi o papel desempenhado pelo Ministério Público na questão da desafetação, considerando que o projeto partiu da assinatura de um termo de ajuste de conduta entre o MP, na pessoa no promotor de justiça Maurício José Nardini, e a prefeitura de Goiânia?
O Ministério Público tem um parecer técnico, muito bem elaborado, que condena a natureza do primeiro projeto de desafetação. Quando digo natureza, refiro-me a concepção de financiamento da política urbana. Agora, diante desse debate, confesso que causa estranheza o silêncio do Ministério Público que tem, historicamente, lutado com afinco pelos interesses da comunidade. É bom citar a parte final do relatório do Ministério Público que foi contundente em relação ao projeto de desafetação: “Configura-se, sem sombras de dúvidas, que o sr. prefeito agiu com dolo, com vontade e consciência, posto que propôs Projeto de Lei que vai de encontro com todo o Regime Democrático de Direito, chocando-se com as normas constitucionais, os direitos e garantias fundamentais da participação, da publicidade. Ao propor um projeto que desobedeceu frontalmente as normas legislativas insculpidas na Lei 10.257/01, agiu livremente, sem qualquer tipo de vício em sua vontade ou mesmo sem previsibilidade: o sr. Paulo Garcia elaborou o projeto com o propósito, único e exclusivo, de dilapidação do patrimônio público, de retirar do domínio do Município 33 (trinta e três) áreas públicas, que, em razão de manobras evasivas, antidemocráticas e de moralidade questionável por parte da Câmara Municipal, resultaram na verdade na perda de 70 (setenta) áreas públicas”. As diferenças entre o PL-224 e o PL-50 são apenas formais, não mudando, em minha opinião, o conteúdo da ação e os prejuízos para a coletividade.
Ademir Luiz — Após a aprovação do PL-50, o senhor liderou uma campanha na qual se pretendia construir alguns equipamentos públicos nos terrenos previstos para venda. Pareceu-me mais uma forma de marcar posição do que necessariamente a invasão desses terrenos, até pela proporção das ações tomadas, mas mesmo assim o movimento foi reprimido pelo poder público. Como foi isso?
Essa ideia surgiu, na realidade, sem pretensões, em um grupo da comunidade, liderado por uma moradora chamada Ludmila. Em cinco dias, em parceria com uma arquiteta chamada Maria Ester, fizemos o projeto urbanístico, coletamos doações, mão-de-obra, equipamentos, máquinas e mobilizamos a comunidade. A logística foi perfeita. Veja que estamos tratando de uma área de 10.000 m2, com cobertura de pastagem, de difícil manejo. Então o que a comunidade fez nesse curto período? Uma pista de caminhada no perímetro da área, de aproximadamente 1.100 metros. Um playground para as crianças, com alguns bancos e brinquedos doados. Um campo de futebol para as crianças da região. A limpeza total do terreno e o plantio de aproximadamente 150 mudas, com orientação de agrônomos da UFG. Para nossa surpresa, por volta das 10 horas da manhã, chegou o secretário de fiscalização do município. Segundo declarou para um jornal local, a comunidade já estava sendo “monitorada”. Achei isso engraçado. Nunca pensei que fosse um subversivo. Como esse governo gasta energia com coisas pequenas. O secretário implicou com um memorial de 1m X 0,80 cm e chamou a polícia militar para tentar intermediar a conversa e derrubar aquela “obra” que feria o Código de Posturas. Ora, o nosso Código de Posturas é rasgado pelo governo municipal todos os dias da semana. Quando percebeu que não recebeu o apoio devido da polícia militar, que não reprimiu de forma alguma o movimento, o secretário chamou os fiscais que passaram a notificar a comunidade. Uma forma pouco inteligente de intimidação. Nada disso era necessário. Repito. O prefeito Paulo Garcia deveria ter orgulho dessa comunidade que demonstrou compromisso com o espaço público. A resposta do governo, para todos os jornais, é que o assunto do PL-50 foi amplamente discutido nas comunidades. Se alguém da prefeitura disse isso, é mentira. Já passei da idade de eufemismos. É mentira. As duas audiências públicas não ocorreram com a presença das comunidades e mesmo assim todos foram contra o PL-50. Então, além de não ter nada de sustentável, essa gestão perde, a cada dia, seu verniz democrático. A comunidade espera que o prefeito reverta a situação e não recorra da decisão judicial que impede a venda. Não sou otimista, mas se isso ocorrer pode ser o início de um novo relacionamento da prefeitura com aquela comunidade. De qualquer forma foi uma excelente experiência.
Adriana Ap. Silva — No Blog “Necrópole”, o senhor reúne textos que tratam do que entende como a “Derrota política de Goiânia”. O que o motivou na criação deste blog? O senhor considera um espaço de informação, denúncia ou desabafo?
Um colega disse que o site “Necrópole Goiânia” era uma provocação. Discordo. Provocação é observar calçadas entupidas de carros, ruas sem sinalização, praças depredadas, lixo na rua, som automotivo que não permite o sono diário, enfim, um repertório interminável de experiências negativas que ferem o Código de Posturas Municipal. Então, “Necrópole” é uma modesta resposta a esse tipo de provocação diária. Sei que esse governo não é o único culpado pela situação deplorável, do ponto de vista do espaço público, de nossa cidade. Enfim, “Necrópole” é hipérbole pura. Uma forma de homenagear o grande historiador Lewis Mumford.
Ademir Luiz — O senhor está lançando pela editora da UFG o livro virtual “Morar na Metrópole, Viver na Praia ou no Campo”, resultado de seu pós-doutorado. O título é significativo e sutil, tendo sido construído de maneira a defender que é possível morar na metrópole, mas só se vive realmente na praia ou no campo. O senhor propõe um estudo comparativo entre as regiões metropolitanas de Fortaleza e Goiânia. Quais foram os resultados principais da pesquisa?
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O livro tem como foco de estudo o que chamamos de segunda residência. O estudo dessa temática, tradicionalmente, foi mais destacado para as áreas litorâneas, processo adjetivado de veraneio. Para se ter uma ideia, no Brasil, segundo dados do IBGE, em 2010, existiam 3.932.990 domicílios de uso ocasional. Só nas regiões metropolitanas existiam, em 2010, 1.402.388 domicílios de uso ocasional. Esses domicílios, geralmente, estão localizados em áreas próximas às grandes metrópoles, já que esses espaços, por assim dizer, exercem o controle fundiário de áreas com amenidades ambientais: espaços litorâneos, áreas serranas, balneários. Então o problema que se coloca é o seguinte: em um país com déficit habitacional, qual o impacto da expansão do mercado de segunda residência para o conjunto da sociedade? Partimos do princípio que, além do controle fundiário exercido por atores localizados nas metrópoles, esse padrão de expansão causa problemas para os municípios periféricos, especialmente na regulação do solo urbano. Nossas pesquisas apontam que na Região Metropolitana de Goiânia, no formato de condomínios de chácaras, foram convertidos mais de 25 milhões de metros quadrados de áreas. E por que esses condomínios estão localizados nos municípios periféricos? São três motivos, em especial. O grande estoque de áreas rurais, a pouca regulação do uso do solo por parte dos municípios periféricos e a proximidade dos eixos rodoviários que garantem acesso aos condomínios. Assim, as áreas rurais estão sendo convertidas, algumas irregularmente, em condomínios que não cobram IPTU, ITU e, consequentemente, poucos contribuem com as receitas tributárias municipais.
Ademir Luiz — O livro apresenta uma apurada reflexão sobre o mercado imobiliário. Em determinado momento, o senhor estabelece que o “Estado é o principal ator na análise”, explicitando as relações entre a administração dos espaços urbanos e os “atores ligados ao mercado imobiliário”, demonstrando o quanto estão amalgamados. Como essa perspectiva pode ser compreendida no cenário goiano?
Acho que esse cenário é uma característica, em menor ou maior grau, da maior parte das cidades nos vários continentes. Veja, por exemplo, o livro Mike Davis, “Cidade de Quartzo”, sobre Los Angeles. O Estado, de forma geral, é o responsável pela regulação do uso do solo urbano. Entretanto, nessa arena política, os atores do mercado imobiliário determinam as decisões sobre o ordenamento do solo urbano, a exemplo da política de zoneamento. Em Goiânia assistimos isso com as sucessivas mudanças no Plano Diretor. Lutar contra essa tendência exige, dos demais grupos de atores sociais, muita organização.
Ademir Luiz — Em seu novo livro o senhor retoma a questão dos condomínios fechados que “estão incrustrados em espaços distantes dos núcleos urbanos, dispersos em áreas rurais e/ou de expansão urbana, protegidos por muros e/ou alambrados”. Em um trabalho anterior, o artigo “Goiânia: as imagens da cidade e a produção do urbano”, o senhor chama atenção para o contrassenso representado pela expansão dos condomínios fechados, que vendem ao mesmo tempo o isolamento e um retorno ao espírito campestre, justamente em uma cidade que se pretende ecologicamente correta, a cidade do verde e das flores. Como explicar esse fenômeno? É um tipo de “espetacularização do lugar”, considerando que usou um trecho de Guy Debord como epígrafe do novo livro?
Debord é um especialista em sínteses. O espaço tornou-se, mais do que nunca, uma mercadoria vendida aos pedaços. Há uma intencionalidade específica em relação às chamadas casas de campo, especialmente nos condomínios fechados. Vendem um “campo” que não existe, um “ambiente” fabricado pelo marketing imobiliário. Visite alguns desses condomínios e verá o seguinte: práticas urbanas, como som automotivo e manejo irregular de resíduos que nem de longe lembram um ambiente sustentável. A política de segurança, associado ao lazer, é outra propaganda. Cada uma dessas “amenidades” também gera despesas de custeio, o que, não raro, torna os condomínios desses “condomínios” mais onerosos que os condomínios localizados na capital. Mas o fundamental é que a maior parte desses condomínios colabora muito pouco ou não colabora para a economia desses municípios.
Ademir Luiz — Para além de sua produção acadêmica, o senhor escreve livros didáticos e paradidáticos, trabalhando, sobretudo, a Geografia de Goiás e do Distrito Federal. Qual o enfoque de seu trabalho nesse campo? Como instigar os jovens ao estudo da Geografia?
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O livro didático e o livro informativo (prefiro esse termo ao paradidático) exigem um tipo específico de atenção em relação aos conteúdos e, especialmente, a estrutura narrativa. Não é fácil fazer um bom livro didático e, digo logo, quem deve dizer se esse livro é bom ou não, certamente, é o professor e o aluno. Existem vários limites para produzir um livro didático. Para o PNLD, por exemplo, não tem como fugir dos padrões determinados nos editais, o que interfere, de algum modo, nos conteúdos. Atualmente, prefiro trabalhar com as editoras regionais, a exemplo da Cânone, que oferece mais liberdade ao autor. Mas o livro, quando consideramos a relação ensino-aprendizagem, é apenas um dos elementos no processo formativo e digo, em minha opinião, não é o mais importante. O mais importante é um professor bem formado e motivado. Não podemos reduzir o ensino de Geografia aos conteúdos do livro didático. O mundo, o cotidiano do aluno, é mais complexo e interessante que qualquer manual. Penso que o desafio não é, apenas, ensinar Geografia, mas, sobretudo, ensinar ciência de uma maneira geral. É incrível como a ciência está em toda parte. A ciência, desde a modernidade, foi concebida pelo signo da interrogação, da verificação, da experimentação, da curiosidade. E como representamos, de maneira geral, a ciência na escola? De uma forma bastante burocrática, com respostas prontas.
Ademir Luiz — Para terminar, em 1999 o senhor publicou dois contos no livro “O Professor Escreve sua História”, organizado pela professora Vera Maria Tietzmann. Um dos contos, “Ensinar geografia”, foi muito elogiado, enquanto o outro “A pimenta”, foi mote de uma polêmica com o jornalista José Maria e Silva. Ou seja, foram trabalhos discutidos, que chamaram a atenção. Posteriormente, em 2003, publicou o livro “Viagens do Brasil — Relatos da Gente”, que saiu pela editora Mercuryo Jovem. Embora a Geografia sempre tenha estado presente, foram, sem dúvida, experiências de narrador, de ficcionista. Pretende voltar a escrever ficção?
Engraçado lembrar-se disso. Um colega na universidade, muito tempo depois, mostrou a crítica do jornalista. Achei engraçada. Sugerir uma associação entre a “transgressão”, ficcional, narrada no texto e outras “transgressões maiores”, como o incêndio do índio pataxó, foi um exagero. Naquele momento notei que não tinha nenhum talento literário e que era melhor direcionar minhas energias ao estudo da Geografia.

André Gomes
Especial para o Jornal Opção
[caption id="attachment_9631" align="aligncenter" width="544"] Shawn van Daele[/caption]
Você que de quando em vez chora à noitinha, na solidão da alcova. Você que se arrebenta no cumprimento das obrigações. Que perde um tempo danado desviando das porradas de todo dia.
Você que tem medo do arrependimento um minuto depois de tomar uma decisão. Você que esconde seu pavor de morrer só, de não ter onde cair morto, de lhe faltar um gato para puxar pelo rabo.
Você que ainda tem avós mas que pouco os vê. Que tem saudade da infância, que sente culpa por não telefonar mais seguido a seus pais. Você que já não tem pais e nem avós e quase só usa o telefone para pedir comida e responder que não, não quer assinar jornal nenhum.
Você que tem uma inveja inofensiva das pessoas que demonstram afeto. Você que queria ter mais irmãos, você que tem irmãos distantes, você que não tem irmão nenhum.
Você que ainda corta a carne no prato do filho ou da filha. Que tem criança pequena e conhece o medo doloroso de lhe faltar.
Você que se deu conta de que nunca será um astronauta, um campeão olímpico, um astro do rock. Que acha superficial e cínico quem defende que não se deve dar esmolas, quando a quem pede esmolas nada se faz para ajudá-lo a seguir outro caminho.
Você que olhou nos olhos de um mendigo e sentiu um calafrio em algum lugar insuspeitado da alma.
Você que sentiu culpa por estar ocupado demais para ouvir um amigo quando ele mais honestamente precisou falar.
Você que já passou horas deitado no sofá de barriga para baixo, cutucando com a unha a sujeira leve que pousa e se instala impertinente nas ranhuras do chão. Você que enxerga rostos nos desenhos dos ladrilhos. Que observou a poeira flutuando contra a luz do sol e lembrou de um amor antigo. Você que não sabe lidar com um amor novo.
Você que, no mais das vezes, das conversas do dia a dia não ouve nada senão relinchos, cacarejos e conversas para boi dormir entupidas de preconceito e burrice.
Você que já se perguntou onde repousam as borboletas, enquanto imaginava sua vida secreta, e esse foi seu único instante de paz no dia confuso. Você que descobriu espantado que as baratas, quando esmagadas pelo chinelo da gente, liberam ovos que se transformarão em novas baratas que sobreviverão à hecatombe nuclear.
Você que já pediu a Deus um tempo para viajar a um lugar distante e ver o sol nascer de outro canto, na tentativa honesta de lavar com sabão e esponja a sua alma cheia de borras e sentimentos esverdeados, envelhecidos. Depois estendê-la no varal de um dia inteiro e deixá-la ali secando ao sol.
Você que já teve a impressão de que, se não fizer alguma coisa, a vida periga se transformar em um eterno domingo à noite. Você…
Seja bem-vindo. Bem-vinda. Dá cá um abraço. Viver dói e se dói é porque você vive. Resista, deixe estar.
E acredite: para cada angústia há uma desforra gloriosa, esperando sua vez de vir ao mundo.
André Gomes é escritor e publicitário.
via Revista Bula

A pesquisadora Lúcia Garcia escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite carioca às vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos iniciais da República
Adelto Gonçalves Especial para o Jornal Opção
Atribui-se a Lucien Febvre (1878-1956), fundador da Escola dos Annales, a ideia segundo a qual a História poderia ser contada a partir da escolha de novos objetos de estudos, o que constituiu uma revolução na historiografia, tal foi o número de trabalhos que se seguiram a partir da década de 1950 com recortes específicos. Deixou-se de lado a concepção tradicional que marcaram os livros de História até então, baseados nos feitos dos grandes nomes — reis, presidentes, primeiros-ministros, governadores. Hoje, um livro que siga esse modelo é visto como quinquilharia de museu, a tal ponto que um autor chegou a ser acusado pejorativamente na universidade de candidato a membro de algum instituto histórico.
É claro que a História vista em mínimos detalhes é sempre mais interessante do que aquela que se baseia nos feitos dos “grandes”. O problema é encontrar nos arquivos resquícios do que pensaram ou disseram aqueles que eram iletrados e, portanto, não deixaram registros de suas vivências, queixas, emoções ou anseios. Quer se queira ou não, a História sempre será escrita a partir da visão dos letrados, daqueles que deixaram registro do que viram e viveram, refletindo obrigatoriamente a visão de mundo da classe dominante.
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Mas a que vêm estas reflexões? Vêm a propósito do livro “Para uma História da Belle Époque: A Coleção de Cardápios de Olavo Bilac”, de Lúcia Garcia, com prefácio do poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em Portugal, Nigéria, Benim, Colômbia e Paraguai.
A partir da ideia de Febvre, Lúcia Garcia escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac (1865-1918), que faz parte do acervo da Academia Brasileira de Letras, como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite carioca às vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos iniciais da República. Aliás, como observa Lúcia Garcia, Bilac, certamente, colecionava menus dos almoços, jantares e banquetes festivos de que participava no Brasil e no mundo.
É de assinalar que, como explica a autora, a palavra cardápio é um neologismo criado pelo filólogo Antônio de Castro Lopes (1827-1901) na década de 1890 para substituir a palavra francesa menu que, a rigor, significa miúdo e não tem em português equivalente, pelo menos no sentido de almoço, jantar ou ceia.
Diz a pesquisadora ainda que Bilac “preservava os cardápios para revisitar os momentos vividos, em benefício da memória, como antídoto ao esquecimento”. Entre os cardápios reproduzidos estão alguns de banquetes em homenagem ao próprio poeta, homem célebre ao seu tempo, e outros que celebravam o IV Centenário do Descobrimento do Brasil, a visita ao Rio de Janeiro da famosa atriz italiana Tina Di Lorenzo (1872-1930) e acontecimentos diversos.
Nos menus, acrescenta a pesquisadora, estão presentes as confeitarias Pascoal e Colombo, entre outros estabelecimentos comerciais conhecidos e frequentados pela classe dominante no Rio de Janeiro no início do século 20. Como diz Lúcia Garcia, a extensa coleção doada à ABL por Bilac, ou por seus familiares, revela a rede de sociabilidade do escritor, quer pela indicação do anfitrião, quer pela assinatura dos comensais. A essa época, é de ressaltar que havia uma “febre” entre as pessoas bem-postas na vida de colecionar autógrafos e cartões postais.
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Como diz Alberto da Costa e Silva no prefácio, esta coleção revela como novos padrões se iam popularizando no País e, como pela lista de pratos, afrancesavam-se cada vez mais as elites. A partir daí, Costa e Silva imagina o que se conversava à época os vizinhos de mesa, já que ecos dessas tertúlias não ficaram, a não ser esparsamente em crônicas, como as que Machado de Assis (1839-1908) e mesmo Bilac assinavam nos grandes jornais.
Diz: “É provável que, num almoço, se discutisse a abertura da Avenida Central pelo prefeito Pereira Passos ou a campanha sanitária de Oswaldo Cruz”. E acrescenta mais adiante: “Pois ainda havia quem não tivesse saído do assombro ou se acostumado, de alma rendida, à aspirina, à lâmpada elétrica, ao telégrafo, ao cabo submarino, do rádio, ao telefone, ao navio a vapor com hélice e casco de ferro, ao motor de combustão interna, ao automóvel com pneu de câmara de ar, às máquinas voadoras, aos raios-X, ao cinematógrafo e à partilha da África e de parte da Ásia entre as potências europeias”.
Da coleção constam ainda fotografias de um almoço — do qual não restou o cardápio — na década de 1910 na fazenda em Louveira, no interior do Estado de São Paulo, de Júlio Mesquita (1862-1927), fundador e proprietário do jornal “O Estado de S. Paulo”, do qual Bilac também era colaborador. De notar, como assinala a pesquisadora, é que Bilac nas fotografias sempre fazia questão de aparecer de perfil. É essa também uma rara foto em que aparece alguém das classes menos favorecidas, o cozinheiro da fazenda de Mesquita, sentado meio a contragosto e sem jeito no primeiro degrau de uma escada à frente dos demais.
Lúcia Garcia (1979) é doutora e mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participou de vários projetos de pesquisa histórica documental e iconográfica nos últimos anos, tendo colaborado como consultora na “Comissão para as comemorações do bicentenário da chegada de D. João ao Rio de Janeiro” (Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro). É autora de “Euclides Da Cunha: Escritor por Acidente e Repórter do Sertão” (São Paulo, Companhia das Letras), “A Transferência da Família Real para o Brasil 1808 2008”, com outros autores (Lisboa: Tribuna da História), “Rio e Lisboa: Construções de um Império” (Lisboa: Câmara Municipal) e “Documentos Oitocentistas da Biblioteca Nacional”, coautoria de Lilia Schwarcz (Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional). É coautora de “Impresso no Brasil: Destaques da História Gráfica”, organizado por Rafael Cardoso (Rio de Janeiro: Verso Brasil).
Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literatura Espanhola e Hispanoamericana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.

Paulo Lima
Definitivamente, para o Feitosa aquela não foi uma das melhores manhãs. O chefe havia brigado com a amante, o faturamento não saiu do lugar e ele chegara novamente atrasado ― a terceira vez na mesma semana. Um recorde invejável para uma quarta-feira. Seu único consolo: naquele dia trabalharia apenas no período matutino. Conseguira uma dispensa programada para ir ao médico à tarde ― um hábito carioca na capital paulista. “Que ninguém desconfie da treta”, pensou.
Alguém abre a porta de sua sala e avisa que a direção marcou uma reunião para as 13h00. “Ninguém poderia faltar”, insistiu o mensageiro. A ênfase era proposital, pois era sabido que o Feitosa programava nem retornar após o almoço. Justo naquela tarde a qual, depois de muitos “amanhã, quem sabe”, se rendera aos apelos da esposa para assistir a um filme no cinema, coisa que ele simplesmente odiava. Tinha que ser à tarde, pois de noite as crianças não deixavam e nos fins de semana os avós acampavam em sua casa. Na sua simplicidade, não conseguia entender por que, tendo em casa um videocassete, tinha de enfrentar o trânsito louco da velha Sampa para ver “O Silêncio dos Inocentes”, sucesso absoluto nos anos 1990. E agora, aquele maldita reunião.
[caption id="attachment_9638" align="alignleft" width="300"] Foto: M. File[/caption]
Sabia que o chefe perdoaria a amante, mas nunca um funcionário ― especialmente ele ― que faltasse a um compromisso importante. Ligou para a esposa, avisou que iria direto do trabalho, levou uma bronca da patroa indignada com o fato de se aprontar toda para se encontrar com homem sujo e, ainda por cima, ficou sabendo que o sogro e sua digníssima também iriam. Não temia pelo sogro, um psiquiatra aposentado cuja única neurose era uma inexplicável obsessão por pontualidade. Temia, sim, pela jararaca, que insistia em dizer à filha que seu marido era um pervertido, atiçando um ciúme que por si só já ameaçava as sombras. Mas não estava em condições de exigir o que quer que fosse e confirmou para as 16h30. “Três horas me darão uma boa margem de manobra”, concluiu.
Não, não era o seu dia. A reunião terminou as 16h00 e o cinema ficava a pelo menos 40 minutos do escritório, em condições normais de trânsito. Como havia garoado, a Marginal Tietê já era o centro das atenções. Saiu apressado, xingando intimamente o patrão pelas indiretas que insistentemente lhe dirigiu durante todo o tempo, esbarrou na secretária que manchou de batom vermelho o ombro de sua camisa branca e alcançou o carro já pensando numa boa explicação para a mais ciumenta das primeiras-damas. Olhou para o relógio, respirou fundo e arrancou, decidido. Não chegaria atrasado mais uma vez.
No caminho, perdeu a conta dos sinais vermelhos que atravessou. E, com certeza, um dia pediria mil perdões ao dono do Del Rey (ou teria sido um Monza?) que amassou a lateral do seu Uno Mille, por culpa de sua justificada pressa.
Estacionou na porta do cinema às 16h40. O sogrão apenas olhou para o relógio. A mulher e a sogra não tiravam o olhar de sobre o vermelho comprometedor que lhe decorava a camisa. Cumprimentou a todos sem graça, comprou os bilhetes e passou por último pela roleta, explicando ao velho que acabara de assaltar um banco, coisa que normalmente demora mais do que o previsto. Ninguém sorriu com a piada. As mulheres continuavam sérias, como que prometendo exigir uma explicação no momento oportuno.
Sem dúvida, todo homem tem seu dia de cão e aquele fora dedicado ao Feitosa. Na mesma tarde, ao mesmo tempo em que corria para chegar na hora marcada, um casal corria por ruas próximas após assaltar um banco, tendo causado a morte de uma velhinha que estava no local e sofria do coração. Dirigiam um Uno Mille prateado, que também se chocou com vários carros, tendo sua placa anotada às pressas por um guarda de trânsito, com as possíveis inscrições: PQ-1381. A do Feitosa era PQ-1831.
Fim do filme, efusivamente elogiado pelo sogro, as senhoras não pareciam tão animadas. Ao sair do cinema, o inusitado: os quatro foram abordados por três policiais que apontavam suas armas para o matador de serviço. Além disso, uma equipe da Rede Globo apontava suas câmaras para o grupo, um batalhão de fotógrafos e repórteres de rua se digladiava por um espaço melhor, curiosos se acotovelavam e uma multidão contida por um cordão de isolamento improvisado pedia por linchamento. Um homem alto e magro, relativamente bem trajado, lhe mostra uma insígnia parecida com aquelas dos filmes americanos.
― O senhor é o proprietário deste veículo? ― falou, apontando para o Mille prateado, estacionado em local proibido.
― S-sim... Sou sim.
O velho e bom Feitosa, gaguejando, já procurava se lembrar de algum amigo do Detran para se livrar da multa.
― O senhor foi visto dirigindo perigosamente este veículo com uma mulher loira ao seu lado, após assaltarem uma agência do Banco Itaú, deixando uma senhora morta no local. Sua placa foi anotada por aquele guarda ali e a lateral amassada confirma que o senhor bateu num Monza azul. Se o senhor tem algo a declarar, sugiro que nos acompanhe até a delegacia, antes que não consigamos deter a multidão.
Não se sabe ao certo quanto tempo aquele homem que começou mal o seu dia ficou ali paralisado, sem conseguir pronunciar uma única palavra. Era o silêncio de um inocente, que sabia que qualquer coisa que dissesse poderia piorar o impiorável. Afinal, à sua volta, além de centenas de populares enfurecidos, estavam um oficial de justiça, a imprensa transmitindo o acontecimento ao vivo e do outro lado da telinha o seu patrão apreciando tudo, policiais prontos para atirar, seu carro novo já não tão novo assim ao lado de uma placa de “proibido estacionar”, um guarda de trânsito com ar convicto, sua esposa em choro convulsivo, a sogra em estado de graça e, de quebra, um psiquiatra doido para tirar o atraso.
Paulo Lima é escritor e publicitário.