Opção cultural

Tiração de sarro com a poesia parnasiana, o livro do poeta curitibano se revela uma aguda reflexão crítica sobre os limites do experimentalismo pós-moderno, convertido num formalismo que ecoa, de algum modo, o princípio da arte pela arte daquela poesia
[caption id="attachment_94625" align="aligncenter" width="620"] Adriano Scandolara, autor do livro de poesias PARSONA[/caption]
Emmanuel Santiago
Especial para o Jornal Opção
Adriano Scandolara, poeta curitibano e tradutor, é autor de um surpreendente livro de estreia, Lira de lixo (Patuá, 2013). Quatro anos depois, vem a público seu segundo volume de poesia, PARSONA (Kotter). Trata-se de uma obra, digamos assim (com medo de espantar os leitores), “experimental”. Scandolara apropria-se dos 35 sonetos da “Via Láctea” de Olavo Bilac — segunda seção de Poesias —, desmembrando-os e os reconfigurando em novos arranjos, que correspondem aos poemas do livro, dividido em cinco partes. Temos, portanto, uma ambígua autoria em que os significantes da poesia bilaquiana adquirem novos significados no contexto enunciativo da nova obra. Ao final da parte quinta, encontramos a seguinte advertência:
Na parte primeira de PARSONA (anagrama de “Parnaso”), intitulada “tempo desvairado”, explica-nos o autor: “em que mutilo sem dó os sonetos”. O que temos é uma fragmentação do discurso bilaquiano, restando — como ruínas dos poemas originais — palavras pulverizadas ao longo da página, rompendo-se com a ordem sintática. O novo significado emerge da utilização da parataxe, isto é, da justaposição de morfemas, imprimindo um caráter constelar ao conjunto (o que remete ao título da seção de Poesias dos quais os textos originais fazem parte). Em muitas das peças aqui reunidas, a decorosa sensualidade (às vezes nem tanto) do lirismo da “Via Láctea” converte-se numa caricatura debochada de si mesma devido à ênfase que a montagem empresta à conotação erótica dos termos utilizados por Bilac. Eis que o soneto XIX da “Via Láctea”...
Sai a passeio, mal o dia nasce,
Bela, nas simples roupas vaporosas;
E mostra às rosas do jardim as rosas
Frescas e puras que possui na face.
Passa. E todo o jardim, por que ela passe,
Atavia-se. Há falas misteriosas
Pelas moitas, saudando-a respeitosas...
É como se uma sílfide passasse!
E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro
Curvam-se as flores trêmulas... O bando
Das aves todas vem saudá-la em coro...
E ela vai, dando ao sol o rosto brando,
Às aves dando o olhar, ao vento o louro
Cabelo, e às flores os sorrisos dando...
... transforma-se em:
O verbo no gerúndio “dando”, reincidente no último quarteto do texto bilaquiano, adquire conotação sexual, contaminando-se com a atmosfera de sensualidade explícita criada pela ênfase nos aspectos eróticos do poema original. Por meio de uma montagem que tem um quê de cubista, Scandolara cria uma versão pornô do soneto de Bilac.
Na parte segunda, “ascende como se livre (em que o olho une estrelas e traça constelações)”, há um “amálgama” entre os poemas da primeira parte, seguindo um plano previamente estabelecido (que não convém esmiuçar aqui), o que resulta numa série de 28 novos poemas. Os morfemas bilaquianos são articulados numa nova trama, gerando contextos semânticos inéditos. Na parte terceira, “tortura de exílio e atritos vazada no eterno (em que a força gravitacional elimina os espaços vazios)”, os amálgamas da seção anterior são fundidos e reeditados, dois a dois, em novos poemas que já vão se aproximando — às vezes imperfeitamente — da forma de um soneto tradicional, com seus quatorze versos divididos em dois quartetos e dois tercetos, compondo variações em torno do metro decassílabo. Para ficar num único exemplo:
hoje o livro o passado talvez so-
-nhasse aos raios em que céus em que
sombria lembrança as estrelas trêmulas
infinita escada moita flor noite
luares? partindo e olhava degrau vives
trêmulo olhar estas aquelas um
anjo a harpa súplicas, feria das
estrelas sombra corta umas vós
também ilusões tua virgindade
de pudor a armadura neve das
capelas um bando de sombras meu
amor guardando montanhas coral
vi olhar celeste erguendo a alvura
neve cobre os flancos desnudo seio
Começam a emergir, do aparente caos combinatório, alguns vestígios de coesão e coerência textuais, o que, em vez de atenuar, apenas reforça a impressão de estranhamento. O insólito das imagens criadas e o jogo que alterna uma sugestão e a desconstrução da ordem sintática dão um aspecto dadaísta ao conjunto, aliado, no entanto, a uma lógica formal rigidamente construtivista, que se impõe por meio do procedimento da montagem: o aleatório e o arbitrário se confundem e se interpenetram.
Na parte quarta “lixívia (em que damos uma olhada no que foi jogado fora)”, os fragmentos dos sonetos de Bilac excluídos nas partes anteriores são reunidos em seis parágrafos, formando um simulacro de prosa poética que lembra alguma coisa da escrita automática surrealista (um efeito, mais uma vez, obtido por meio da lógica construtivista da montagem). Já na parte quinta — e última — do livro, “sagitário a* (enfim o cerne de todo esse trabalho sem sentido)”, forma-se o derradeiro soneto do volume, tomando-se um verso de cada um dos poemas da parte terceira. Não exponho o resultado aqui, que mereceria uma análise mais detida, mas posso dizer que há uma estranha e surpreendente beleza lírica nele. Se pensarmos no livro todo como um processo cujo resultado é o soneto final, então a própria ideia de cinco “partes” é enganosa, pelo que sugere de estático e estratificado. Mais preciso, talvez, fosse falar das cinco fases de um processo.
Ao final do livro, temos um posfácio, “faça você também o seu próprio PARSONA”, no qual, parodiando uma receita culinária, o autor explica, passo a passo, os procedimentos que resultaram no volume. Repleto de autoironia, ele deve ser visto como um componente fundamental do conjunto. Como dito anteriormente, há uma ambiguidade na autoria do livro: por um lado, existe a impessoalidade dos poemas, que apenas esboçam — em traços gerais e elípticos — o eu lírico dos sonetos bilaquianos; por outro, há uma consciência autoral por trás de todo o processo, atuando, por meio da montagem, como uma espécie de editor. Nos subtítulos de cada parte, em que há uma sintética explicação do procedimento que lhe deu origem, tal consciência se materializa como voz poética; é essa mesma voz que se faz ouvir no posfácio. Da tensão entre o discurso bilaquiano, esquartejado e reconstruído, e a consciência composicional que lhe empresta novos significados, constitui-se a autoria do volume.
É possível definir o princípio formal que rege a confecção de PARSONA como uma apropriação irônico-alegórica dos sonetos da “Via Láctea”. Em Origens do drama barroco alemão, Walter Benjamin aponta como, no período barroco, a alegoria — ao contrário do símbolo, entendido pela estética romântica como a manifestação sensível da Ideia — representa um modo aproximativo, imperfeito, de ilustrar um conteúdo transcendente, que escapa à expressão humana, daí seu caráter cumulativo: quanto mais alegorias, maior a ilusão de que seja possível emprestar forma comunicável ao inefável (o que, porém, apenas aumenta o aspecto fragmentário do conjunto). A alegoria barroca, assim, é um caco, um fragmento, uma ruína de uma totalidade semântica inexprimível.
Peter Bürger, em Teoria da vanguarda, utiliza-se da descrição benjaminiana da alegoria para explicar a natureza da obra de arte vanguardista por oposição à obra de arte clássica. Enquanto esta seria “orgânica”, com seus elementos articulando-se num todo coerente e inteligível, remetendo a um significado definido, aquela teria um aspecto compósito, fragmentado. Na arte alegórica, o material utilizado não possui um significado inerente, cabendo ao artista emprestar-lhe arbitrariamente um significado qualquer. Dessa maneira, podemos compreender os poemas de PARSONA como versões alegóricas dos sonetos bilaquianos, em que fragmentos dos originais têm seu significado subvertido, por isso podemos caracterizá-las como irônicas (lembrando que ironia é uma figura de linguagem em que se diz uma coisa querendo sugerir algo diverso). Nos arranjos poéticos de Scandolara, criam-se contextos inéditos nos quais as palavras de Bilac adquirem uma carga semântica outra, gerando, não raro, efeito humorístico por conta de associações imprevistas de vocábulos.
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Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, o trio do Parnasianismo brasileiro[/caption]
Há tempos não se via na poesia brasileira uma obra tão provocativa. Sua primeira provocação, a mais óbvia, é em relação à solenidade que a poesia parnasiana (juntamente com seus admiradores) arrogava a si mesma. Scandolara dessacraliza o lirismo cósmico da “Via Láctea” bilaquiana, tomando seus sonetos como um brinquedo de montar e dando às suas palavras significados nada sublimes, ou seja: pode-se dizer que o autor destrói a “aura” (conceito também benjaminiano) dessa poesia. Até aí, nada demais, pois o modernismo de 1922 e seus continuadores já destruíram o prestígio do parnasianismo junto ao público. Tal provocação seria chutar cachorro morto. O deboche implacável, porém, não deixa de ser uma forma de levar a sério e, paradoxalmente, a derrisão irônica de Scandolara contra os sonetos de Bilac consiste também num resgate, numa revitalização. Assim, a provocação se volta contra o establishment literário brasileiro, que prescreve uma profilática distância dos restos mortais parnasianos.
A maior provocação do livro, porém, expressa-se por meio da ironia. A todo momento, o autor rebaixa o próprio trabalho, definindo-o, por exemplo, como “sem sentido”. No posfácio, esse recurso é explicitado na instrução de número oito: “complete o quadro com um prefácio e um posfácio, ambos de um tom cômico nervoso, o primeiro mais assertivo e o segundo com um leve quê de autodepreciação”. Entretanto, tal “autodepreciação” se reverte contra os procedimentos utilizados na composição do livro e contra seu caráter experimental: “finja que os resultados não são uma imitação muito tardia do concretismo”; “finja que os resultados não são uma imitação tipo camelô da oulipo”; “não queira criar carreira como poeta conceitual. você pode acabar tentando imprimir a internet”. A voz autoral, portanto, acusa a frivolidade e a pouca originalidade de todo o empreendimento.
Na verdade, o que temos é uma denúncia irônica da convencionalização dos procedimentos das vanguardas e, sobretudo, das neovanguardas, que, devidamente integrados ao cânone, perderam seu potencial inovador e de crítica à literatura institucionalizada. É isso o que Iumna Simon chama de “retradicionalização da poesia”: “Retradicionalizar significa incorporar as tradições modernas, traduzir o teor originalmente crítico delas em formas convencionais e autorreferidas, mediante o trabalho de linguagem e sob o amparo do ‘rigor de construção’, paradoxalmente assumidos como princípios capazes de preservar a autonomia estética e o ofício do verso”. Assim, a poesia incorre num formalismo em que os procedimentos formais — destituídos de qualquer dimensão crítica — bastam por si mesmos e asseguram à obra um aspecto up-to-date. As experimentações com a linguagem verbal, um legado concretista, tornaram-se carne de vaca e, passando rapidamente os olhos sobre a maior parte do que hoje é chamado de poesia experimental, constatamos variações intermináveis em torno dos mesmos procedimentos, agora estabilizados pela tradição literária.
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Capa do livro PARSONA (Kotter, 2017, 136 páginas)[/caption]
PARSONA, de Adriano Scandolara, desvela os impasses do experimentalismo contemporâneo, assumindo-os criticamente. A voz autoral, fazendo uso da ironia, obriga-nos a tomar um distanciamento reflexivo em relação ao processo criativo e a seus resultados, por isso o posfácio é um componente essencial à compreensão do conjunto. Percebemos o quanto de arbitrário há na empreitada, o que devemos estender à produção poética atual, principalmente na vertente que encontra no make it new poundiano seu principal mandamento. Não quero sugerir que há em Scandolara, como poderia ficar subtendido, uma intenção de se colocar à margem de tais tendências, o que daria ao livro um caráter meramente paródico. Na verdade, o autor se propõe a fazer poesia experimental a sério, mas sem ignorar as contradições dessa proposta e as tomando como caminho de autorreflexão para o discurso poético. Eis a última e mais consequente provocação do livro, fazendo dele uma espécie de ouroboros autocrítico a devorar o próprio rabo.
Tiração de sarro com a poesia parnasiana, PARSONA se revela uma aguda reflexão crítica sobre os limites do experimentalismo pós-moderno, convertido num formalismo que ecoa, de algum modo, o princípio da arte pela arte daquela poesia (duas pontas soltas de nossa tradição literária que o autor, engenhosamente, une). Se o trajeto de Scandolara em seu livro aponta uma nova senda ou um beco sem saída à produção contemporânea, isso apenas o tempo poderá dizer. O que se pode dizer com segurança é que não há nada de inofensivo neste livro, que, a despeito de sua feição debochada, demonstra um elevado grau de maturidade estética e confirma a posição de Adriano Scandolara como um dos autores mais interessantes da novíssima geração.
Emmanuel Santiago é poeta, tradutor e professor de literatura.
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Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
SCANDOLARA, Adriano. PARSONA. Curitiba: Kotter Editorial, 2016.
SIMON, Iumna. “Situação de sítio”. In: PEDROSA, Celia; ALVES, Ida (orgs.). Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, pp. 133-47.

“A consoada” foi publicado na segunda parte do livro Natal de Herodes, do poeta baiano Wladimir Saldanha, lançado pela editora Mondrongo, de Itabuna (BA), em 31 de março deste ano. É dedicado à estudiosa de literatura russa, poetisa e mãe Lorena Miranda Cutlak (autora do livro de poesias O Corpo Nulo, lançado em 2015 pela mesma Mondrongo).
Apreciem!
A consoada
Para Lorena Miranda Cutlak O menino põe tudo na boca: põe na boca o fio de feno, põe na boca o grão de incenso, ouro e mirra põe na boca, Mal nasceu, deixa a mãe louca! Não pode ser já venha dente coçando na gengiva, crente da Palavra que dirá tal boca... Será engraçado contar-lhe num dia sagrado, dia de jejum, como a criança era esfomeada: como quase comeu, bicho, o feno; humano, o ouro; místico, o incenso e a mirra; e quão total, a consoada.
Para além de sua grande envergadura intelectual, Candido foi uma figura inspiradora, capaz de despertar em muitos (ou confirmar) o amor pela literatura
[caption id="attachment_94471" align="aligncenter" width="620"] Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017)[/caption]
Emmanuel Santiago
Especial para o Jornal Opção
Na sexta-feira, 12, morreu, aos 98 anos, Antonio Candido — o maior crítico literário que o Brasil já teve (ou, no mínimo, o mais influente). Quase não há um grande clássico da literatura brasileira sobre o qual ele não tenha escrito uma ou duas observações relevantes, quando não textos indispensáveis. Candido, praticamente, colocou de pé a crítica acadêmica brasileira. Basta passar os olhos pela extensa lista de seus orientandos e dos que por estes foram orientados.
Formação da literatura brasileira (1959), que, durante décadas, esteve no centro de um intenso debate e ainda hoje suscita algumas controvérsias, é um marco fundamental de nossa historiografia literária, uma referência incontornável, como até mesmo seus detratores são obrigados a reconhecer. A obra alia vasta erudição, fina sensibilidade estética e um esforço teórico até então inédito em nossos estudos literários. Trata-se de uma leitura obrigatória para todo aquele que deseja compreender o papel da literatura em nosso processo de formação histórica, servindo de complemento a estudos seminais como Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Basicamente, a obra descreve o surgimento de uma consciência nacional em nossa literatura, levando em conta as circunstâncias sociais e culturais que permitiram o desenvolvimento desta, tudo acompanhado de inúmeros comentários reveladores sobre os autores e os textos elencados. Vários insights de Candido no Formação... já serviram de gatilho para dissertações de mestrado e teses de doutorado Brasil afora.
Outro texto fundamental do autor é o ensaio “Dialética da malandragem” (1970), sobre o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Nele, a teoria literária feita no Brasil atinge, finalmente, sua maturidade. Além de analisar com precisão a estrutura do romance, jogar luz sobre seus aspectos mais relevantes e descrever a dinâmica social da cidade do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX (desenvolvendo uma tese que encontraria larga acolhida entre historiadores e sociólogos), o ensaio apresenta uma reflexão teórico-metodológica sobre a complexa mediação entre o texto literário e seu contexto histórico-social, suplantando de vez a noção obsoleta da literatura como mero reflexo da sociedade. Em minha modesta opinião, neste trabalho concentram-se as maiores qualidades intelectuais de Antonio Candido.
Dono de uma prosa sempre elegante e cristalina, acessível até mesmo aos leitores não especializados, Candido era sociólogo de formação e sua tese de doutorado, Parceiros do Rio Bonito (1954) — que estuda o estilo de vida tradicional do caipira do interior de São Paulo — exerceu e ainda exerce enorme influência sobre nossas Ciências Sociais. Merece destaque, também, sua atuação na imprensa, tendo sido o primeiro a reconhecer o valor de Clarice Lispector, quando esta publicava ainda seu primeiro romance, Perto do coração selvagem (1943), com 17 anos de idade, além de ter criado o Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo, em 1956, que serviria de modelo para o jornalismo cultural praticado em todo o Brasil nas décadas seguintes.
Para além de sua grande envergadura intelectual, Candido, conforme o testemunho dos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo, foi uma figura inspiradora, capaz de despertar em muitos (ou confirmar) o amor pela literatura. Como figura pública, Antonio Candido exerceu ativa militância política de esquerda e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Era, acima de tudo, um humanista, comprometido com a criação de um modelo de cidadania mais abrangente, que abarcasse aqueles indivíduos historicamente excluídos de nosso processo civilizatório. Acreditava na literatura como direito universal e em seu poder como agente humanizador, como se verifica nos textos de duas conferências suas, “A literatura e a formação do homem” (1972) e “O direito à literatura” (1988). Nesta última, encontramos:
Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos como essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.Enfim, 98 anos é uma jornada longa. Longuíssima, aliás. Não há, portanto, o que lamentar, mas apenas o que celebrar: a obra e o exemplo de Antonio Candido. Emmanuel Santiago é poeta, tradutor e professor de literatura.

Provar que investigados em casos de crimes complexos, tais como corrupção e lavagem de dinheiro, são, de fato, culpados é uma árdua tarefa. Este tipo de crime exige um adequado manejo das chamadas “provas indiretas”

Wagner Schadeck, poeta e tradutor, se aventura no terreno da frase curta, que contem o pensamento ligeiro e afiado, difícil de ser concebido

Se a criança convive em um ambiente cercado por robôs desde o nascimento, ela será capaz de criar laços emocionais com outras crianças? Ou apresentará dificuldade para interagir com humanos?

Obra de João Gonçalves dos Reis traça um panorama informativo, que talvez possa ser extrapolado para boa parte do Brasil profundo, sobre a vida no interior inóspito

Maratona de shows na Esplanada JK do espaço começa às 18 horas desta sexta-feira (12/5) e traz 69 apresentações, entre shows de cantores, bandas, grupos juntos no palco e DJs

Noite gratuita no Centro Cultural Oscar Niemeyer, com ingressos esgotados, terá a Orquestra, as bandas Rollin Chamas, Boogarins e o DJ Nevermind (DF)

Na quinta e na sexta-feira da próxima semana, dias 18 e 19 de maio, o Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (CCUFG), localizado no Setor Universitário, será palco do espetáculo de dança “Mulheres de Linhas”, com Maria Fernanda Miranda e Tainá Barreto. A direção cênica estará a cargo de Renata Lima. Em ambos os dias, a apresentação começará às 20h. Para a entrada será cobrado apenas 1 Kg de alimento não perecível. “Mulheres de Linhas” é fruto de uma pesquisa desenvolvida por Maria Fernanda Miranda sobre a relação da arte da dança com as relações socioambientais, com foco no bioma cerrado. Estas pesquisas foram feitas em treze comunidades da região do Vale do Rio Urucuia, no estado de Minas Gerais (MG). Miranda acompanhou e interagiu por cerca de 10 meses com as mulheres artesãs da região – tecelãs, bordadeiras e fiandeiras –, praticando todas essas artes e buscando observar o laço inextricável entre elas e outras práticas culturais, como a “cantoria”, que é entoada pelas artesãs enquanto fiam e bordam, bem como com a própria paisagem do cerrado. Este período de imersão nessas comunidades proporcionou a Miranda o desenvolvimento de sua dissertação de mestrado, junto ao Programa de Pós Graduação em Artes de Cena, da Universidade de Campinas (SP) – Unicamp. O espetáculo montado com direção de Renata Lima tem apoio institucional da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do Instituto Federal Campos Aparecida de Goiânia.
Serviço
Mulheres de Linhas Dias: 18 e 19 de maio Horários: 20h Direção: Renata Lima Local: Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (CCUFG) Ingresso: 1Kg de alimento não perecível.
Noite de quarta-feira (10/5) já começa no Teatro Sesc Centro com um show que reúne as bandas Ventre (RJ) e E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante (SP) ao mesmo tempo no palco

Caberia até dizer que Wagner Schadeck chegou a conseguir alguns efeitos especiais na tradução das "Odes" de Jonh Keats, talvez melhores que os do original
[caption id="attachment_93967" align="aligncenter" width="620"] John Keats[/caption]
Matheus de Souza Almeida
Especial para o Jornal Opção
Recebi com alegria a notícia da edição das "Odes" de Keats traduzidas por Wagner Schadeck, lançada há pouco pela editora Anticítera. Wagner é um grande tradutor de poesia e um pesquisador erudito, capaz de retirar das catacumbas preciosidades como as versões de Vinicius de Moraes para a primeira "Elegia de Duíno" e para o "Homens Ocos". Que tenha se dedicado por quase cinco anos a traduzir seis poemas é notável, ainda mais se considerarmos que, juntos, eles não possuem uma extensão que poderíamos chamar de exaustiva. Por certo no caminho enfrentaremos problemas de tradução notórios, não só por serem poemas com todos os temíveis apetrechos (métrica, rima) como também, em última instância, por ser John Keats.
Digamos, porém, que não é porque sua incumbência é a de traduzir um poema que esta será por definição a coisa mais difícil da face da terra. Depende muito dos trejeitos da nossa vítima e do nível de minúcias a que pretendemos (e conseguiremos) chegar. Existem textos em prosa que são mais difíceis de traduzir que uma considerável fatia dos poemas, assim como existem poemas ruins que, na camisa de força de cinco acrósticos, são uma pedreira maior que um bom poema sem toda essa queima de fogos. Enfim. O fato é que com as odes de Keats nós podemos dizer seguramente que elas apresentam dificuldades, mas não sei se a ponto de embasar de forma razoável um lapso de quase cinco anos para a tradução. Imagine se seu pós-doutorado dependesse de todo esse tempo para traduzir 320 versos. Imagine explicando isso pros engravatados que pagam sua bolsa. Claro que você vai fazer outras coisas, por exemplo publicar a poesia completa de B. Lopes. Mas ainda assim. É pra tanto?
Wagner é o que ele próprio uma vez chamou de "obcecado confesso". Na ocasião falava, salvo engano, de ter passado sete anos lendo um soneto de Camões (aquele, sobre Raquel e Lia) para, assim, estar um pouquinho mais próximo do mestre. Isso sem dúvidas pode ajudar a explicar o que exatamente ele andou fazendo nesse tempo todo, mas ainda assim não é o suficiente. O alto nível de exigência estipulado pelo próprio tradutor talvez seja a principal razão, no sentido de que pretendeu "reproduzir, não apenas o conteúdo, mas também os recursos isomórficos (consonância e assonâncias) e imagens (metáforas, metonímias, etc.), fixados no mesmo esquema de rimas medidas no decassílabo com andamento iâmbico, pelo menos na maioria dos versos."
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"Odes", de John Keats (Anticítera, 2017. Tradução de Wagner Schadeck)[/caption]
Não vou aborrecer o leitor explicando o que cada uma dessas palavras feias quer dizer ("consonância", "iâmbico"). A parte do prefácio que fala da tradução de poesia como "a transcrição de uma partitura original, escrita para determinado instrumento, com arranjo para outro", é mais clara: a tradução deve preservar, "a depender do musicista e da qualidade do instrumento transposto, a harmônica e consoantemente bela." Sejamos, porém, ainda mais didáticos e digamos que você lê o original, desmonta todas as suas pecinhas e coloca-as na lâmina de ensaio. A partir daí observe, dr., a maneira como "unravish'd" (inviolada) serve de adjetivo a "bride" (noiva), bem como a maneira com que "bride" abre o leque num estalo e exibe: "of quietness" (da quietude). Que tipo de ganho a nível molecular existe em usar especificamente o adjetivo "inviolada" e não, simplesmente, "virgem"? Há algum motivo para ela ser uma noiva? Para ser uma noiva da quietude? -- E a moral da história é que todo o minucioso relato que resultar de tal operação de análise buscou ser reproduzido na tradução, o que implica, na prática, que você, investindo seu dinheirinho na simpática brochura publicada pela Anticítera, terá feito a coisa certa.
Não é a primeira vez que Keats recebe um tratamento de luxo. Convém lembrar que as "Odes" já foram apresentadas para o leitor brasileiro, nem sempre na íntegra, a partir de traduções competentes de uma galera do calibre de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Augusto de Campos ou a dupla John Milton e Alberto Marsicano, além de tradutores esparsos como Ivo Barroso, Décio Pignatari ou Leonardo Antunes. Wagner se comunica bem com todos eles, por exemplo ao tomar emprestado a palavra "adufes" da tradução do Ivo para a "Ode sobre uma urna grega" ou então ao traduzir "Tasting" por "Sabendo", mesma opção que Augusto de Campos usara na "Ode a um rouxinol" (é um sentido meio arcaico do verbo, mas, de resto, "saber" e "sabor" possuem a mesma origem em latim: "supere").
São muitos os resultados felizes. A nível individual poderíamos citar um verso como "Que lenda à franja flórea em tua orla traça", tradução de "What leaf-fringed legend haunts about thy shape", quinto verso da primeira estrofe de "Ode sobre uma urna grega". É um verso difícil de ser traduzido, especialmente por conter em seu bojo palavras que, sem o devido cuidado, poderiam abrir as asinhas e duplicar o tamanho de um verso que precisa, de acordo com os parâmetros estipulados, ter um comprimento determinado. Mas não só: a maneira com que a consoante L suavemente deixa sua marca ao longo do verso, mesclada à rima interna entre "flórea" e "orla", ao som anasalado de "lENda à frANja" e, por fim, ao F duplo em "Franja Flórea" -- toda essa coreografia, em suma, é algo agradável (você lê e quase suspira) e consegue corresponder tintim por tintim ao que encontramos no próprio original: veja o L de "Leaf-fringed Legend", o F em "leaF-Fringed" e o jogo em "abOUt thY shApe" ("abÁU dÁI xÊIp": trate de abrir a boca se quiser pronunciar isso).
Noutros podemos elogiar a simplicidade tocante, por exemplo em "Mergulhe fundo ao fundo desse olhar", onde a repetição de "fundo", indicando ênfase e um mergulho efetivo, traduz o que está lá, no lado esquerdo do livro aberto: "And feed deep, deep upon her peerles eyes." Noto também que a ênfase na vogal U durante quase todo o verso, avançando até que feche com o A aberto de "olhar", como se de fato abríssemos os olhos após a leitura, é um modo de traduzir o E do original, que marca terreno num reino capitaneado pela consoante P até passar o bastão para o fonema aberto de "eyes".
Creio que caberia até dizermos, com uma ousadia justificável, que Wagner chegou a conseguir alguns efeitos especiais se brincar melhores que os do original, à guisa de "Ressonando num sulco arado ao meio", que possui não só a sonoridade da consoante S agilizando a leitura (é como se mais do que ler, deslizássemos), mas também a vogal U muitíssimo bem marcada de "sulco" (que recebe, claro, uma forcinha de "num") inclusa entre dois A tônicos: "ressonAndo" e "arAdo". Alie-se ao fato (e desde já me desculpem pelo jargão) de que "sulco" ocupa a posição de cesura no decassílabo heroico que temos, assim sendo, uma frase que mimetiza o sulco, precisamente, arando o verso ao meio. Ora: não consigo ver nada disso no original, que estampa: "Drows'd with the fume of poppies, while thy hook / Spares the next swath and all its twined flowers" (tive de citar os dois versos pois Wagner muda um pouquinho a ordem dos termos).
Claro: não só de sonoridades é feita a tradução. O tradutor das "Odes" se vê diante do fato de que o poeta usa uns termos um tanto quanto específicos na construção do poema. É o que os franceses chamam de "le mot juste", isto é, a palavra certa, o termo exato. Veja-se o caso de "thatch-eves" na primeira estrofe de "Para o outono". Jogue no site de buscas que você vai encontrar imagens do que são "thatch-eves". Eu explico: pense numa cabaninha de palha. Ali perto do telhado, o que é aquilo? Parece um beiral, não parece? Pois bem. Foco nesse beiral. É isso aí. Ele é o "thatch-eve".
O ápice das minúcias a que a tradução se propõe, todavia, está nos termos botânicos. Veja-se parte da quinta estrofe de "Ode para um rouxinol":
A relva, a moita, o pomarejo gaio,
Roseira-brava, branco pinheirinho,
A fugaz violeta entre a folhagem,
O rebento de maio,
A rosa almíscar a orvalhar de vinho
E o murmúrio de moscas na estiagem.
Tradução de:
The grass, the thicket, and the fruit-tree wild;
White hawthorn, and the pastoral eglantine;
Fast-fading violets cover'd up in leaves;
And mid-May's eldest child,
The coming musk-rose, full of dewy wine,
The murmurous haunt of flies in summer eves.
Que coisa mais linda, não acha? Você não tem uma planta sequer que foi esquecida na tradução. O objetivo foi esse mesmo: trazer a turma toda, mas sem rachar o acrílico das belas imagens que são apresentadas. Note, por exemplo, a maneira hábil com que "full of dewy wine" (cheia de vinho orvalhado) se transforma em "a orvalhar de vinho". É uma imagem interessante, em especial por tomar um elemento puramente natural, o orvalho, e adicionar um elemento, por assim dizer, dionisíaco: o vinho. É como se a natureza toda se transformasse numa fanfarra. O poeta começa a estrofe dizendo: "Não posso ver as flores a meus pés, / Nem a ramagem que o olor remoça." Ele apenas supõe ("guess") as flores que ali estão, tudo na base dos sentidos. E no entanto, note o grau de riqueza, de detalhes, a maneira com que ele deixa que tudo aquilo invada seu íntimo e se transforme numa bela paisagem. Perder a mão na hora de traduzir com rigor o correspondente exato para cada uma dessas plantas e flores seria uma maneira de baratear o apurado sentimento que o eu lírico demonstra nesta passagem. Fechar os olhos e genericamente imaginar flores a seus pés qualquer um imaginaria; pensar na roseira-brava e no branco pinheirinho, só Keats.
A tradução só me fez torcer o nariz quando, em algumas passagens, ela me pareceu de leitura truncada e confusa. Wagner, de um modo geral, dispensou os sinais de pontuação que Keats dispôs em seu texto, em específico o ponto e vírgula. Veja-se o final da sexta estrofe da mesma ode sobre o rouxinol:
Agora me parece bom morrer,
Cessando à meia-noite sem pesares,
Enquanto o teu espírito depões
Com êxtase do ser,
Hei de te ouvir, inda que em vão cantares,
Enxertando-lhe o réquiem em torrões.
Existe uma guinada no interior da frase brusca demais para que uma simples vírgula dê conta. Isto a partir, em específico, de "Com êxtase do ser" e "Hei de te ouvir". Ainda, a flexão do verbo "cantar" em "cantares" parece desconexa, malgrado o fato de a certo custo ligarmo-la ao rouxinol graças à segunda pessoa do singular usada ao longo da estrofe (veja o "Hei de TE ouvir"). Faltou uma vírgula, quem sabe: "inda que em vão, cantares". Todavia, de onde veio esse "lhe"? De "do ser"? Eu sinceramente não sei. Diz o original:
While thou art pouring forth thy soul abroad
In such an ecstasy!
Still wouldst thou sing, and I have ears in vain
To thy high requiem become a sod.
A tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos consegue dar conta do recado com clareza:
enquanto em tôrno a ti vais derramando tua alma
com todo êsse arrebatamento!
Cantarias ainda; mas de nada valeriam meus ouvidos,
para teu alto réquiem transformados em relvosa terra.
Não sei como este problema poderia ser resolvido no caso citado, mas poderíamos ficar também com:
E afoito amante, nunca, nunca beijes,
Embora a meta à frente, não te agraves,
Não se esvai ela, mesmo que a desejes,
Sempre a amarás, sendo ela sempre linda!
O original:
Bold Lover, never, never canst thou kiss,
Though winning near the goal yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever will thou love, and she be fair!
Até que está tranquilo de entender, embora esse "Não se esvai ela" tenha me parecido cacofônico demais e sem necessidade (bastaria a ordem direta: "Ela não se esvai"). O ponto que faço é que poderíamos contar com sinais de pontuação além das vírgulas indicando melhor a maneira com que as frases do original se descabelam. Era a praxe de poetas românticos.
Morrer -- é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado -- escutar dobres de sino,
-- Voz da morte, que a morte lhe lamenta --
Ai! morrer -- é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher -- no visco
Da larva errante no sepulcro fundo.
Isso é Castro Alves em "Mocidade e Morte". Os dois pontos e os travessões existem para realçar as gradações do sentimento, não apenas a maneira como se atropelam e sobrepõem os "dobres de sino" à "Voz da morte", mas também quando agravam a situação retratada e avançam dos "beijos da mulher" direto para o "visco / Da larva errante". Às vezes parecem até pontadas de sofrimento: "Ai! morrer". Em dois versos e se valendo de alguns travessões o poeta faz um verdadeiro trabalho de dobradura com a morte, indicando que ela existe nos dobres de sino sob a forma de uma voz que, fúnebre, lamenta a morte do condenado. Só que, graças à interjeição do poeta, é como se ele próprio se comparasse ao condenado, permitindo, assim, que se dê prosseguimento a seu périplo de guinadas violentas. Num poema que contrapõe camadas de sentido de maneira energética, claramente visto no título e em versos como "Leito macio por esquife imundo", é impensável transformar tudo num manancial de vírgulas. Faça você mesmo o teste. Não vai dar conta.
Matheus de Souza Almeida é crítico e tradutor.

Festival realiza shows nesta terça-feira (9/5) no Shiva alt-bar, Rock, Cafofo Estúdio, Complexo Estúdio & Pub, Teatro Sesc Centro e República a partir das 20 horas

Para abrir a 19ª edição do festival, serão realizadas apresentações no Teatro Sesc Centro, Retetê, Rock, República Underground Music (RUM) e Cafofo Estúdio a partir das 20 horas

“Língua Rara” será publicada em formato digital, e disponível para download gratuito
Nos últimos anos, a literatura contemporânea argentina vem conquistando seu espaço no mercado editorial brasileiro. Traduções de autores como Samanta Schweblin, Diego Vecchio, Andrés Neuman e Selva Almada ganham expressividade através de boas críticas e da formação de um grupo seleto de leitores.
O movimento contrário, porém, não se afigura um cenário animador. De acordo com o escritor Bruno Ribeiro, que morou quatro anos em Buenos Aires e fez mestrado de Escrita Criativa por lá, enquanto o Brasil recebe uma literatura argentina mais plural e em maior quantidade, a literatura brasileira ainda é encarada na Argentina por meio de seu viés exótico, figurando nas editoras como um ato de resistência.
De maneira então a encurtar essa fronteira e estimular a visibilidade de autores brasileiros em território hermano, Ribeiro organizou a antologia de contos “Língua Rara”. Publicada em parceria com o selo portenho Outsider, o livro traz textos em português e estará disponível em formato digital (epub e mobi), para download gratuito. O lançamento será neste mês, quando também entra no ar o novo site da editora.
O organizador conta que a ideia da antologia começou a ganhar corpo no ano passado, partindo da estranheza gerada entre os idiomas dos países vizinhos.
“O nosso português é uma língua estranha na América Latina, pois não compartilhamos do espanhol que une o continente. Somos queridos por todos, mas somos incompreensíveis linguisticamente. Somos estranhos em nosso próprio mundo e isso explica muita coisa sobre a relação do Brasil com os nossos hermanos latinos. Meu objetivo foi entregar essa incompreensão para o leitor de língua espanhola, deixando que ele sinta toda a raridade da nossa língua em sua leitura. Uma tensão literária, um desafio, uma overdose de brasilidade linguística”, observa.
O mesmo aspecto heterogêneo foi aplicado na escolha dos autores. Partindo da intenção prévia de ter um número equivalente de homens e mulheres, a seleção englobou, segundo Ribeiro, 16 escritores de grandes e pequenos selos, que compartilham uma coesão na linguagem dos contos. Fazem parte do grupo: Adriana Brunstein, André Timm, Camila Fraga, Carlos Henrique Schroeder, Diego Moraes, Eduardo Sabino, Irka Barrios, Letícia Palmeira, Luisa Geisler, Micheliny Verunschk, Noemi Jaffe, Priscila Merizzio, Ricardo Lísias, Roberto Denser, Roberto Menezes e Sérgio Tavares.
“Eu queria 16 autores que carregassem consigo a raridade na língua, a estranheza. Em relação a isso, fico feliz em dizer que fomos exitosos, afinal, todos os autores brincam com a nossa língua e invocam seus mundos de forma original, não reproduzindo o que já sabemos, mas nos apresentando novas maneiras de ver o que nos rodeia diariamente”.
A temática é um outro exemplo desse olhar multifário presente no livro. O organizador conta que os contos excursionam por assuntos diversos, abrangendo desde os horrores da ditadura militar a relatos absurdos, cômicos e inusitados. Uma diversidade fiel à riqueza da nova literatura brasileira, que se compara ao que hoje é produzido na Argentina, demonstrando que, ao contrário do que vende o mercado do livro no Brasil, temos muito mais em comum com nossos países vizinhos do que com os EUA e a Europa.
“A ideia é provocar e tentar refletir sobre essa raridade da nossa língua dentro do nosso próprio mundo latino. Por mais que alguns queiram, saibam que o Brasil não é uma extensão dos EUA. Somos mais gracias do que thank you”, afirma Ribeiro.
Antologia Língua Rara (Editora Outsider)
Organização: Bruno Ribeiro
Para baixar gratuitamente, o leitor pode clicar aqui.
Leia um trecho do conto "Em verdade, em verdade vos digo", de Adriana Brunstein:
"Em 1995 eu queria ser a Diane Keaton, mas me casei com um idiota. Minha carta na manga no quesito sedução era: eu choro com notícias tristes na voz do Sérgio Chapelin. Mas o fantástico show da minha vida não acaba por aí. Transar com aquele cara era como passar Grecin no cabelo. Eu passei a denominar a coisa toda de operação pente fino. Eu juro que na hora que ele me olhava e eu sentia a intenção toda eu imaginava o Cid Moreira falando: começa agora a operação pente fino. Ou ainda pior, do naipe da velha zebra da loteria esportiva rindo da minha cara. Mas a gente tem que passar pela merda dos 20 e poucos anos e meter uma aliança no dedo. A gente tem que dizer que soltamos fogos de artifício quando abrimos a porta para a primeira pizza que não foi encomendada pelos nossos pais. A ousadia tinha gosto de cheddar e a porra de um bar de mogno na sala. Mas não tinha a dignidade de uma boa dose de scotch. Era frisante, prosecca, decorada com aqueles malditos guarda-chuvinhas de papel crepom. Mas bem, eu precisava daquilo. Eu ia morar no bairro-sonho-de-consumo de toda minha infame existência até aquele momento. Higienópolis. Eu ia ter farmácias, lojinhas tipo boutique, supermercados chiques pra caramba, com tudo encaixotado e pronto pra consumo. E ia ter um maridinho chegando à noite com uma maleta daquelas com senha. Ah, Sean Connery, se ele tivesse ao menos aquele seu charme 007".