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Juan José Saer é um dos maiores escritores do século 20. “Glosa” é uma evidência

“Glosa” é uma obra que tensiona as relações entre espaço, tempo e a dualidade entre o mundo físico e o imaterial, articulando essas questões por meio de uma estrutura narrativa complexa

Justine, de Sade, está para a modernidade como Dom Quixote para o barroco

Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

Conhecer a obra de Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade (1740-1814), é importante para entender a sociedade e a literatura francesas dos séculos XVIII e XIX e para conhecer a mente transgressora de um escritor. Romancista, contista, novelista e filósofo, ele desafiou a moralidade pública com seus escritos polêmicos e libertinos.

Notável por sua obsessão em fazer literatura pornográfica, mas dando-lhe suporte filosófico, o Marquês de Sade transgrediu as leis francesas, os mandamentos da Igreja e a boa convivência social. Suas contravenções e atentados ao pudor refletiram-se em sua literatura, o que o levou a ser encarcerado em várias prisões e ocasiões e em asilo para loucos.

Sua personalidade exótica talvez tenha sido, quiçá em parte, produto de uma infância atribulada. Seu pai abandonou a família, sua mãe foi para um convento e Donatien Alphonse foi criado por um tio abade e por criados muito permissivos. Aos 23 anos sua família, nobre, resolveu casá-lo com uma moça de família de grande fortuna, unindo assim nobreza e riqueza. O trato foi feito e Donatien concordou, pensando ser a noiva a mais nova e bonita das duas filhas, surpreendendo-se quando lhe impingiram a mais velha e sem atrativos; mas, mesmo assim, ele aceitou casar-se. Mais tarde ele teve um caso com a cunhada. Tal situação de engano remete, por analogia, ao icônico engodo bíblico protagonizado por Jacó e Labão.

A vida tumultuada do Marquês despertou o interesse de grandes intelectuais franceses do século XX, que escreveram sobre ele; seu principal romance, “120 dias de Sodoma”, foi fielmente adaptado para o cinema por Pier Paolo Pasolini (1922-1975) com o nome de “Salò, ou os 120 dias de Sodoma” (1975). Este livro foi escrito quando ele estava preso na Bastilha, pouco antes da Revolução Francesa.

Sua literatura pertence à Escola Barroca, com diálogos em que o formalismo retórico é a fórmula naturalmente utilizada e a idealização do amor o apresenta sempre como eterno e imorredouro.

A influência dele foi tão grande que seu nome deu origem a um verbete nos dicionários, significando adjetivo exemplificativo de sodomia, crueldade sexual e maldade. O mesmo se deu com Maquiavel, cujo termo “maquiavélico” é sinônimo de mau e sem escrúpulos, tendo conotações similares a “sádico”. “Sadismo” e “masoquismo” (proveniente do nome do escritor Leopold Ritter von Sacher-Masoch, 1836-1895) foram dois termos cunhados pelo psiquiatra austríaco Richard von Krafth-Ebing (1840-1902) para classificar distúrbios de ordem sexual.

Lendo “Novelas Trágicas” (Carambaia, 352 páginas), cujo título original é “Les crimes de l’amour, histoires héroiques et tragiques” (Paris, 1799), conhece-se um pouco da obra do polêmico escritor. Até então, esses escritos estavam inéditos no Brasil.

O livro contém um excelente ensaio do Marquês de Sade, “Reflexões Sobre os Romances”, que serviu como prefácio da primeira edição francesa pela necessidade, sentida pelo escritor, de estabelecer conceitos firmes e claros sobre o que é o romance, conto e novela, prosas derivadas das epopeias, que ainda exerciam forte influência na literatura à época.

Também importante é o posfácio de André Luiz Barros, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e tradutor do livro, com informações preciosas sobre o Marquês e sua obra.

O livro é composto por cinco novelas, das onze originais, escolhidas pelo tradutor pela importância dada a elas pelo Marquês: Faxelange; Florville e Courval; Laurence e Antonio; Ernestine; Eugénie de Franval.

Foi na prisão que o irreverente Sade escreveu as narrativas que compõem o livro. Premido pelos novos postulados políticos e filosóficos soprados pelos ventos iluministas já antes da Revolução Francesa, querendo provar seu valor literário aos seus pares e leitores, o Marquês abandonou a temática libertina e assumiu novo foco: - novelas de alto teor moral. Foi uma mudança radical, para quem desafiava os preceitos da moralidade.

Nessa fase de reclusão carcerária (uma das muitas) escreveu cerca de 50 textos, entre novelas e contos, todos extremamente paroxísticos. Ele se despede da apologia à libertinagem, liberalidade sexual ampla e irrestrita, para assumir uma postura de defesa da moralidade e dos bons costumes.

Na estrutura textual das novelas ele se utiliza de um jogo antitético, com valores morais duais e antagônicos. Essa mudança teve, provavelmente, um viés irônico. A nova orientação certamente obedeceu a uma estratégia literária para sua reabilitação social.

Os protagonistas são binários: ou excessivamente sensíveis e compassivos ou praticantes de maldades extremas. Os personagens estão desprovidos de uma análise psicológica mais complexa, mas as tramas, que por sua vez são bem elaboradas e instigantes, prendem a atenção do leitor. São novelas escritas com primor, propiciado pela profunda cultura do autor.

Histórias escabrosas, explorando situações extremas e agônicas, como a da jovem Florville, que tendo sido abandonada ao nascer e desconhecendo sua origem, acaba cometendo uma sequência dos mais hediondos pecados e crimes, como apaixonar-se pelo irmão, casar-se com o próprio pai e matar, sem intenção, seu filho e sua mãe.

Em “Eugénie de Franval” o autor aborda o tema do incesto entre pai e filha, que gera enorme tragédia, de tal forma que parte da novela foi censurada e retirada, mas reintegrada na presente edição. Em “Ernestine” a jovem protagonista, bela e doce, é vítima de astúcia e maldade. Condenam o inocente jovem a quem amava a morrer na forca, e a fazem assistir ao enforcamento. Ernestine prefere se imolar, deixando-se matar.

A obsessão pela riqueza, incutida pelo pai e pelos valores da época, em que o casamento era a forma de redenção feminina, leva a jovem Faxelange, protagonista da novela homônima, a arruinar a própria vida abandonando seu grande amor e casando-se com um suposto nobre milionário, na verdade um ladrão e assassino violento, que a submete a grandes sofrimentos físicos e morais.

“Laurence e Antonio” é ambientada em Florença, na época dos Médici, século XVI. O contexto histórico serve de pano de fundo para uma novela bem estruturada, na qual a cultura clássica do autor fica evidente. O ciúme, a inveja, a maldade e a intriga são os elementos que movem um pai para destruir o amor de seu filho pela inocente nora. Uma trama que se assemelha, sob alguns aspectos, à tragédia shakespeariana “Otelo”, sendo Carlos Strozzi um personagem que reproduz o espírito de Iago.

Nessa linha de inspiração literária seguem-se as novelas que, ao estabelecerem situações antitéticas ou antagônicas em extremo, utilizando maldades exemplares, deixam claro que o Marquês de Sade continuava sádico, mudando apenas as intenções aparentes e as roupagens argumentativas.

“Les Crimes de l’amour: histoires héroiques et tragiques” teve, do libertino Marquês de Sade, a função didática de ensinar que o crime e a maldade não compensam e que o bem deve prevalecer. Apesar de as novelas não apresentarem cenas de sexo, a obsessão pela crueldade perpassa os personagens maus e os finais são trágicos. Quis o autor, de certa forma, transmitir preceitos morais, tal como nas fábulas. Contudo, o que se percebe como inspiração temática denuncia um escritor obcecado por relacionamentos tóxicos e doentios e que tem como objetivo a estreita relação entre dor e prazer.

O polêmico e instigante Marquês de Sade, objeto de estudos psiquiátricos e psicanalíticos até os dias de hoje, fez, à sua maneira, um mea-culpa literário. Seus contos e novelas representam tão somente sua visão de uma pseudo realidade, tarefa própria da narrativa ficcional.

A regeneração do Marquês de Sade para o universo das pessoas normais parece que não ocorreu. Seu desejo de normatização dos excessos dos instintos humanos quebrou paradigmas civilizatórios. Entretanto, o Marquês de Sade tornou-se emblemático na literatura francesa e ocidental por suas qualidades literárias e filosóficas e pela ousadia inconsequente no campo da moral e dos costumes. Transformou-se em uma verdadeira lenda. Não li “120 dias de Sodoma”, mas ouvi dizer que é preciso ter estômago forte para lê-lo. “Justine: ou os tormentos da virtude” é outra obra paradigmática do Marquês de Sade e ambas representam sua literatura transgressora. No entanto, “Novelas Trágicas” é uma leitura recomendável para quem quer conhecer a obra do famoso Marquês sem ficar impactado com cenas sádicas, na acepção metafórica do termo. (A frase do título é do filósofo francês Michel Foucault.)

Marina Teixeira da Silva Canedo, poeta, cronista e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.

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