Conheça os autores que influenciaram o estilo de García Márquez, autor de Cem Anos de Solidão

15 fevereiro 2025 às 21h20

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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Parte 2 da resenha do livro “García Márquez — História de um Deicídio” (Record, 616 páginas, tradutora Ivone Benedetti), de Mario Vargas Llosa
O estilo literário de Gabriel García Márquez, como analisado por Mario Vargas Llosa em “García Márquez — A História de um Deicídio”, é uma rica confluência de influências que ajudaram a moldar sua prosa única.
Vargas Llosa destaca que a obra de García Márquez é marcada pela exploração do tempo de forma não linear, pela profundidade psicológica de seus personagens e pela habilidade de integrar o fantástico ao cotidiano de maneira natural e orgânica. Além disso, o autor aponta a inspiração que Márquez encontrou em escritores que conectaram tradições locais com temas universais, conferindo à sua narrativa uma densidade histórica e cultural notável.
Neste texto, analisaremos quatro dos escritores que influenciaram a literatura de Gabo. Por razões de espaço, a seleção é limitada, mas para quem desejar aprofundar-se em outras influências literárias, fica o conselho: adquira o livro de Vargas Llosa, uma leitura indispensável para compreender a genialidade de Gabriel García Márquez.
A influência de Faulkner em García Márquez
Mario Vargas Llosa, renomado escritor peruano e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em sua tese de doutorado García Márquez: História de um Deicídio, explora em profundidade a obra do autor colombiano Gabriel García Márquez, estabelecendo um diálogo crítico entre García Márquez e seu precursor literário, William Faulkner. A resenha aqui elaborada destaca a influência marcante de Faulkner na criação de Cem Anos de Solidão, uma das obras-primas da literatura latino-americana.
Vargas Llosa aponta que Faulkner, com seu condado fictício de Yoknapatawpha, serviu de modelo para García Márquez ao estruturar Macondo, o cenário principal de sua narrativa. Yoknapatawpha é mais do que um espaço geográfico; é um microcosmo cultural e psicológico, onde o tempo é uma espiral e o passado permanece como uma sombra constante sobre o presente. García Márquez utilizou uma abordagem semelhante ao conceber Macondo, transformando-a em um lugar onde a história, o isolamento e os conflitos humanos são apresentados como elementos inevitáveis de uma realidade maior e universal.
A influência de Faulkner é especialmente perceptível na forma como ambos os autores constroem seus mundos anacrônicos e claustrais. Em Yoknapatawpha, o tempo se apresenta como um fluxo contínuo em que os eventos se sobrepõem e reverberam, criando um universo em que os personagens não conseguem escapar de suas heranças culturais e familiares. Em Macondo, García Márquez adota essa mesma dinâmica temporal, apresentando uma narrativa cíclica e fatalista que enfatiza a repetição dos destinos humanos e a impossibilidade de romper com o passado.
Outro ponto central destacado por Vargas Llosa é a presença dos “demônios” que movem as personagens em ambas as obras. Em Faulkner, esses demônios surgem das profundas tensões sociais, raciais e históricas do sul dos Estados Unidos, enquanto em García Márquez, eles se manifestam como impulsos de poder, desejo e corrupção que moldam as gerações da família Buendía. Ambos os autores criam um universo literário onde o indivíduo é simultaneamente produto de suas escolhas e vítima de forças históricas e sociais maiores.

Além disso, a construção do espaço ficcional reflete a visão de mundo dos dois autores. Yoknapatawpha, com suas fronteiras simbólicas, representa um universo fechado e autossuficiente, onde os conflitos internos têm ressonância universal. Da mesma forma, Macondo é um espaço isolado, metafórico da América Latina, cuja história parece condenada a ciclos de ascensão e queda, espelhando as realidades culturais, políticas e econômicas da região.
Concluímos que a influência de Faulkner sobre García Márquez é profunda e multifacetada. O colombiano não apenas adotou a estrutura e a profundidade psicológica de Yoknapatawpha, mas também reinterpretou e transformou esses elementos em algo singularmente latino-americano. Faulkner ofereceu a García Márquez uma base técnica e estilística, mas foi a visão de mundo de García Márquez que deu a Macondo uma identidade única. A universalidade da literatura de Faulkner encontra um eco poderoso na obra de García Márquez, evidenciando que a literatura, mesmo quando ancorada no local, pode transcender fronteiras e se tornar um retrato do humano em toda a sua complexidade.
Influência de Hemingway em García Márquez
Na obra “García Márquez: História de um Deicídio”, Mario Vargas Llosa analisa de forma minuciosa os elementos que moldaram a literatura de Gabriel García Márquez, apontando para uma convergência marcante com o estilo e as temáticas de Ernest Hemingway. A tese de Vargas Llosa, que serve como base para esta resenha, permite explorar a influência do escritor norte-americano sobre o colombiano, especialmente no que tange ao uso da objetividade narrativa, o papel do jornalista como escritor e a maneira como ambos construíram demônios internos e externos em suas obras.
Ernest Hemingway, com sua prosa econômica e direta, trouxe um estilo literário que se distanciava do ornamento excessivo. García Márquez, ao iniciar sua trajetória como escritor e jornalista, encontrou no método de Hemingway uma inspiração para consolidar sua própria linguagem. A influência de Hemingway pode ser vista na precisão narrativa que permeia os primeiros contos e romances de García Márquez, uma característica que, mesmo com a inclusão do realismo mágico em suas obras mais tardias, jamais abandonou sua escrita. Essa clareza na exposição de ideias, herdada do trabalho jornalístico, confere ao texto de García Márquez uma densidade emocional que se revela tanto nos detalhes banais quanto nos acontecimentos extraordinários.

No entanto, enquanto Hemingway esculpia sua prosa em torno da suspensão de Deus em um mundo marcado pela brutalidade e pela ausência de sentido, García Márquez transformava essa suspensão em algo mais fluido e ligado ao cotidiano latino-americano. Ambos os autores construíram “demônios” que dialogam com a condição humana: Hemingway explorou a solidão existencial e a luta interna de seus personagens diante de um universo desprovido de transcendência; García Márquez, por sua vez, imergiu em um contexto de realismo mágico, onde o fantástico não nega o humano, mas o complementa. A suspensão de Deus, presente em ambas as abordagens, reflete a busca por significados em realidades contrastantes — a universal e a latino-americana.
O trabalho jornalístico também estabeleceu um ponto de conexão crucial entre os dois escritores. Hemingway, conhecido por sua vivência como correspondente de guerra, incorporou em seus textos uma objetividade que transmitia a urgência dos fatos, uma característica que García Márquez soube adaptar à sua própria prática como repórter. Essa formação influenciou não apenas o estilo narrativo de García Márquez, mas também a sua percepção da realidade. Tal como Hemingway, ele utilizava os detalhes concretos como base para a criação literária, mas os transformava, muitas vezes, em elementos mágicos que desafiavam a lógica convencional. Essa metamorfose, um dos pilares do realismo mágico, demonstra como García Márquez soube absorver e transcender a objetividade de Hemingway, fundindo-a com as tradições orais e os mitos de sua terra natal.
A análise de Vargas Llosa nos convida a refletir sobre como a mudança de realidades — do mundo árido e brutal de Hemingway ao universo exuberante e mágico de García Márquez — revela mais pontos de diálogo do que de oposição. Ambos os escritores compartilhavam um senso agudo de que o papel do escritor não era apenas relatar, mas construir uma nova dimensão da realidade. Nesse sentido, a influência de Hemingway é indiscutível, não apenas na técnica, mas na concepção do escritor como um “deicida”, alguém que reconstrói o mundo por meio de sua visão única, rompendo com as estruturas tradicionais e propondo novas formas de interpretar a existência.
Portanto, a influência de Ernest Hemingway na escrita de Gabriel García Márquez transcende a mera técnica narrativa. Está presente em sua formação jornalística, em sua abordagem do humano e, principalmente, em sua capacidade de transformar a realidade em literatura. Se Hemingway ajudou a moldar a linguagem e a objetividade de García Márquez, foi este último quem adaptou essas ferramentas para construir uma obra que dialoga profundamente com as raízes culturais e históricas da América Latina. Assim, García Márquez não apenas absorveu as lições de Hemingway, mas as transcendeu, mostrando que a simplicidade narrativa pode ser um veículo para o sublime.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp e crítico literário. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.