Villa-Lobos: a independência musical do Brasil
19 julho 2014 às 22h03
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Se as primeiras composições de Villa-Lobos trazem a marca dos estilos europeus da virada do século 19 para o século 20, será a partir de 1914 que ele iniciará seu “repúdio” aos moldes europeus e o desenvolvimento de uma linguagem própria. O folclore musical será a base de toda a sua criação artística
Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção
Heitor Villa-Lobos foi o principal responsável pela descoberta de uma linguagem peculiarmente brasileira em música de arte e o maior expoente musical do modernismo brasileiro.
Carioca, nascido em 1887, filho de Raul Villa-Lobos, um músico amador, foi ele quem lhe deu as primeiras instruções e adaptou uma viola usada para que o pequeno Heitor iniciasse seus estudos de violoncelo. Aos 12 anos, pobre e órfão do pai, Villa-Lobos passou a tocar violoncelo em teatros, cafés e bailes. Em 1903, terminou os estudos básicos no Mosteiro de São Bento.
Costumava juntar-se aos grupos de choro, que foi sua primeira paixão na música popular, tocando violão em festas e em serenatas. Conheceu e tocou em parceria com músicos populares famosos como Catulo da Paixão Cearense, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e João Pernambuco.
Villa possuía uma iniludível necessidade de conhecer a fundo a musicalidade e o folclore de nosso povo. Tendo com recursos unicamente a sua viola e a capacidade de ensinar, realizou suas famosas viagens pelo norte e nordeste do país, as quais duraram mais de sete anos. Os instrumentos musicais regionais, as cantigas de roda e os repentistas deixaram-no absolutamente impressionado. O jovem Villa assimilou em cada povoado, em cada cidade, nas tribos indígenas, nos sons dos animais da mata, a musicalidade de nosso povo e seus regionalismos. Não sem razão é lhe atribuída a “descoberta musical” do povo brasileiro.
O folclore musical será a base de uma imensa criação artística, que por toda uma vida, nem mesmo as doenças interromperam, resultando numa exuberante floresta tropical de obras, maravilhosa, imbricada, extasiante. “O folclore foi uma base filtrada e revigorada pelo temperamento de uma personalidade vigorosa, de força vulcânica”, na expressão de Otto Maria Carpeaux.
Retorna ao Rio em 1912 e já em 1913 casa-se com a conhecida pianista Lucília Guimarães. O domínio exímio do piano, que principiara com uma tia, ele o deveu a essa sua primeira esposa.
Se as primeiras composições de Villa-Lobos trazem a marca dos estilos europeus da virada do século 19 para o século 20, contendo influências de Wagner, de Puccini, de Cesar Frank e logo depois dos impressionistas, será nas “Danças Africanas” (1914), que ele iniciará seu “repúdio” aos moldes europeus e o desenvolvimento de uma linguagem própria, que viria a se firmar nos revolucionários bailados “Amazonas” e “Uirapuru” (1917).
Villa chegará à década de 1920, já perfeitamente senhor de seus recursos artísticos, revelados em obras que, em sua época, conquistaram até mesmo o Velho Mundo. Aquilo que podemos denominar de uma segunda fase musical é cheia da frescura e de descoberta, sendo essencialmente pianística. Nela encontramos as “Cirandas”, a “Lenda do Caboclo”, a “Prole do Bebê”. As experiências pessoais com o folclore brasileiro resultaram em “O Guia Prático”, uma coletânea de canções destinadas à educação musical nas escolas.
Em 1922, Villa-Lobos participa da Semana da Arte Moderna. Nesse momento, ele deu forma musical a uma boa parte da poesia do modernismo brasileiro, destacando-se a adaptação do lirismo íntimo de um Manuel Bandeira, assim como às 14 “Serestas” de 1925. Deste período ainda teremos o “Noneto”, quase uma panorâmica folclórica do interior brasileiro, traduzida pelo gênio do compositor. Também os “Choros” e a “Alma Brasileira”, para voz e piano, aquela que inclui um dos pontos mais altos de toda a nossa musicalidade, o “Rasga Coração”.
Um Villa já formador de opinião viajaria a estudos para a Europa, em 1924 e novamente em 1927, financiado pelo milionário carioca Carlos Guinle, retornando ao Brasil em 1930. Durante esse tempo no Velho Mundo, seu estilo eclético incorporou uma forte influência de Debussy e de Stravinsky, tendo ainda adensado um profundo estudo de Bach e de outros mestres do passado. Seus companheiros e amigos da época relatam que ao virtuosismo ele aliava um trabalho incansável de aprendizado.
Em seu retorno, Villa engaja-se na nova realidade produzida pela Revolução de 1930; realiza uma turnê por 66 cidades, assim como a inovadora “Cruzada do Canto Orfeônico”, levada à cabo na cidade do Rio de Janeiro.
Em 1932, Getúlio Vargas, de quem Villa-Lobos tornar-se-ia grande amigo, assinou um decreto que tornava obrigatório o ensino de canto orfeônico nas escolas. No mesmo ano, foi criado o Curso de Pedagogia de Música e Canto Orfeônico e o Orfeão de Professores do Distrito Federal, ambos os projetos de Heitor Villa-Lobos.
Ele manteve o mesmo apoio recebido durante o Estado Novo. Arnaldo Contier explicou que, por meio de seu projeto de educação musical, Villa-Lobos procurava aproximar-se das massas, objetivando incutir-lhes os ideais de civismo, disciplina e ordem. De acordo com este historiador, pela primeira vez no Brasil, um grande número de pessoas, em coro, teria entoado marchas e canções cívicas.
Além de funcionar como um eficiente método de musicalização infantil em larga escala, o programa de ensino do canto orfeônico implantado oficialmente por Villa-Lobos, funcionava como inteligente mecanismo de transmissão da doutrina política e estética oficial do Estado Novo. Villa-Lobos definia o canto orfeônico como um “fator poderoso no despertar dos sentimentos humanos, não apenas os de ordem estética, mas ainda os de ordem moral, sobretudo os de natureza cívica. Influi, junto aos educandos no sentido de apontar-lhes, espontânea e voluntária, a noção de disciplina, não mais imposta sob a rigidez de uma autoridade externa, mas novamente aceita, entendida e desejada. Dá-lhes a compreensão da solidariedade entre os homens, da importância da cooperação, da anulação das vaidades individuais e dos propósitos exclusivistas”.
Mirelle Ferreira em sua tese sobre Villa, concluiu: “O grande interesse do maestro ao desenvolver seu projeto era ensinar música às crianças nas escolas. Ainda que fosse bem remunerado pelo Estado, não podemos afirmar que o dinheiro movia seu trabalho. Embora Villa-Lobos expressasse sua postura política (alinhado ao Estado Novo), a preocupação principal dela era a música, o ensino, a educação”.
No ano de 1937, o mestre desenvolverá a “Missa de São Sebastião” e a suíte “O Descobrimento do Brasil”, obra prima de uma polifonia desvairada, tropical, quase do tamanho de um “O Guarani”, de Carlos Gomes, no século passado.
O casamento de Villa com Lucília Guimarães termina na década de 1930, conflituoso como já o era de há muito. Lucília jamais concederia o divórcio, ao Maestro.
Em 1936, Villa conhecerá Arminda Neves d’Almeida, a Mindinha, com quem viverá até a morte em 1959. A ex-aluna foi sua grande companheira tanto nos momentos mais difíceis, como após a cirurgia de câncer em 1948, quanto nos momentos de maior glória mundial vivida nos anos 1940 e 50. Deve-se a ela a compilação e divulgação de uma parcela imensa da obra de Villa que permanecera inédita, durante sua vida.
Em 1942, quando o maestro Leopold Stokowski e a The American Youth Orchestra foram designados pelo presidente Roosevelt para visitar o Brasil, o maestro solicitou a Villa-Lobos que selecionasse os melhores músicos e sambistas, a fim de gravar a coleção “Brazilian Native Music”; Villa-Lobos reuniu Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Cartola, que sob sua batuta realizaram apresentações e gravaram a coletânea de discos, pela Columbia Records. Esta coleção que teve uma enorme repercussão incluiu definitivamente a música brasileira no repertório internacional de vanguarda.
Em 1944/45, Villa-Lobos viajou aos Estados Unidos para reger as orquestras de Boston e de Nova York, onde foi homenageado. Apareceu pessoalmente no filme da Disney, “Alô, Amigos” (1940), ao lado do próprio Walt Disney.
Em uma entrevista, em Nova York, Villa-Lobos foi perguntado sobre o uso de melodias indígenas em sua música. Ele respondeu que usava, sim, mas que eram melodias tão antigas que os índios atuais não as conheciam. Pergunta: “Se as melodias foram esquecidas pelos índios de hoje, como o senhor conseguiu entrar em contato com elas?”.
Villa-Lobos, rápido: “Pelos papagaios. Os papagaios brasileiros ouviram essas melodias há muitos anos e não as esqueceram. Eles vivem até uma idade muito avançada. Ouvi os papagaios e anotei as melodias”. Tirada típica do caráter e temperamento do compositor, um trocista emérito.
Em 1945 fundou a Academia Brasileira de Música. A fase que muitos chamam de neobarroca de Villa, estendeu-se por quase 15 anos, cujos maiores destaques foram as “Bachianas Brasileiras”, em número de nove, para diversas formações instrumentais e de vozes. Formam um tributo a Bach que nosso maestro considerava o maior folclorista de todos os tempos. As “Bachianas Brasileiras” são uma síntese absolutamente “sui generis” e genial, que funde sob formas pré-clássicas elementos do folclore brasileiro, como a música caipira, com a intenção explícita de construir uma versão brasileira dos “Concertos de Brandenburgo”.
Alguns trechos se tornaram mais populares mais que outros, como o quarto movimento da “Bachiana n° 2”, a tocata “O Trenzinho do Caipira”; a ária “Cantilena”, que abre a “Bachiana n° 5”; o coral “O Canto do Sertão” e a dança “Miudinho”, ambos na “Bachiana n° 4”.
“Há setenta e sete livros sobre Villa-Lobos, em diversos idiomas, com enormes diferenças de opinião sobre suas obras”, afirma Appleby, um de seus biógrafos. Ele destaca que o compositor, sempre bem humorado, também se dedicava a fantasiar os relatos sobre seu passado. “A cada pessoa ele contava uma história diferente sobre suas viagens entre 1905 e 1911, sobre o tempo em que teria morado com tribos indígenas. Saber o que realmente aconteceu foi o mais difícil”, afirma.
Ao analisar o legado do compositor, o biógrafo David Appleby diz que “Villa-Lobos criou o reconhecimento internacional da música brasileira que tornou possível o sucesso, mais tarde, da música popular brasileira”, colocando-o como um precursor de Tom Jobim, Caetano Veloso e Chico Buarque.
“Villa-Lobos não ligou para diferenças estilísticas entre música clássica e música popular”, afirma. “Tentou exprimir a alma brasileira com as ideias dele, formulando seu estilo individual.”
Não constitui exagero afirmar-se que com Villa-Lobos, a música brasileira alcançou a sua independência!
O maestro foi retratado nos filmes “Bachianas Brasileiras: Meu Nome É Villa-Lobos” (1979), “O Mandarim” (1995) e “Villa-Lobos — Uma Vida de Paixão (2000)”.
Carlos Russo Jr. é escritor e crítico literário.