Foto: Artchive
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Fernando Bueno Oliveira
Especial para o Jornal Opção, artigo originalmente publicado em 2014

A institucionalização do dia 20 de novembro como o dia Nacional da Consciência Negra, em ho­me­nagem ao dia da morte do líder quilombola negro Zumbi dos Palmares, colabora para que durante esse mês diversas reflexões se efetivem em variados ambientes: nas escolas, nas universidades, nos segmentos representativos da população negra, na mídia, dentre outros meios. Embora envolvam amplas discussões, apontamos como temática central aquela que diz respeito à inserção do negro numa sociedade de consciência tão frágil, não se esquecendo de questões que envolvem o racismo, ainda tão evidente, e dos valores da população negra brasileira (percebidos, principalmente, por intermédio da Universidade e do Movimento Negro).

Uma das características que marcam profundamente a sociedade brasileira são as práticas racistas que acontecem de forma velada. Mesmo assim, não são difíceis de serem notadas nas várias atitudes que ocorrem no cotidiano social, por exemplo, o medo de muitas pessoas ao cruzarem nas ruas com um grupo de rapazes negros; ou, melhor, na preocupação da elite, frequentadora de shoppings, em relação aos “rolezinhos”, encontros marcados via rede sociais de jovens, de maioria pobre e negra, como forma de protesto acerca das condições de segregação social. Na realidade, poderíamos enumerar infinitas situações que nos remetem à afirmação de que o racismo ainda é imperante na sociedade brasileira. Ainda mais, podemos dizer, mesmo com as sanções de leis que tratam o racismo como crime, que tal prática tem ocorrido de forma intensa e contínua, de forma pública e inegável, assim como ocorria no Brasil Colonial e Imperial, quando a escravidão era institucionalizada. Somente a título de exemplificação, podemos citar o caso recente que envolve o professor do departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Manoel Luiz Malaguti, o qual, durante a aula da disciplina de Introdução à Economia Política, do 2º período do curso de Ciências Sociais, proferiu declarações preconceituosas relacionadas aos(às) negros(as) cotistas e à sua inserção no mercado de trabalho. Ou, o caso de Patrícia Moreira, torcedora do Grêmio que num numa atitude, totalmente pensada e racional, xingou de macaco o goleiro Aranha, do time do Santos. A mesma torcedora até pensou que um mero pedido de desculpas resolveria tudo. Ou, ainda, o quantitativo de jovens negros assassinados anualmente no Brasil: dos 30 mil jovens vítimas de homicídios por ano, 77% são negros. Nesse caso, apesar dos altíssimos índices de homicídio de jovens negros, o tema é em geral tratado com indiferença na agenda pública nacional.

No Brasil, em pleno século 21, sendo a população negra a maioria, grande parte dos negros brasileiros ainda é percebida pela elite branca como meros serviçais, merecedores de baixos salários, o que é demasiadamente observável em cidades turísticas, por exemplo, ao longo da orla Carioca, onde os empregados, em sua maioria negra, lavam pratos, arrumam mesas e talheres, enquanto os brancos comem, conversam e se divertem. Ainda nesse viés, as categorias geográficas assumem um brilhante papel quando a análise se volta às praias do Rio de Janeiro: a praia de Ipanema, por exemplo, é composta por territórios simbólicos, onde, em alguns deles, os negros dos morros se concentram; a praia de Copacabana já é um lugar da elite branca, onde se percebe mais fortemente a presença negra nas atividades comerciais (pequenos vendedores de refrigerantes, petiscos, cervejas, picolés, sombrinhas, bronzeadores). Esse mesmo olhar pode ser estendido para a própria segregação espacial do Rio de Janeiro, haja vista que após a abolição, a expulsão da população negra do centro da cidade resultou na migração forçosa das famílias rumos aos morros, os únicos locais em que pessoas totalmente despossuídas de bens poderiam habitar, formando as favelas cariocas. Obviamente, são formações espaciais que também ocorrem em diferentes cidades brasileiras.
O geógrafo Milton Santos fez uma breve, embora profunda, reflexão sobre ser negro no Brasil e em outros lugares. O mesmo professor, na qualidade de professor e pesquisador, teve experiências de ser negro em países da Europa, América, África e Ásia. Mas é aqui, no Brasil, que o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes, deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária. Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas). Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil, segundo a doutrina oficial acolhera nenhuma forma de discriminação ou preconceito. Para Santos, ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo.

Algumas ações recentes, embora seguidas de protestos por integrantes da alta sociedade, demonstram alterações positivas no sentido dos negros se afirmarem em meio às instituições de educação básica, às universidades e ao próprio mercado de trabalho: uma ação positiva foi a sanção da Lei de Cotas, que garante a reserva de vagas em cursos superiores nas universidades federais e institutos federais brasileiros; uma outra, ocorreu na educação básica quanto aos ensinamentos sobre cultura afro-brasileira e africana. Essa inserção da população negra nos diferentes espaços da sociedade brasileira tem sido feita à custa de árduas lutas do Movimento Negro pelo Brasil.

É de suma importância a atuação de estudos sistemáticos promovidos pelas diversas universidades públicas brasileiras, as quais contribuem decisivamente para as reflexões relacionadas às trajetórias espaciais e intelectuais de migrantes negros, quilombolas e ativistas, cooperando para o desenvolvimento de pesquisas, o fortalecimento intelectual e a afirmação de seus integrantes enquanto indivíduos que possuem diferentes vivências e trajetórias.

Num mês tão significativo, não poderíamos deixar de enaltecer as significações de escritores negros na segunda metade do século 20, os quais puderam, de certa forma, inaugurar um movimento de auto-afirmação e recuperação da identidade cultural da população negra, além de se afirmarem em meio à classe de intelectuais, antes composta somente por ho­mens brancos: para exemplificar citamos os casos da escritora Carolina Maria de Jesus, da historiadora Beatriz Nascimento e da antropóloga Lélia Gonzalez.

Sobre a importância do mês de novembro para as reflexões de cunho étnico-racial, penso na insuficiência das mobilizações que, em grande parte, concentram-se somente nesse mês. Há extrema necessidade de uma contínua luta: todos os meses deveriam ser pela Consciência Negra. O quilombo do Palmares já não existe, mas os quilombos ainda são resistentes: hoje, quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento do negro e esperança de uma sociedade melhor. Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural.

Como diz o geógrafo Alex Ratts, Zumbi não é um morto-vivo que reaparece assustador em filmes, séries e em histórias de quadrinhos. É o último líder do quilombo dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1695, data que o Grupo Palmares de Porto Alegre propôs como dia nacional da consciência negra e todo o Movimento Negro encampou. É um herói nacional e mais: é o ícone da luta negra nas Américas, assim como Nanny para o Caribe. É aquele cuja cabeça cortada foi enviada ao governador de Pernambuco e exposta (real ou imaginariamente) para que não se considerasse que era imortal. É o que nunca foi escravo. É o imortal. Um brinde àqueles que reconhecem e valorizam a negritude.

Fernando Bueno Oliveira é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pela UEG.