Aspectos históricos de Porangatu são salvos do esquecimento por ex-prefeito
13 maio 2017 às 09h35
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Obra de João Gonçalves dos Reis traça um panorama informativo, que talvez possa ser extrapolado para boa parte do Brasil profundo, sobre a vida no interior inóspito
Everardo Leitão
Especial para o Jornal Opção
O livro de João Gonçalves dos Reis é de memórias. Não só a dele. É um livro para salvar memórias coletivas, guardá-las, protegê-las da amnésia, endêmica neste país de esquecidos. E não é também de memórias só de porangatuenses, só de descendentes dos precursores do Descoberto da Piedade, povoado fundado aí pelo fim da primeira metade do século XVIII no que é hoje o Norte de Goiás.
É um livro de memórias de brasileiros, dos pequenos grupos que foram chegando de toda parte. Chegando de ali pertinho, como Amaro Leite e Peixe, mas também de mais longe, como Porto Nacional e Niquelândia, ou de muito mais longe, como a maranhense Vitória do Alto Parnaíba ou a mineira Pitangui. De vários lugares do Brasil vieram aqueles que construíram a história e viveram no cenário plasmado em minúcias pelo “Descoberto da Piedade” (Cânone Editorial, 200 páginas).
É uma obra que resulta de enorme dedicação. Nas duzentas páginas certeiras, sem uma vírgula desnecessária, encontra-se a condensação de uma pesquisa que levou “quase três décadas” de trabalho focado. Aliás, para ser exato e justo, o trabalho não levou só isso. Levou mesmo todos os noventa anos de vida intensa do autor e os muitos anos dos mais de setenta habitantes do antigo Descoberto, hoje Porangatu, entrevistados para a obra. “Descoberto da Piedade” é resultado da combinação de várias memórias, que, sem ele, ficariam sem registro.
A publicação de “seu Joãozinho da Farmácia”, duas vezes prefeito do município, não é apenas a soma dessas vivências. É ademais a consulta sem preguiça a diversas fontes históricas diretas e indiretas. Não por acaso, da obra transbordam dados, nomes, datas, detalhes, curiosidades, cenários, costumes. Preciosidades. As duas centenas de páginas resguardam do desaparecimento os relatos da tradição oral e os testemunhos de remanescentes das duras épocas de ocupação do espaço selvagem. Tudo foi checado e cruzado. Quando não é possível um nível aceitável de certeza, o autor não ilude o leitor: “Pode haver certo engano quanto às ruas, mas quanto aos habitantes, não”, pontifica a certa altura.
Bordunas e fuzis
Dá gosto ouvir da boca do livro as histórias daqueles primeiros tempos. Algumas são exemplares; outras mostram comportamentos condenáveis aos olhos politicamente corretos de hoje. Mas nenhuma é irrelevante para montar o quadro da época, para conhecermos o mundo em que peleavam os pioneiros.
O leitor vai cruzar com “índios, negros e também cristãos, castigados e maltratados, desgarrados das bandeiras”. Vai reconhecer vultos históricos nacionais como João Leite, Bartolomeu Bueno Filho e José Porfírio. Vai arrepiar-se com a figura sombria do padre Mathias Pinto. Vai topar com personagens de importância local como Ângelo Rosa de Moura e Euzébio Martins da Cunha. Vai duvidar da declaração de amor do cristão Antônio por sua paixão indígena como origem lendária para o nome da cidade. João Gonçalves não atesta que Antônio tenha morrido por Angatu, mas também não descarta a inofensiva narrativa: “pode não ser”. Por que descartaria? Que mal há em cultivar uma historinha romântica para contrabalançar os cruentos episódios em que se ouviam o zunido de flechas e balas em vez do estalo de beijos?
Quem lê o relato das escaramuças vai talvez envergonhar-se com as trapaças dos bandeirantes, vai certamente enternecer-se com as mortes a bordunadas, mas não vai conseguir ficar indiferente ao massacre igualmente cruel contra os indígenas. Vai talvez de vez em quando ficar em dúvida sobre o lado correto na disputa pelo território. Afinal, os indígenas eram ainda mais pioneiros que os pioneiros brancos que ali tentavam encontrar um lugar para assentar as bases de uma nova vida. O que o livro não permite é deixar suas páginas sem constatar que não foi uma época fácil para nenhum dos dois grupos.
É preciso destacar que João Gonçalves não joga nada para debaixo do tapete. Nem o menos lisonjeiro no comportamento dos próprios ancestrais, um deles apresentado como “bravo e violento, a ponto de tentarem envenená-lo na comida e tocaiá-lo”. Tem-se a impressão de que o encontrado nos testemunhos e nos documentos foi para o livro. Sem filtros. Está ali o massacre de brancos pelos temidos índios canoeiros, mas está ali também o relato cru das expedições punitivas: “Terminado o ataque, os sitiantes entraram nas cabanas. Numa delas, encontraram um índio velho, sem forças para andar, com o colar de Maria da Cruz no pescoço, deitado numa rede. Foi fuzilado por Macário de Tal”.
O livro é assim mesmo. Não se vale de eufemismos. O que há para contar vem sem rodeios, sem melindres. João Gonçalves procura fazer o relato honesto do que ouviu e desvendou folheando documentos antigos, devassando arquivos e fazendo as perguntas certas a quem pudesse lhe dar as respostas necessárias.
O ex-prefeito não se esquece dos personagens mais conhecidos, dos casos que o porangatuense, de origem ou de passagem, não tem como não ter ouvido algumas vezes. Por exemplo, conta a história do Negro Dunga e as façanhas de Craveiro e Manoel Lima. Na linguagem precisa de quem muito aprendeu com os garimpeiros das terras do anel aurífero goiano em que nasceu em 1927, João Gonçalves não joga conversa fora. Encontra-se ali o que o livro promete entregar: o registro sistemático da história do lugar.
O leitor vai reviver a formação do Descoberto e sua posterior transformação em Porangatu, o que inclui a implantação das diversas igrejas, Católica, Presbiteriana, Batista, Assembleia de Deus. Pode consultar os nomes de prefeitos, vereadores, delegados e subdelegados de polícia, promotores, juízes, comandantes militares, comerciantes, juízes e professores, já que Descoberto da Piedade é também um quem é quem de Porangatu em todas as épocas. O leitor talvez se surpreenda com referência a atividades hoje extintas ou quase, como delegado literário e flandeiro, e certamente não vai sair sem conhecer de perto o antigo Descoberto, a gente que o habitava e como era a vida ali.
Tatarubá e bijuí
“Descoberto da Piedade” é obra minuciosa nos registros. O leitor quer conhecer o sobrenome das famílias mais antigas? Tem. Quer saber de onde e quando elas vieram para Porangatu? Tem. Quer informação sobre as atividades a que elas se dedicavam? Tem. Quer saber a rua em que cada família morava? Tem. Qual lado da rua? Tem. Quer o nome dos descendentes? Tem. Quer informação sobre o que eles fazem hoje? Tem. Quando foi fabricado o primeiro picolé? Tem também. E se o leitor der firnizim para saber quem eram os carteiros que traziam em 1918 as malas postais, a pé, desde a Cidade de Goiás até Porto Real? Pois não é que tem! Digamos que o mocó do leitor queira sair do senguê da dúvida sobre de onde vinha o anil que as viúvas usavam para tingir as roupas do luto, vai dizer que o livro diz? Vou, porque ele diz.
E não há razão para alguém sair gunguiando pelos cantos por achar tudo isso ainda pouco, porque não é só. João Gonçalves tem a louvável paciência de registrar o nome, espécie a espécie, de 123 árvores, 5 capins, 9 palmeiras, 22 frutas silvestres, 28 plantas medicinais, 33 animais bravios, 58 aves, 28 peixes, 16 abelhas e 12 marimbondos que compõem a paisagem do entorno de Porangatu. É um delicioso desfilar de expressões peculiares, elas próprias poemas completos em si mesmas: sangra d’água, oiti-de-vereda, tatarubá, gonçalo-alves, cega-machado, açoita-cavalo, sangue-de-cristo, araçá-goiaba, quioiô, mama-cadela, mentrasto, onça-lombo-preto, caricará, rolinha-caldo-de-feijão, doré, mandi-ferro, papa-terra, tataíra, bijuí, mané-de-abreu, mangangá, joão-calado.
A obra traça um panorama informativo, que talvez possa ser extrapolado para boa parte do Brasil profundo, sobre a vida no interior inóspito. Conta, por exemplo, de que forma a comida era preparada, como era a entrada na igreja do imperador do festejo e seus quatro cavalheiros para a missa de sábado à noite. Dá detalhes sobre gravidez, parto e resguardo numa época em que se tratava umbigo de bebê com óleo de mamona e pó de fumo.
Quer dizer, João Gonçalves nos entrega um breviário para desvendar um mundo que não se vê, mas que alicerça em alguma medida o caráter do brasileiro de hoje e ajuda a entender conflitos que ainda nos envergonham. É possível acompanhar no livro um bom exemplo do processo de formação de cidades desde a época do Brasil Colônia, confirmar a vocação bandeirante dos brasileiros e perceber que desde sempre fervilha entre nós o caldeirão da ocupação da terra.
Acadêmico e didático
Descoberto da Piedade não é só um livro de memórias. É uma obra acadêmica no conteúdo, embora felizmente não no estilo. Ao contrário, é um texto agradável de ler, fácil de acompanhar. Ninguém espere o provincianismo que é usual em obras sobre as pequenas cidades. Nada disso. A escrita é quase jornalística na objetividade: “Ensinava os alunos a ler, no livro de Felisberto de Carvalho, a escrever e a fazer as quatro operações de aritmética. Não ensinava as regras gerais do português”.
A reunião de informações inéditas, com base em conhecimento próprio e testemunho de outros antigos moradores, e de outras espalhadas por acervos e livros torna a obra uma base para pesquisa de estudiosos daqui para frente. Estão nela transcritos inúmeros documentos e dados fundamentais para conhecer a história do antigo Descoberto e o cenário em que ela se deu, sem contar a rica lista das fontes consultadas por João Gonçalves. Ou seja, apesar de não ser a obra de um historiador profissional, qualquer estudioso que se proponha a escrever sobre a história goiana não a poderá ignorar. Aliás, não vai querer ignorá-la.
É, por fim, um livro didático. Vem pronto para ser adotado como base para o estudo regional, mesmo nos municípios em volta de Porangatu. Não só porque as histórias na área se entrelaçam, mas também porque João Gonçalves inclui informações geográficas sobre o território comum. Além da fauna e da flora, registra exaustivamente as serras, os morros, os rios e os córregos. Os dados minuciosos servem para satisfazer qualquer nível de necessidade ou curiosidade – “Serra do Presídio ou Landi: com 8 km de extensão e 585 metros de altitude em seu ponto mais alto, localiza-se dentro da Fazenda Presídio, nome originado do Presídio de Santa Cruz, criado em 7 de agosto de 1854, à margem direita do rio Canabrava”.
“Descoberto da Piedade” deve estar nas estantes e nas mãos e, principalmente, sob os olhos dos porangatuenses de hoje e do futuro. Eles vão poder escapar da praga do esquecimento das origens, tão contagiosa entre os brasileiros. Quem sabe assim não possam sentir-se menos perdidos no espaço atordoante da modernidade, que tende a podar raízes, desdenhar das tradições e apagar a riqueza das diferenças. Que o livro de João Gonçalves sirva para lembrar que é preciso salvar nossas identidades.
Everardo Leitão é professor de redação e texto.
Descoberto da Piedade
Autor: João Gonçalves dos Reis
Páginas: 200
Editora: Cânone Editorial