Agenda de leitura de escritores, jornalistas e intelectuais (parte 7)

15 fevereiro 2025 às 21h21

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Euler de França Belém
Editor-chefe do Jornal Opção
Tenho um método de leitura. Bem, não é um método. É uma idiossincrasia. É assim: leio um romance e, em seguida, uma obra de não-ficção (história, filosofia, crítica literária, ensaio, biografia). Salto de “Limite de Caracteres — Como Elon Musk Destruiu o Twitter” (Todavia, 485 páginas, tradução de Bruno Mattos, Christian Schwartz, Marcela Lanius e Mariana Delfini), de Kate Conger e Ryan Mac, para “A Travessia”, de Cormac McCarthy. Intercalo com um livro de poesia (aprecio o racionalismo poético de Salomão Sousa, com a técnica subordinando a sensibilidade aguda e vice-versa, com as miudezas da vida, da natureza, criando um poema extraordinário, de feitura irrepreensível). Porque, ao me desconcertar, a poesia me faz continuar vendo o mundo como surpresa, e não como certeza, naturalizado.
Minha lista de leitura é, além de gigante (a lista arrolada não engloba todos os livros que planejo ler), penelopiana. É feita e desfeita ao longo do ano. No meio do caminho, como não disse o bardo, há sempre um livro “novo” que deixa os agendados para trás na fila, às vezes imensa. A biografia de Carlos Lacerda — o primeiro volume está previsto para 2025 —, de Mário Magalhães, será colocada entre as prioridades, furando a “cola”. Assim como as biografias de Leonel Brizola, por Karla Monteiro, e de Millôr Fernandes, por Paulo Roberto Pires (autor de uma biografia excepcional de Jorge Zahar). Se saírem, é claro.
Na minha idade, quase 64 anos, chegou a hora das releituras — por exemplo, de Graciliano Ramos, o maior escritor brasileiro. Mas obediente à “tese” (borgiana) de que não há releitura — só leitura —, quando pego um livro que li há cerca de dez anos nem me reconheço nos grifos. Na nova leitura às vezes os grifos mudam de lugar (uma bela frase, dado o caráter poético, encanta-me mais do que a informação mais relevante, por assim dizer). Se livro não estivesse tão caro, compraria outro exemplar para evitar que a primeira leitura atrapalhe, com seus tantos grifos, a segunda leitura.

Em fevereiro de 2025, reli o romance “A Travessia” (na bela tradução de José Antonio Arantes; talvez falte um glossário para as palavras em espanhol), de Cormac McCarthy (cujos últimos livros são exercícios literários de um virtuose que perdeu a mão). O autor é expert em “aplicar” Homero, o da “Odisseia”, à sua literatura. Seu livro é uma “Odisseia” do vai e volta, dos Estados Unidos para o México e deste para aqueles. Billy é Ulisses, Boyd talvez seja Aquiles, o da “Ilíada”. Há trechos excepcionais.
Um homem perde o filho pequeno, num terremoto, e se torna uma espécie de incréu que estuda a Bíblia para vituperar Deus. Um padre tenta aconselhá-lo, mas perde o “debate” e se torna ermitão. (Há ecos de “A Montanha Mágica, de Thomas Mann, notadamente o diálogo-debate entre Settembrini e Naphta? É possível.) A fala dele (um monólogo) para Billy é um dos pontos fortes do livro. Há um cego-filósofo (sem cultura, diga-se) de mente luminosa que, de alguma maneira, aclara a história do México e a vida para Billy. É o que “enxerga” mais as tragédias e tramoias da história da Revolução Mexicana. O fim do livro, com Billy chorando e Deus talvez redimido, não é grande. Mas McCarthy merece perdão. Porque o conjunto é valioso. Romance de formação, “A Travessia” só não é melhor do que “Meridiano de Sangue”, sua obra primíssima.
A minha lista de leitura é, ao mesmo tempo, uma dica para as editoras brasileiras, como Relicário, Intrínseca, Autêntica, Record, Companhia das Letras, Todavia, Âyiné. A maioria dos livros mencionados merece tradução para o português brasileiro, que, derivada do português luso, é uma língua nova, que reinventou a mãe.
1 — “La Criatura Terrestre”, de Katherine Mansfield

A contista Katherine Mansfield é bem traduzida no Brasil. A fileira de tradutores é longa: Erico Verissimo, Julieta Cupertino, Denise Bottmann, Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Alexandre Barbosa de Souza, Mônica Maia. Mas a poeta é uma ausência na seara patropi. “La Criatura Terrestre y Otros Poemas” (Ediciones Torremozas, 273 páginas, tradução de Jimina Jiménez Real) mostra a força da poesia da criadora neozelandesa. Na ótima introdução, Jimena Jiménez sugere que, quando mais assimilada, sua poesia poderá ampliar a visão sobre sua criação literária global. No lugar de apenas “contista”, será preciso acrescentar “poeta”. A Editora Jabuticaba planeja publicar uma coletânea de poemas da escritora, com tradução de Katherine Funke.
2 — Arabescos Num Chão de Giz, de Valdivino Braz

Um dos melhores livros de poesia do Brasil é “Arabescos Num Chão de Giz” (91 páginas), de Valdivino Braz. Há duas possibilidades para a leitura da obra. Primeiro, pode ser lida como um poema único, dividido em partes conectadas. Segundo, os poemas podem ser lidos separadamente — dado o vigor de cada um. Trata-se de uma “Divina Comédia” dos trópicos. Talvez seja possível sugerir que se trata de um poemário pagão, profano. Mas, paradoxalmente, é de uma religiosidade ímpar. Porque a religião cristã, um fenômeno cultural, é inescapável: crentes e incréus não sobrevivem sem sua retórica, inclusive no dia a dia (mesmo os ímpios dizem, sem querer: “Graças a Deus!”, “Deus me livre!” ou “Meu Deus!”). O poeta Valdivino Braz, voz que parece distante mas está próxima (irônica e vívida), é uma espécie de mediador entre Deus e Lúcifer. O anjo “levantado” e o anjo “caído”. A cosmogonia cristã, com Deus, um semideus, Jesus, e quase-deuses, os santos, é a mitologia do cristianismo. O bardo — insisto: um dos melhores do país (e está escrevendo um romance à “Finnegans Wake”, uma “obra em progresso”) — forja uma mitologia pessoal, poética e a integra, misturando-a, à mitologia grega e, digamos assim, à mitologia cristã. A rigor, portanto, há três mitologias no poemário de Valdivino Braz. Uma é a do poeta, a que põe as outras — a grega e a cristã — para dançarem com a musicalidade de suas palavras-passos.
3 — Goiânia, 90 Anos, de Eliézer Cardoso, Jales Mendonça, Nasr Chaul e Nilson Jaime

Goiânia, a capital de Goiás, merecia, há muito, um livro para explicá-la, não em sua unidade, e sim em sua diversidade. Tal livro chegou ao mercado livreiro. Trata-se de “Goiânia, 90 Anos” (a edição é tão boa que parece arte da Cosac Edições ou da Companhia das Letras). Há ensaios de Itami Campos, Jales Mendonça, Antônio Caldas, Itaney Campos, Eliézer Cardoso, Iúri Rincon, Elizabeth Caldeira, Jacira Rosa Pires, Narcisa Abreu Cordeio, Nasr Chaul, Nilson Jaime, Ademir Luiz, entre outros. Há estudos históricos — substanciais — e testemunhos de não especialistas. O título do ensaio de Ademir Luiz é no mínimo estranho: o que há de erudito numa peça (do ótimo prosador) Miguel Jorge? O texto de Chaul, “Goiânia, 90 anos”, é um dos mais interessantes da obra (há insights cruciais para mestrandos e doutorandos). A apresentação do livro frisa: “Muito sangue foi derramado para que Goiânia pudesse existir e essa violência dos anos iniciais da cidade foi retratada pela metáfora do ‘Chão Vermelho’, título do livro de Eli Brasiliense (1993. Nota do Jornal Opção: teria sido mais informativo publicar a data da primeira edição do livro, e não, possivelmente, da última).
4 — Escritoras e Rebeldes na Guerra Civil Espanhola, de Sarah Watling

“Amanhã Talvez o Futuro — Escritoras e Rebeldes na Guerra Civil Espanhola” (Âyiné, 519 páginas, tradução de Tamara Sender), de Sarah Watling, mostra que não apenas Hemingway, John Dos Passos, George Orwell e Herbert Matthews pelearam com armas ou palavras entre 1936 e 1939. Jornalistas, fotógrafas e escritoras estiveram lá e, com palavras e ações, batalharam ao lado dos Republicanos: Valentine Ackland, Martha Gellhorn, Nancy Cunard (a notável poeta fez muito pelos republicanos, inclusive, mais tarde, pelos refugiados), Virginia Cowles, Nan Green, Josephine Herbst, Kea Salaria (uma enfermeira negra dos Estados Unidos), as irmãs Nancy e Jessica Mitford, Gerda Taro, Sylvia Townsend Warner. O envolvimento de Virginia Woolf (não esteve na Espanha) com a guerra é uma das partes interessantes do livro. Um sobrinho morreu durante a Guerra Civil. A editora retirou o índice remissivo e há erros (que não retiram o brilho do excelente livro). Lytton Strachey não é mulher e Valentine Ackland e Valentina Warner eram um casal, mas não eram homens. São apresentadas como “parceiros”. Eram companheiras e se amavam.
5 — El Holocausto Espanhol, de Paul Preston

“El Holocausto Espanhol — Odio y Exterminio en Guerra Civil y Después” (Debate, 859 páginas, tradução de Catalina Martínez Muñoz e Eugenia Vásquez Nacarino), de Paul Preston, é dos mais importantes livros sobre o resultado final da batalha entre republicanos e fascistas. O historiador britânico relata que, “durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), cerca de 200 mil homens e mulheres foram assassinados longe da frente e aos menos 300 mil perderam a vida nas frentes de batalha”. O governo de Francisco Franco fuzilou, no final de 1939, 20 mil republicanos. Poucos livros mostram com tanta clareza e precisão a selvageria dos franquistas. “Muitos mais morreram de fome e doenças nas prisões e nos campos de concentração. Outros sucumbiram às condições escravagistas dos batalhões de trabalho.” Mais de meio milhão, para escapar da violência do fascismo franquista, escapou para o exílio. “Muitos pereceram em campos de internação franceses. Milhares acabaram nos campos de extermínio nazistas”. É o que Paul Preston chama de “o holocausto espanhol”.
6 — En El Gulag, de Luiza Iordache

O livro “En el Gulag — Españoles Republicanos en los Campos de Concentración de Stalin” (RBA História, 663 páginas), de Luiza Iordache, resulta de uma pesquisa exaustiva. A Guerra Civil Espanhola terminou em 1939, com a vitória do fascismo de Francisco Franco. Muitos espanhóis, para escapar da perseguição brutal do franquismo, exilou-se na União Soviética de Ióssif Stálin. O governo comunista abriu o país para 3 mil crianças, professores e auxiliares. Acolheu também centenas de exilados políticos vinculados ao Partido Comunista Espanhol e ao PSUC, centenas de marinheiros e pilotos. Dezenas de espanhóis que estavam em Berlim quando a cidade foi liberada pelo Exército Vermelho foram enviados para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O que parecia bom se tornou uma experiência dura. O regime de Stálin “internou”, deportou e reprimiu-os. Mais tarde, vários exilados conseguiram sair do país de Lênin e se exilaram em outros países. Mas alguns ficaram na URSS.
7 — La Guerra de los Ivanes, de Catherine Merridale

Quem assiste filmes de Hollywood pode ficar com a impressão de que, heroicos, os Estados Unidos derrotaram a Alemanha nazista praticamente sozinhos. Não foi bem assim: além dos ingleses, os russos foram decisivos. A importância das forças armadas soviéticas pode ser conferida no extraordinário “La Guerra de los Ivanes — El Ejército Rojo: 1939-1945” (Debate, 569 páginas, tradução de Francisco Ramos), de Catherine Merridale. Mais de 27 milhões de soviéticos — a maioria civis — foram mortos na Segunda Guerra Mundial. A historiadora britânica relata que 8 milhões de soldados e oficiais soviéticos pereceram nas batalhas. “Uma cifra que supera, em muito, o número total de militares mortos alemães e aliados.” Perdedores da Guerra Fria, os soviéticos não tiveram a sua importância registrada com o devido valor por parte da historiografia, notadamente a americana, que, por vezes, só nota a batalha da Normandia, o Dia D. Dias Ds foram muitos. É o que mostra Catherine Merridale, neste livro exemplar. A batalha de Kursk, na qual os soviéticos destruíram centenas de tanques alemães, merece mais espaço nos livros sobre luta seminal do século 20.
8 — Antologia de Spoon River, de Edgar Lee Masters

O poeta americano Edgar Lee Masters visitou cemitérios de duas cidades de Illinois e ouviu as fofocas de sua mãe (fala-se também na avó). Leu os epitáfios e, depois de examinar a Antologia Palatina, decidiu escrever um livro sobre as pessoas enterradas. São histórias imaginadas por certo com informações sobre algumas pessoas reais. O resultado são quase 250 poemas. Os mortos falam e, portanto, estão vivos. Como o passado, estão presentes. O poema que mais aprecio é “Anne Rutledge”: “De mim, indigna e ignota/ As vibrações da música imortal;/ ‘A ninguém com maldade, a todos com caridade.’/ De mim, o perdão de milhões para milhões,/ E o rosto benevolente de uma nação/ Luzindo com justiça e verdade./ Eu sou Anne Rutledge que dorme sob essas ervas,/ Amada em vida por Abraham Lincoln,/ Com ele casada, não pela união,/ Mas pela separação./ Para sempre floresci, ó República,/ Desde o pó do meu seio!” A musa realmente existiu e morreu jovem. Curiosamente, Edgar Lee Masters está enterrado no mesmo cemitério (de Petersburg), e não muito longe da paixão do presidente americano. “Antologia de Spoon River” (Ex Machina, 220 páginas) conta com traduções de alta qualidade de Giuliana Ragusa e Bruno Costa (com colaboração de Alexandre Barbosa de Souza). O amparo crítico, de Ragusa, John E. Hallwas e Alcebiades Diniz Miguel, é de alta qualidade.
9 — Cuentos Completos, de James Salter

O americano James Salter (1925-2015) é menos conhecido, mas é um contista tão bom quanto Hemingway e Eudora Welty. “Cuentos Completos” (Salamandra, 334 páginas, tradução de Enrique de Hériz, Luis Murillo Fort e Aurora Echevarría) contém “relatos” que não foram publicanos no Brasil (Samuel Titan Jr. traduziu, e muito bem, “Última Noite e Outros Contos”, Companhia das Letras, 174 páginas). Joyce Carol Oates: “De uma sutileza, inteligência e beleza fora do comum”. Susan Sontag: “Um dos poucos escritores americanos de quem quero ler tudo”. Richard Ford: “Um mestre”. John Banville (autor de magnífico prólogo): “Salter escreve com perspicácia, precisão e engenho. Os primeiros contos, das décadas de 1960 e 1980, têm um ritmo jazzístico e o fulgor acetinado e frágil do mundo de Mad Men”.
10 — En Otros Lugares, de James Salter

Quem aprecia livro sobre viagens, mas não viagens burocráticas, pret-à-porter, ganhará com a leitura do belo e perceptivo livro “En Otros Lugares — Reportajes Literarios y Crônicas de Viajes” (Salamandra , 253 páginas, tradução de Aurora Echevarría), de James Salter. Ele viajou por várias partes do mundo e fala, entre outras coisas, sobre o Japão do escritor Yukio Mishima e cemitérios de Paris (e outros). “Eu fui a Tanger depois de ler Paul Bowles. Não vi sua Tanger; vi uma cidade insalubre; até a areia da praia parecia suja.” Por certo, as duas “poéticas”, a de Salter e de Bowles, são diferentes. O autor sugere que viajar só às vezes é positivo, pois aumenta a percepção dos detalhes (como se sabe, Deus mora nos detalhes). Li, além da introdução, o texto “Cementerios”, de 10 páginas. Frisa que “Paris nunca perecerá”. Espero; afinal, Atenas e Roma, cemitérios culturais, por assim dizer, continuam vivas. Os cemitérios Père Lachaise e de Montmartre (moradores ilustres: Stendhal e Berlioz) são citados pelo prosador americano. “De pé ante uma tumba a pessoa experimenta algo similar à realidade, quase de aura, de estar ante um grande quadro. Esta se reafirma a si mesma e, de certo modo, reafirma ao espectador, que queda unido a ela para sempre. Os mortos nos vivificam, nos revigoram, nos dão uma escala. Somos a parte desligada deles e ante suas tumbas estamos ante a nossa.” Pois é, pois é, pois é. Num cemitério abandonado, Salter colheu uma “advertência silenciosa”: “Recorda amigo ao passar:/ como te vês eu me vi,/ como me vê te verás./ Prepare-se a ir atrás”.
11 — Milan Kundera — Um Retrato Íntimo, de Florence Noiville

O tcheco Milan Kundera cometeu um pecado venial: se tornou popular por causa de um único romance, “A Insustentável Leveza do Ser”. Há “críticos” e leitores que não lhe perdoam o sucesso (não o literário, e sim o de vendas). É um dos maiores prosadores dos séculos 20 e 21. E é um ensaísta de primeira linha. Avesso a entrevistas e biografias (dizia: “Esqueça minha vida, abra meus livros”), fugiu dos pesquisadores, até dos sérios, como Lúcifer foge da cruz. Por sorte dos leitores, Florence Noiville, amiga do casal Vera e Milan Kundera, conseguiu ouvi-lo, de maneira ampla, e por isso pôde escrever o ensaio biográfico, “um retrato intimista e fascinante”. A biógrafa conversou com Kundera em cafés e em seu apartamento de Paris. Ela revela um escritor tão lúcido quanto irônico. O livro inclui fotografias de Kundera com a mulher e vários amigos, como Miloš Forman.
12 — O Pequeno Ucraniano, de Kima

O livro “Memórias de Kima — O Pequeno Ucraniano” (Cegraf UFG, 276 páginas), de Akim Botovchenco, organizado por Ekaterina Botovchenco Rivera (pesquisadora da UFG e mãe de Guillermo Botovchenco Rivera, diplomata brasileiro em Buenos Aires), é uma dessas pequenas joias que, publicada por uma editora boa mas sem expressão nacional, tende a não ser percebido pela crítica. Kim Botovchenco (ou Akim-Joaquim) nasceu na Ucrânia e sua família sofreu perseguição implacável dos comunistas de Vladimir Lênin e Ióssif Stálin. Ele escapou para a Tchecoslováquia, onde se formou em Medicina. Como o nazismo começou a se fortalecer, Kima decidiu mudar-se para o Brasil, em 1930. No país do grande médico (e escritor) Heitor Rosa, autor do texto da contracapa, foi obrigado a clinicar em pequenas cidades do Rio Grande do Sul. Um decreto de Getúlio Vargas impedia que médicos formados no exterior trabalhassem em cidades com mais de 10 mil habitantes.
13 — Una Relación Perfecta, de William Trevor

Um dos maiores prosadores da Irlanda, William Trevor (1928-2016) é pouco traduzido no Brasil (há dois romances vertidos para o português brasileiro: “A História de Lucy Gault” e “A Jornada de Felícia”). Seus notáveis contos não chegaram até nós. “Uma Relación Perfecta” (Salamandra, 220 páginas, tradução de Isabel Ferrer Marrades), reúne 12 contos (li dois, os notáveis “La hija de la modista” e “Hombres da Irlanda”). A impressão que se tem é que Trevor aproxima-se para ver, a vida das personagens, e distancia-se para compreendê-la. Mais mostra do que demonstra. Alberto Manguel escreve sobre outro livro do autor, “Verano y Amor”: “Uma das mais perfeitas histórias de amor de nosso tempo”. A respeito do mesmo livro, Rodrigo Fresan disse: “Prosa elegante e perfeita administração do tempo dramático de um grande entre os grandes”. É tão bom quanto James Joyce, só que menos famoso. (Leia mais sobre William Trevor https://tinyurl.com/5n82hcfw)
14 — La Nave de los Locos, de Cristina Peri Rossi

Sabe Cristina Peri Rossi, a notável poeta, prosadora e crítica literária uruguaia que mora na Espanha (escapou da ditadura brutal dos tempos da Guerra Fria)? Quais livros da amiga e crítica de Julio Cortázar (adorava sua poesia e sua prosa) tu, leitor brasileiro, leu em português? Nenhum, possivelmente. Há algum tempo, procurei seus livros em Buenos Aires, e encontrei poucos, numa livraria pequena, nas proximidades da “El Ateneo” (onde não havia nenhum). Em seguida, comprei algumas de suas obras nas livrarias — como Más Puro Verso e Escaramuza — e sebos de Montevidéu. Em dezembro de 2024, de volta a Montevidéu, encontrei novas edições de seus livros. Em Barcelona, para onde se mudou em 1972, tentou emplacar a obra de Clarice Lispector. A história é contada no livro “Aquelles Años del Boom — García Márquez, Vargas Llosa y El Grupo de Amigos Que Cambió Todo” (Debate, 559 páginas), de Xavi Ayén. O Boom da literatura latino-americana na Europa não tinha apenas homens. Xavi Ayén menciona, para citar dois nomes, a brasileira Nélida Piñon e Cristina Peri Rossi, autora do romance “La Nave de los Locos”, que muitos consideram um dos mais livros mais importantes do Boom e sua obra prima.
15 — Philip Roth — La Biografía, de Blake Bailey

Ao lado de William Faulkner, Saul Bellow, Eudora Welty, Joyce Carol Oates, John Updike, Richard Ford, Ralph Ellison, Cormac McCarthy, James Salter e Toni Morrison, Philip Roth é um dos mais importantes escritores americanos do século 20. Os romances “O Complexo de Portnoy”, “O Teatro de Sabbath” e “Pastoral Americana” merecem um lugar entre as melhores obras de Faulkner e Bellow. A obra do autor foi perdendo vitalidade com o tempo, mas, no conjunto, é de alta qualidade. Ele morreu há quase sete anos, em 2018. Já merecia uma biografia? Sim. Até para que os leitores entendam como usou (e até abusou) de sua vida e de familiares na sua literatura. Não se trata de “reportagem”, e sim de vida imaginada. Com a literatura ampliando e esclarecendo os escaninhos da realidade. “Philip Roth — La Biografía” (Debate, 1002 páginas, tradução de Juan Rabasseda Gascón e Teófilo de Lozoya), de Blake Bailey (autor de uma biografia excepcional de John Cheever), é, possivelmente, uma pesquisa preliminar, mas, ainda assim, é muito boa. A Companhia das Letras começou a traduzir a biografia, mas decidiu não publicá-la porque Blake Bailey foi acusado de assédio sexual. Quem perdeu? Os leitores brasileiros e a editora. (Estranha-me Edgar Allan Poe não ser citado nenhuma vez no livro, ao menos de acordo com o índice de nomes.)
16 — Poemas y Poetas — El Canon de la Poesía, de Harold Bloom

Harold Bloom é um dos melhores críticos de prosa e, sobretudo, de poesia da história. Ele não descarta a fortuna crítica, é claro, mas prioriza a leitura direta, formulando suas próprias conclusões. Há um belo livro de sua autoria circulando em inglês e espanhol: “Poemas y Poetas — El Canon de la Poesía” (Páginas de Espuma, 686 páginas, tradução de Antonio Rivero Taravillo). Há análises detidas de poetas consagrados. Mas recomendo a leitura de poetas menos estudados no Brasil, como Anne Bradstreet, Andrew Marvell, Elizabeth Browning, Matthew Arnold, Christina Rossetti, Gerard Manley Hopkins, Edwin Arlington Robinson, Paul Laurence Dunbar, Hilda Doolittle, Claude McKay, Jean Toomer, Langston Hughes, John Berryman, Gwendolyn, John Ashbery (a análise de Bloom sobre sua poesia é de rara qualidade) e Anne Carson. “A poeta canadense Anne Carson é tão original e autêntica em suas obras que só me ocorrem outros dois poetas de sua eminência que estejam vivos hoje em dia e escrevem em inglês: John Ashbery e Geoffrey Hill, e estes são mais velhos do que ela uma geração”. Hill morreu em 2016 e Ashbery em 2017. Bloom cita Octavio Paz e Pablo Neruda, talvez porque tenham ganhado o Nobel de Literatura, mas não menciona os brasileiros Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, o português Fernanda Pessoa, a uruguaia Cristina Peri Rossi, o chileno Vicente Huidobro, o peruano César Vallejos, o cubano Lezama Lima e o argentino Oliverio Girondo. Trata-se de um cânone praticamente da poetas da língua inglesa (o único russo citado é Púchkin. E o texto a respeito de sua literatura não é dos melhores do livro). O francês Rimbaud é arrolado, mas, inexplicavelmente, Mallarmé é ignorado.
17 — A Trama do Avesso, de Ronaldo Costa Fernandes

Há um poeta brasileiro — a crítica o trata como “morto” (toc, toc, toc), pois quase não o resenha — que pertence à categoria dos mestres. Seu poemário parece lírico, à Drummond de Andrade, mas há, às vezes nas entrelinhas — e sua poesia pode ser mais lida nas linhas, por ser direta —, há aquela secura (e segurança e precisão no uso das palavras) de João Cabral de Melo Neto. Mas o que noto, de cara, é uma voz única, ou seja, do próprio autor ao tratar do cotidiano, lembrando, quiçá vagamente, Franz O’Hara e, aqui e ali, Frank Stanford. Estou falando de Ronaldo Costa Fernandes, que fala de coisas pequenas, o dia a dia, que, no fundo, são grandes. Abordo sua poesia assim: leio de uma sentada. Depois, leio poemas esparsos. O que impressiona é a qualidade, cuja média é alta, o que mostra um rigoroso processo de seleção. “A Trama do Avesso” (7 Letras, 92 páginas) é de uma beleza rara. “A mercadoria dos afetos” é um dos poetas que leio e releio com prazer (assim como “O Avesso da Trama”): “Nem sempre me sinto/ atacado por dúvidas./ Temo o varejo do engano./ Em algum momento/ meu armazém de incertezas/ de adulterar a mercadoria dos afetos./ Tudo o que é miúdo/ é apenas uma metonímia./ Por isso busco fugir/ das minhas desavenças/ que ao fim e ao cabo/ são apenas o comércio da existência.”
18 — Viajeros en el Tercer Reich, de Julia Boyd

O nazismo chegou ao poder na Alemanha de Goethe e Heine em 1933, e de maneira lícita, sem golpe de Estado. Já na década de 1920, o nazismo (frise-se que a extrema direita está se fortalecendo, mais uma vez, na Alemanha, o que é sempre um risco… e o país está em crise em termos de economia). Antes de o nazismo se firmar no poder, com Adolf Hitler, e pouco depois de ascender e começar a perseguição aos judeus e àqueles que não comungavam sua prática totalitária, escritores, jornalistas e intelectuais de vários países circularam pela nação de Thomas Mann, o autor de “Doutor Fausto”. “Viajeros en El Tercer Reich — El Auge del Fascismo Contado Por Viajeros en la Alemania Nazi” (Ático de los Libros, 446 páginas, tradução de Claudia Casanova), e Julia Boyd, rastreia bem o que disseram os “turistas das ideias”. Os “viajantes” escreveram cartas, diários e memorandos diplomáticos. Entre os que tentaram entender o que estava acontecendo são mencionados escritores como Virginia Woolf, Samuel Beckett e Christopher Isherwood. O notável historiador britânico Keith Lowe (seu “O Medo e a Liberdade — Como a Segunda Guerra Mundial nos Transformou” sai, em março, pela Editora Zahar, com 648 páginas e tradução de Maria Luiza X. de A. Borges) escreve sobre o livro: “‘Viajeros en el Tercer Reich’ é um livro com múltiplos matizes e baseado em uma documentação exaustiva que nos mostra como viam a Alemanha aqueles que visitaram o país nos anos 30. Uma leitura verdadeiramente fascinante”.
19 — Amortalhada, de María Luisa Bombal

María Luisa Bombal (1910-1980) pode ter influenciado o mexicano Juan Rulfo e, este, influenciado o colombiano Gabriel Garcia Márquez. O realismo mágico, portanto, é tanto filho dos dois escritores famosos quanto da autora chilena. O romance “A Última Névoa” (Difel, 109 páginas, tradução de Neide T. Maia González) é uma dessas pequenas obras primas que, sem propaganda, se apagam, com o tempo (não ajuda o fato de a autora ter sido conservadora, mesmo que tenha feito uma literatura revolucionária). A próxima leitura será o romance “Amortalhada” (Difel, 83 páginas, tradução de Alicia Ferrari del Pardo e Aurora Fornoni Bernardini). “Em ‘Amortalhada’ descobrimos que a autora soube transmitir com sua arte uma das mais tocantes experiências metafísicas — a da morte —, como não líamos desde ‘Ivan Ilitch’, de Tolstói”, assinala Aurora Fornoni Bernardini. A edição brasileira contém uma entrevista da autora e um artigo elogioso de Jorge Luis Borges. Maria Luisa Bombal escreveu um conto extraordinário, “A Árvore”. (Leia mais sobre Maria Luisa Bombal https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/maria-luisa-bombal-a-escritora-que-influenciou-juan-rulfo-e-indiretamente-garcia-marquez-672479/)
20 — Thoreau, Biografía de un Pensador Salvaje, de Robert Richardson

Henry David Thoreau (1817-1862 — viveu 44 anos) pode ser considerado o bisavô dos hippies? Pode ser visto como o inventor das caminhadas? Deve ser ressaltado como o escritor e filósofo que cultivou a vida nas florestas, o amor verdadeiro, não meramente teórico, pela natureza? Talvez, ao menos em parte. “Walden ou a Vida nos Bosques” (L&PM, 336 páginas, tradução de Denise Bottmann) é um dos mais belos livros que li nas minhas décadas de leitor. Uma obra prima. Tendo estudado em Harvard, Thoreau tinha formação científica e era uma alma criativa, que sabe escrever sobre a natureza, unindo ciência e, por assim dizer, “poesia” (a delicadeza ao tratar a floresta, as caminhadas pelas trilhas). “A Desobediência Civil”, que encanta o jornalista Fernando Gabeira, é um de seus clássicos. O estudo mais amplo de sua vida provavelmente é “Thoreau — Biografía de un Pensador Salvaje” (Errata Naturae, 587 páginas, tradução de Esther Cruz Santaella), de Robert Richardson. No prefácio, o professor de Yale e Harvard assinala que seu livro é “uma biografia intelectual de Thoreau”. Ele relata a evolução do escritor, naturalista e leitor. No plano pessoal, perambulava, durante quatro horas por dia, nos bosques, colinas e campos. “Os olhos de Thoreau tinham uma sinceridade chamativa, iluminados como estavam pela inteligência e pelo humor.” Um dos pontos altos do livro é a amostragem da amizade afetiva e intelectual com o filósofo Ralph Waldo Emerson. Este convenceu o discípulo a anotar suas impressões num diário. Thoreau apreciava ler, escrever e pensar (pela própria cachola e era avesso às modas).
21 — Lo Que No me Contaste, de Mark Mazower

“Mark Mazower é um grande historiador e um narrador sutil, sempre atento ao detalhe humano”, diz o escritor turco Orhan Pamuk, Nobel de Literatura de 2006. Nós conhecemos nossos pais, sabemos algumas coisas sobre sua infância e a origem de suas famílias? Sem anotações, o registro das histórias, as memórias se perdem. Mazower tem 66 anos. Depois que o pai morreu, buscou saber mais a seu respeito. Descobriu uma história ampla, sobre a qual o pai quase não falava. Sua família “passou pelo cerco de Leningrado, o gueto de Vilna, a Paris ocupada e, inclusive, pelas fileiras da Wehrmarcht [forças armadas da Alemanha nazista]. Seu pai, filho de emigrantes judeus russos estabelecidos em Londres depois da guerra civil e da revolução [russa], teve a sorte de nascer na Grã-Bretanha. Max, o avô, havia militado, quando jovem, na organização socialista do Bund e havia enfrentado as tropas czaristas, ainda que nunca falasse disso. Frovna, a avó, provinha de uma família devastada pela Guerra e pela grande purga [stalinista] e que, ainda assim, logrou abrir caminho na sociedade soviética.” É um belo livro que conta uma história verdadeira que parece ficcional.
22 — Karl Kraus en los Últimos Días de la Humanidad, de Adan Kovacsics

Como Karl Kraus (1874-1936 — viveu 62 anos) deve ser visto: jornalista, satirista, polemista, autor de aforismos pontiagudos como punhais ou pensador? Talvez tudo isto sirva para qualificá-lo. Sabe Paulo Francis, o jornalista e escritor que, durante anos, pontificou na “Folha de S. Paulo” e, em seguida, em “O Estado de S. Paulo”. Pois o austríaco era um mix de Paulo Francis e Nelson Rodrigues de cultura mais sólida e menos errático (talvez H. L. Mencken esteja mais próximo do homem que mesmerizava plateias e leitores). Qualquer biógrafo tem dificuldades de agarrar pela unha e criar um corpo lógico a respeito de um indivíduo tão múltiplo — que escreveu sobre tantas coisas — quanto Karl Kraus, que, assinalou o filósofo e escritor Elias Canetti, balançava Viena e adjacências com seus petardos críticos contra quase tudo e contra quase todos. “Karl Kraus en los Últimos Días de la Humanidade” (Ediciones Universidad Diego Portales, 251 páginas), de Adan Kovacsics, é uma tentativa de capturar e explicar tanto o homem quanto sua obra. Até onde li, com sua prosa fluente, é bem-sucedido. Kraus empolgava as plateias de seu tempo — Elias Canetti, um homem avesso a ardores sentimentais, era um de seus principais admiradores. “Nesta Grande Época”, o pensador desanca a imprensa por sua conivência com o delírio bélico que levou à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Na sua opus magna, “Os Últimos Dias da Humanidade”, desanca, sem dó nem piedade, o horror da batalha que abalou toda a Europa. O biógrafo não deixa de ressaltar o caso de alcova entre Kraus e a baronesa Sidonie Nádherný.
23 — Hegel — O Filósofo da Liberdade, de Klaus Vieweg

Nunca acreditei na tal história de que Karl Marx revirou Hegel, o “idealista”, de cabeça para baixo. Por isso, a biografia do filósofo alemão, ampla e precisa, entrou, quase a fórceps, para minha lista deste ano.
24 — Gorbachev — A Biografia, de William Taubman

O ex-governador e intelectual refinado Irapuan Costa Junior mora em Aveiro, Portugal, e sempre que volta ao Brasil traz um livro para mim. Desta feita, trouxe “Gorbachev — A Biografia” (Desassossego, 862 páginas, tradução de Luís Santos), de William Taubman. Posso atestar, pelas 100 páginas que li, que se trata de uma biografia do balacobaco e, ao mesmo tempo, uma grande história da Rússia e da União Soviética. Recolho um trecho da página 712: “Outro líder soviético poderia ter-se recusado a fazer as concessões que Gorbachev fez a Reagan e a Bush. Mas, a ser assim, a guerra fria teria continuado e até piorado — não o tipo de ‘guerra fria’ que rebentou vinte e três anos depois de Gorbachev ter deixado o poder, por pior que seja, mas a verdadeira, com arsenais nucleares massivos ainda em alerta máximo. (…) E se Gorbachev tivesse usado a força para preservar o império soviético? Isso poderia ter levado a outra guerra na Europa. (…) A União Soviética desmoronou-se quando Gorbachev enfraqueceu o Estado numa tentativa de fortalecer o indivíduo”. É uma biografia “a favor”? É, mas nada tem de hagiografia. Taubman, que ganhou o Pulitzer pelo livro “Khrushchev — The Man and his Era”, é professor de Ciência Política do Amherst College, nos Estados Unidos.
25 — Martha Gellhorn — Una Vida, de Caroline Moorehead

Há muito planejava ler “Martha Gellhorn — Una Vida” (Circe, 511 páginas, tradução de Beatriz López-Buisán), de Caroline Moorehead. Encontrei um exemplar usado na Grinderman Libros, em Montevidéu, e fiquei alguns minutos examinando-o. Percebi que uma pessoa o havia adquirido em 2012, leu até a página 265 e fez uma série de anotações (no geral, óbvias, mas algumas pertinentes). Grifou trechos com lápis e, depois, com caneta. Por que não concluiu a leitura ou, se leu toda a obra, por que parou de sublinhar? Comprei o livro e cheguei a pensar: vou apagar os grifos e as anotações (em espanhol) feitas a lápis. Depois, optei por deixar como estava, em homenagem ao primeiro leitor e dono. Há quem acredite que Martha Gellhorn (1908-1998) era “apenas” a ex-mulher do escritor Ernest Hemingway. Trata-se de um grande engano. A americana era uma jornalista notável — muito superior ao autor de “Por Quem os Sinos Dobram” — e também escreveu prosa. Nas grandes batalhas do século 20 — Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial e Guerra do Vietnã —, no lugar de ficar na redação dando opiniões, apresentou-se para reportar os fatos na linha de frente. Em meados da década de 1960, disse: “Quero escrever sobre os vietnamitas, sobre os civis; todos esquecem que são pessoas. Modestamente, pretendo dar-lhe um rosto, para que saibamos quem estamos aniquilando”. Conta-se que Hemingway, como repórter, era dado a divulgar algumas mentiras. Martha Gellhorn abominava o que chamou de “apocrifólogos” (os falsificadores da história). “Para Martha, Hemingway era o mais apocrifólogo de todos”, assinala Caroline Moorehead. A objetividade é necessária ao repórter, mas, para Martha Gellhorn, era vital identificar, nas questões em jogo, quem tinha razão. O jornalista, em nome da objetividade, não deve esconder do leitor os fatos verdadeiros, às vezes encobertos por declarações melífluas.
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João Paulo Teixeira
Publicitário e CEO da agência Mind Digital
Transição de ano sempre deixa no ar o sentimento “o que está por vir”. Ninguém sabe o futuro, é certo. Mas planejar é, ou deveria ser, um hábito humano. Segue aqui minha pequena lista de sugestões de livros, em muito influenciada pelo editor-chefe do Jornal Opção, o amigo e conhecedor da fina literatura mundial Euler de França Belém. Os três últimos são a bossa dos romances nacionais.
1 — Reparação, de Ian McEwan

Ian McEwan, o grande escritor de sua geração, alcunhado por vezes de “Ian Macabro”, dada a aspereza das primeiras obras, tem ampla lista de romances marcantes. O “New York Times” o destacou como um dos grandes livros do século 21. A personagem central do romance é uma garota que nutre esperança em ser escritora no futuro. No dia mais quente do ano, ela presencia a cena que irá repercutir durante sua vida. A história começa com sua irmã mais velha entrando só de calcinha e sutiã na fonte da casa de campo da família. A narrativa trata da reparação do ato, um suposto assédio, que se prolonga por toda a vida. Ambientado na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, o romance psicológico é o topo do que já foi produzido no começo do século 21.
2 — Pastoral Americana, de Philip Roth
Grande nome judeu da literatura americana, Philip Roth narra a saga de Seymour — não o da família Glass de Salinger, e sim Seymour Levor, um velho que se vê no final da vida e tenta transmitir seu legado à terceira geração de familiares. O livro é uma mescla de conflito de gerações, tão em voga hoje, bem como um romance sobre as causas perdidas e seu sempre característico ar de heroísmo, como um Cervantes moderno, sempre com o pé no desatino. O narrador da história é Nathan Zuckerman, dos livros anteriores “A Marca Humana” e “Casei Com um Comunista” e faz Seymour ser contado em terceira pessoa, assemelhando a um Adão que é expulso do paraíso.
3 — Elizabeth Finch, Julian Barnes
É um livro complexo sobre as várias naturezas do amor platônico e até mesmo sobre as diferentes visões de mundo, focado nas não comuns. Se passa sobre o analisar da vida de Elizabeth Finch, professora de visão original que morre e tem seus diários e livros analisados por um aluno. Análise interessante também sobre Juliano, o último imperador não cristão de Roma, uma das figuras admiradas por Elizabeth e elemento usado pelo narrador para montar seu jogral sobre o pensamento independente.
4 — Os Bastidores, Martin Amis
Autor de 15 romances de alta importância internacional, Martin Amis ganhou fama além do mercado literário ao ter filmado seu livro “A Zona de Interesse”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2024. O destaque apareceu depois de sua morte, em 2023, vítima do excesso de cigarros. Em “Os Bastidores”, Amis cria quase um gênero, ao montar um romance sobre a própria vida, seus momentos de alegria e sofrimento. Parecido com “Paris É uma Festa”, de Hemingway, é focado no ambiente literário da Inglaterra (e dos Estados Unidos; afinal, um dos autores prediletos de Amis é o canadense-americano Saul Bellow) — e não da França —, traz um panorama de “disputa” com o seu pai, também escritor, e se encara no espelho desnudado sem as comuns conveniências que nos cercam, a lá moda de Brás Cubas. Fala também de sua amizade por Saul Bellow e Christopher Hitchens (o grande polemista).
5 — Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy

Romance meio histórico, meio ficcional, sobre a formação dos Estados Unidos pautado na universal brutalidade dos homens. Parecido com “Contos de Kolimá”, de Varlam Chalámov, mas estruturado no que literariamente se descreve como “narrativa épica”. Conta a vida de um homem sem nome e sem família deixado no mais inóspito dos desertos, recrutado por uma companhia de mercenários com o objetivo de ganhar a vida buscando o máximo de escalpos de índios nativos. Mostra o que o juiz Holden classifica como ‘todos os horrores possíveis’, palco da formação da maior nação do mundo no século XXI. Trata da formação de todos os países, por conseguinte, também a brutalidade dos chegados na América Latina, e como a fera presente em todos os homens forma também o cerne das nações.
6 — Absalão, Absalão!, de William Faulkner

Vencedor do Nobel de literatura, Faulkner é o máximo da chamada “literatura sulista” e do estilo modernista de contar histórias (em suma: o “filho” americano de James Joyce e “primo” de Guimarães Rosa). O escritor narra a vida de Thomas Sutpen, mais rico plantador de algodão de uma região fictícia dos EUA. Vindo da miséria nas montanhas de Virginia, o personagem cria um império erguido na escravidão e na “brancura”. Temas fortes como incesto e assassinato permeiam a narrativa de Faulkner, o expoente do sul dos Estados Unidos, misturando realidade e ficção. Temas contemporâneos e paralelísticos com a formação também da cultura do agro no Brasil, que está em plena formação. Na obra de Faulkner, que se passa no século XIX, a rigidez dos tempos passados se acentua ainda mais. Publicado no longínquo ano de 1936, se mantém atual. A linguagem é uma das “personagens” do romance.
7 — A Tirania do Amor, de Cristóvão Tezza

Brasileiro, Cristóvão Tezza já venceu o Jabuti, uma espécie de Nobel tupiniquim. No meio literário, é celebrado como autor de “O Filho Eterno”, que lhe deu projeção internacional. Em “A Tirania do Amor”, o romance é construído em linhas modernas nacionais sobre o economista Otavio Espinhosa, que vive todas as crises do mundo contemporâneo, comum a quase todo classe média de hoje. O casamento que não funciona, problemas com o filho militante, a demissão eminente, a tentativa – fracassada até – de ser um coach de sucesso. Panorama de um ser humano em ruínas, semelhante a todos nós quando nos olhamos de verdade no espelho. Toda construção paira a partir de quase uma piada, quando a personagem central decide abdicar de sexo.
8 — A Noite da Espera, de Milton Hatoum
Nacional e ainda mais próximo de nós, goianos, trata sobre a criação da capital da República, Brasília, vista a partir da visão de um jovem que se muda de São Paulo e cresce na nova cidade moderna. Retrato de um Brasil permeado pela violência institucional definida pela ditadura, de um filho que perde o contato com a mãe, e das amizades com outros filhos de altos e médios funcionários do governo, maioria da classe média de Brasília. Trata também sobre contatos com os moradores das cidades satélites, região metropolitana que a quem coube os candangos e imigrantes. Parte 1 do grande livro de Hatoum chamado “o lugar mais sombrio”, romance de formação que se assemelha a que poderíamos descrever porcamente com o “o apanhador no campo de centeio” do Planalto Central.
9 — Os Substitutos, de Bernardo Carvalho
Um dos maiores escritores nacionais, Bernardo Carvalho dá uma de Tom Wolf em “Os Eleitos” e narra a história de um pai e um filho de 11 anos que vão para a Amazônia num avião bimotor em plena ditadura militar. Aliado do poder, o pai busca devastar a floresta para vender madeira a preço de ouro para Europa. O filho, imerso na leitura de uma novela de ficção cientifica, se imagina num mundo pós apocalíptico quando a Terra é devastada e um grupo de selecionados é mandado para o espaço. Bem construído, “Os substitutos” mostra a saga de um Brasil subdesenvolvido vendido às grandes potências estrangeiras. Nada que tenha mudado nos últimos 100 anos, desde quando Monteiro Lobato nos abria os olhos sobre a necessidade do Brasil se modernizar ou extinguir-se.
10 — Madona dos Páramos, de Ricardo Guilherme Dicke
Narra a saga de 12 foragidos pelo sertão, que, no caso, não é o sertão nordestino e nem o de Minas, como na obra de João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Se passa no chamado “meio-oeste” brasileiro, sertão entre Goiás e Mato Grosso. Os 12 “cavaleiros do apocalipse” do livro estão em busca de uma terra de leite e mel, como a Canaã da Bíblia. Cada um disputa a única mulher do grupo, retirada de sua casa e mantida sem nome. O caleidoscópio é sobre a personalidade de cada um e a natureza do homem em sua forma mais original. Dicke é celebrado por Hilda Hilst como “um escritor que comove até a medula” e “Madona dos Páramos” é considerado por toda a crítica especializada como sua obra prima. Dicke é apontado como uma espécie de Guimarães Rosa do Centro-Oeste. Trata-se de um grande escritor. Sua obra está sendo relançada, o que é positivo tanto para os leitores quanto para os críticos.