Por Redação

Mais que uma “resposta” ao “1984”, de Orwell, o livro de Burgess parte de observações pessoais, concretas, da vida política e social da Europa dos anos 1970, para mostrar a incapacidade do Ocidente de preservar a sua própria civilização

Deputado estadual garantiu ao Jornal Opção que informou Polícia Militar sobre caso, fornecendo dados e contatos telefônicos

Termo de Cooperação pretende evitar que detentos fiquem presos além do tempo

No cooperativismo da Espanha, o lucro é um objetivo, mas não está acima de tudo. A diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é 4,5 a 6 vezes
Mayler Olombrada
Ressalte-se que o lucro, se é um objetivo, não está acima de tudo. As cooperativas têm valores muito bem estabelecidos — como a cooperação, responsabilidade social, participação e inovação. Não se trata de um mero discurso, e sim de aplicação prática, levando a riqueza gerada para cada trabalhador e para a sociedade na qual está inserido. Os funcionários recebem salários, como em toda empresa; contudo, existe uma preocupação com a desigualdade social. Em geral a diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é de 4,5 a 6 vezes.
Entre 1936 e 1939, a Espanha viveu uma terrível guerra civil, entre republicados e franquistas, e o artista plástico espanhol Pablo Picasso (1881-1973) eternizou a destruição do país em sua magistral obra Guernica. A tela, com seus mais de sete metros de comprimento, está no museu Reina Sofia, em Madrid. O quadro voltou à terra de Miguel de Cervantes somente depois do fim da ditadura do general Francisco Franco. O óleo sobre tela é uma expressão máxima do cubismo que ilustra o massacre da cidade homônima localizada no País Basco, no norte da Espanha. A região ficou destruída, mas, durante os sombrios anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), torna-se o cenário de uma grande transformação econômica e social. Expressões tão em voga no século 21 — como inovação, cooperação, cultura do compartilhamento, gestão do conhecimento e liderança — foram encarnadas na figura do jovem padre católico José María Arizmendiarrieta (1915-1976).
O case Mondragón e um novo capitalismo
Arizmendiarrieta chega à cidade de Mondragón em 1941 e funda uma escola politécnica para formação profissional. Com cinco alunos egressos de sua escola, incentiva o espírito cooperativista. Em 1956 é fundada a empresa Talleres Ulgor, que futuramente se transformaria na Fagor Electrodomésticos. Era apenas o primeiro passo na criação da Corporação Mondragón, um dos principais grupos empresariais espanhóis, presente em 41 países com vendas em mais de 150, faturamento de 11,875 milhões de euros, 260 empresas e cooperativas e mais de 74 mil pessoas.
À medida que a economia espanhola começava a dar sinais de recuperação, Arizmendiarrieta avaliava quais eram as necessidades e oportunidades no País Basco e incentivava os moradores a formarem novas cooperativas. Sua figura sintetiza todas as características que procuramos e tentamos desenvolver em nossos líderes, como carisma, responsabilidade, capacidade de comunicar e de estabelecer metas e objetivos, inspirando as pessoas a buscarem seu melhor e realizar seus sonhos.
Dessa forma surgiram inúmeras novas cooperativas, merecendo destaque especial a Caja Laboral, fundada em 1959, uma cooperativa de crédito que possibilitou ferramentas financeiras que fomentaram a criação e o desenvolvimento de várias outras cooperativas. Uma década depois surgiu Eroski, uma enorme cooperativa de consumo, que atualmente conta com cerca de duas mil unidades e mais de 450.000 associados.
Cultura organizacional e não socialismo
Ao se conhecer o sucesso do cooperativismo em Mondragón um erro comum ao observador menos atento é acreditar que se trata de um modelo socialista, comunista. Tal percepção cria dificuldades à corporação, que, durante sua expansão para o Leste Europeu, teve resistências. A Polônia — país que viveu a terrível experiência socialista sob o tacão do ditador Stálin, da União Soviética — é um exemplo de resistência.
O cooperativismo nada tem a ver com socialismo. As empresas cooperativistas fazem parte do capitalismo, buscam o lucro e competem no cenário econômico global em busca de eficiência, economia de escala e rentabilidade.
Ressalte-se que o lucro, se é um objetivo, não está acima de tudo. As cooperativas têm valores muito bem estabelecidos — como a cooperação, responsabilidade social, participação e inovação. Não se trata de um mero discurso, e sim de aplicação prática, levando a riqueza gerada para cada trabalhador e para a sociedade na qual está inserido. Os funcionários recebem salários, como em toda empresa; contudo, existe uma preocupação com a desigualdade social. Em geral a diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é de 4,5 a 6 vezes.
Se o mais simples operário tem um salário de mil euros, o presidente da empresa, o CEO, recebe no máximo 6 mil euros por mês. Em uma empresa convencional, a diferença pode passar de cem vezes. Tal realidade monetária faz com que, ao se visitar uma fábrica da Corporação Mondragón, não se consegue identificar facilmente o cargo de alguém por sinais tradicionais. No estacionamento os automóveis dos operários e do corpo diretivo são de modelos semelhantes. Todos comem a mesma comida e no mesmo ambiente. Os filhos estudam na mesma escola pública e frequentam o mesmo hospital, também público.
A intercooperação é outra marca registrada da corporação. Sempre que se discute sobre criatividade e inovação, ficamos fascinados com as startups do Vale do Silício. Ali se desenvolve uma cultura na qual cooperação é mais valiosa que a competição. Em Mondragón é a regra há mais de 50 anos.
O padre Arizmendiarrieta estimulou que as primeiras cooperativas ajudassem as novas e, até hoje, parte das sobras (equivalente ao lucro nas empresas tradicionais) é destinada a um fundo de solidariedade que ajuda cooperativas em dificuldades e a outro fundo voltado à promoção de novos projetos.
Em 2013, após acumular uma grande dívida com vários fornecedores, a pioneira Fagor foi vendida para outro grupo. Porém, de maneira surpreendente, os dirigentes conseguiram realocar mais de mil funcionários em outras cooperativas, o que evitou demissões que comprometeriam dezenas de famílias. Outro exemplo difícil de imaginar em alguns países, sobretudo nos tropicais — nos quais os políticos aumentam, na madrugada, seus próprios salários — foi a medida adotada após a crise de 2008 que provocou uma poderosa recessão na Espanha. Ao invés de cortar custo, por meio de demissões, a opção adotada foi reduzir os salários. Tal ação evitou demissões.
Por esse tipo de decisão, o País Basco foi a região da Espanha menos afetada pela crise, com menores taxas de desemprego e uma das que mais rapidamente vem se recuperando. Até hoje o salário não voltou ao patamar pré-crise.
Ao se deparar com um problema, o cooperativista enxerga uma oportunidade. A cooperativa prioriza negócios com outras cooperativas, seja no fornecimento de matéria-prima, na execução de projetos, na distribuição. E se nenhuma das empresas da corporação está capacitada para resolver a situação talvez esteja ali a oportunidade para criar uma nova cooperativa.
Esse ambiente de intercooperação é extremamente profícuo para a inovação. Aprende-se com os erros e se estimula a todo momento desenvolver novas ideias que possibilitem agregar valor, seja a um produto já existente, a um processo interno ou a um serviço a ser prestado.
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Universidade de Mondragón[/caption]
Fundo para educação
Mesmo com a robotização das fábricas, além da incorporação de novas tecnologias, não houve aumento do desemprego. Ao criar uma inovação que aumenta a produtividade simultaneamente entra em campo outra característica do mundo cooperativista: a educação. Todas as cooperativas destinam recursos a um fundo para educação.
O funcionário que será substituído por um robô é requalificado para desenvolver outra função, como dar manutenção ao próprio robô. Frise-se que a Corporação Mondragón surgiu da base educacional instituída pelo padre Arizmendiarrieta. A corporação conta com a Universidade Mondragón, além de centros de ensino de línguas, educação secundária e formação técnica. Há um grande investimento em pesquisa e desenvolvimento. Apenas cerca de 40% das receitas da universidade vêm das matrículas, o restante é proveniente das parcerias com empresas, em uma verdadeira integração entre ensino, pesquisa e aplicação prática.
A faculdade de Ciencias Empresariales é um grande exemplo de inovação. Os estudantes constituem, no primeiro ano, uma empresa real que deve fazer negócios e sobreviver durante os quatro anos de sua formação. As disciplinas são ensinadas com aplicação prática imediata em sua própria empresa.
No primeiro ano os jovens alunos visitam escolas na Finlândia, um dos maiores celeiros de inovação e novas práticas na educação. É um exemplo que destoa do fisiologismo de sindicalistas que em outros países se preocupam mais na manutenção de seus benefícios do que com os resultados pífios alcançados no teste Pisa.
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José María Arizmendiarrieta: padre que foi grande incentivador do cooperativismo[/caption]
No segundo ano de curso, os alunos viajam para a Califórnia, a fim de fazer negócios internacionais com suas empresas, e ver um outro ambiente que também prima pelo incentivo à inovação, a tão falada região do Vale do Silício, berço de empresas de tecnologia como Google e Apple.
Os custos da viagem e estadia é paga com as receitas da empresa criada pelos próprios alunos no primeiro ano de curso superior. No terceiro ano, precisam fazer negócios na China e na Índia, oportunidade para se relacionar com países emergentes, conhecer culturas completamente diferentes, e abrir as portas para uma carreira internacional. Novamente a viagem não é a passeio, e sim uma viagem comercial e educacional. Aprender mais sobre gestão e fechar negócios para sua empresa, que é responsável pelo custo da viagem. Como as cooperativas valorizam o ambiente social em que estão inseridas, os alunos também prestam serviço social nesses países, ajudando, por exemplo, no cuidado de pessoas menos favorecidas nos subúrbios indianos.
Capitalismo e democracia
Sem dúvida alguma é impossível visitar a Corporação Mondragón e não voltar modificado. Trata-se de um exemplo concreto de que o capitalismo aliado à democracia é até hoje a melhor forma de organização criada pelo homem; contudo, é possível ir além. Trabalhar em uma empresa organizada democraticamente — em que o trabalho é soberano, a gestão é participativa, e ademais prioriza a intercooperação, educação e transformação social — é algo de um prazer imensurável.
É claro que tal modelo não é a solução apropriada para todas as empresas, para todas as regiões ou para todas as pessoas. Entretanto, é fundamental conhecer esse experiência, pois no mínimo serve de inspiração para que valorizemos a cultura da inovação e a sociedade na qual esta cultura da inovação e a sociedade na qual estamos inseridos, trabalhando para transformá-la.
Mayler Olombrada, médico em Goiânia, esteve na Espanha recentemente para conhecer o cooperativismo do país.

Ex-primeiro ministro e deputado apoiado pelos Republicanos é o alvo a ser abatido. O jogo já começou e um escândalo financeiro veio à tona. Veremos se funcionará
[caption id="attachment_87925" align="aligncenter" width="620"] François Fillon é preparado e, se sobreviver ao “Escândalo Fillon”, ex-primeiro ministro francês pode ser alçado à Presidência | Foto: Fxgallery[/caption]
Frank Wan
Especial para o Jornal Opção
As eleições presidenciais francesas avizinham-se e há muita gente que até perde o fôlego, tamanha a tensão: muita coisa está em jogo. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, acontecimento tido por muitos analistas como “anormal” e com graves repercussões em diversos níveis, vai ser importante apenas dentro dos EUA e na relação dos mesmos com o resto do mundo? Ou, muito mais grave: vai ser o início de um dominó imprevisível pelo mundo afora? É possível isolar o fenômeno Trump?
As presidenciais francesas são as primeiras eleições num país centro-europeu com graves repercussões no futuro próximo.
Os olhos viram-se todos para Marine Le Pen, a filha do famoso Jean-Marie Le Pen, o homem mais à direita do espectro político francês. Sob certos aspectos é a continuadora de seu pai, mas, cada vez mais, em mais áreas, afasta-se quer dos métodos quer do discurso político a que ele nos habituou. Talvez seja bom recordar que a Frente Nacional, partido de suporte, tem ideias pro-fascistas (ou mesmo fascistas) e segue defendendo teses negacionistas da Segunda Guerra Mundial.
As apostas seguem altas no nome de Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia e qualificado como “Independente” — seja lá o que isso signifique nestes tempos de conceitos políticos brumosos — e, ainda à esquerda seguem-se outros nomes como seja o de Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon.
O labirinto de candidatos é gigantesco com misturas heterogéneas de origens e apoios, mas, como sempre, o tempo esclarecerá todas as coisas e estes muitos nomes e apoios acabarão por se fundirem à medida que forem vendo as suas reais possibilidades.
Conviria à esquerda que Le Pen fosse a candidata para o segundo turno, pois poderiam assim agitar todas as bandeiras que ainda estão desfraldadas da recente eleição de Trump e aproveitariam a carona do histerismo midiático para o lançar tudo sobre a candidata de coloração fascista, com a gigantesca vantagem de ainda se poder atribuir qualquer peso da direita extrema europeia a Trump. Trump passaria a ser culpado até do fato de o Sol ter nascido de manhã — a mídia gosta disso e as redes sociais também se alimentam de figuras que se possam odiar sem grande esforço de pensamento.
Nesta equação da esquerda, o grande problema é François Fillon.
Fillon é um girondino clássico, antigo primeiro ministro e deputado apoiado pelos Republicanos (Les Républicains). Um homem que está longe de ideologias xenófobas, revisionismos históricos ou qualquer outro extremismo, um homem sério que veio para ganhar e está longe do perfil histriônico de Trump.
Para muita gente, de interesses dúbios, este homem, obviamente, tem que ser abatido. Como se abate um candidato? Nos EUA, com algum escândalo sexual de última hora e, no moderno manual de caça às bruxas, na Europa, através de escândalos financeiros que tomam sempre o título diabólico de “corrupção”. As acusações tomam a forma habitual deste tipo de circo: ter recebido 21 mil euros dos Fundos Públicos do Senado entre 2005 e 2007 (soma irrisória face ao que ganha um antigo primeiro ministro e qualquer quadro superior francês e outras acusações que, materialmente, não são relevantes).
A partir do “Escândalo Fillon” (Affaire Fillon), todos os noticiários abrem com o assunto, todos os jornais fazem dele a primeira página. Neste momento, na última conferência que Fillon deu foram colocadas 87 perguntas, das quais 83 foram sobre o “escândalo” financeiro. Estamos, portanto, perante um “assassinato político-midiático”, ou um “assassinato de reputação”.
Fillon reage e passa ao ataque: denuncia os “comunistas enrustidos”, denuncia as pseudo-agências de informação, etc. O tom do discurso muda e, na minha opinião, aparecem em Fillon um orador exímio e um pensador profundo. Liberto das malhas do diktat das campanhas, Fillon começa a voar livre e, apesar da máquina contra ele, os franceses percebem que estão perante um homem que não teme e não treme.
Obviamente que Fillon vai pagar um preço elevado por este processo, seja qual for o resultado. A tensão é tão grande que se cogita até mesmo a retirada da candidatura. Quem poderia substituir Fillon? A alternativa mais “pesada” seria Alain Juppé, o candidato que perdeu as primárias presidenciais da direita em 2016 para Fillon.
Nas eleições presidenciais francesas cada candidato deve ter um trunfo: o seu primeiro-ministro. Fillon, de alguma forma, não está bem acompanhado. Os chamados “pesos pesados” (poids lourd) não o veem acompanhando e não têm um bom “primeiro ministro” para apresentar.
Sem manobras de escândalos convenientes, Fillon pode obter o chamado “ingresso” (ticket) para o segundo turno e, se isso acontecer, tornaremos a falar no mais sério candidato da direita francesa, um homem na esteira dos velhos valores de respeitabilidade, honestidade, tolerância e liberalismo (num sentido próprio). Um homem que tem uma visão moderna sobre os novos desafios e que sabe que não pode recorrer a velhos conceitos, estratégias e instrumentos.
Voltarei a esta coluna para falar das candidaturas de Emmanuel Macron, Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon. Todas elas com características politicamente muito interessantes, uma vez que, resolvem problemas político-ideológico modernos, sem mobilizar grandes conceitos de Teoria Política e dão respostas aos desafios econômicos sem grandes quadros de referências.
Sei que os leitores portugueses irão rir até às lágrimas, mas a grande referência da esquerda francesa é a coligação que governa Portugal.
Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, tradutor e professor.

Aos 82 anos, era um jornalista crítico e sempre posicionando. Denunciou a roubalheira dos governos do PT sem titubear

O petismo, que não tem nenhuma vocação para a autocrítica, não consegue explicar por que uma “ditadura” premiaria um escritor que a critica

“Febre de enxofre” propõe um jogo de espelhos, no qual obra e criador se fundem
Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
O mito do homem que sela um pacto com o diabo ganha uma releitura vertiginosa em “Febre de enxofre”, de Bruno Ribeiro. Tomando o clássico “Fausto”, de Johann Wolfgang von Goethe, como tábua de comparação, a estreia no romance do escritor mineiro radicado na Paraíba revisita algumas das composições que dão norte ao texto trágico do autor alemão: a procura desbragada por um sentido na vida, os excessos, a rivalidade entre o mundano e o etéreo, o desejo que se torna a contundência do amor. A única diferença está na recompensa. Não se trata de aprisionar a alma, mas o corpo, a matéria viva, esse invólucro de pele, carne, ossos e excreções.
A história tem início com uma despedida. Yuri Quirino, um poeta celebrado por seu primeiro livro, observa a namorada Luciana embarcar num avião com destino ao Rio de Janeiro, onde passará uma longa temporada. Ainda no aeroporto, abalado pelo frescor da separação, o personagem é abordado por um indivíduo estranho — “cabelos longos e negros, olhos e lábios finos, porcelana em forma de gente” — que se apresenta como Manuel di Paula, um fã, e afirma ter uma proposta de trabalho: escrever sua biografia. Para tanto, Quirino deveria se mudar para Buenos Aires, cidade natal do biografado, cuja mansão serviria de hospedagem. O trato também envolveria acerto financeiro.
“Não tenho tempo. Tem sim. Acho que não. O seu tempo é eterno, Yuri. Não te apresses. Não te apegues. O tempo caminha na sua direção”, altercam.
Apesar da insistência do desconhecido, o poeta decide voltar para Campina Grande, onde afoga suas mágoas na esbórnia, varando a madrugada entre a fauna local constituída por prostitutas, travestis, adictos e artistas. Num momento, está num cabaré; num outro, num lançamento de livro. Neste último, reencontra Malena, uma ex-amante, que agora namora um playboy dublê de poeta. Quirino transa com ela, transa com prostitutas, transa poesia e com travestis. Passa os dias bebendo com amigos, queimando o dinheiro que tem, enquanto não cola o rosto na tela do computador, chorando a saudade de Luciana em conversas via Skype.
Durante essa aventura hedonista, a figura misteriosa de di Paula é sempre uma sombra. Parece estar em todos os lugares, singrando o espaço-tempo, a fim de que o poeta o biografe. Chega, inclusive, a assediar Luciana, no Rio de Janeiro. Quirino continua o rechaçando o quanto pode, escorado na solidez complacente do pai. No entanto, quando a extravagância se revela uma jornada (quase fatal) de autodestruição, ele aceita o serviço e toma o avião rumo à Argentina.
A contextura dessa primeira parte se dá por meio de uma narrativa ágil, por vezes frenética, que muito lembra a carpintaria de autores como Luís Antônio Giron e, especialmente, Reinaldo Moraes. Blocos textuais que se conformam a partir de um vernáculo de transgressões e obscenidades, cujos significados transcendem o enredo. Neste caso, um exame sardônico da poesia contemporânea brasileira (“com a pós-modernidade, tudo é poesia) e da mercadização de autores de redes sociais que, na verdade, não passam de “paredes em branco”. Ribeiro desconstrói a forma, encavalando prosa linear e diálogos, abrindo apêndices, num ritmo que repercute a psiquê de seu protagonista. Achando um termo adequado na fala do próprio personagem, algo como “Beethoven dopado de LSD”.
Daí tem início a segunda metade, e o romance parece girar uma chave de contenção. Assim como acontece na parte dois de “Fausto”, a trama vai se enchendo de um clima mais velado, reduzindo o compasso e indicando outras intenções. O passado de di Paula (e, por conseguinte, o da sua família) vai sendo descoberto, tal uma história dentro da história (ou um fantasma dentro de um fantasma), na qual o autor propõe uma analogia entre não pertencimento e vampirismo. As referências também mudam: vão de Edgar Allan Poe (“A queda da casa de Usher”) a Julio Cortázar (“Casa tomada”). Ribeiro constrói uma viagem ao inferno, que é uma viagem pelo sentido identitário, pela literatura que avança contra a própria literatura para consumi-la e fazer, do seu livro, uma experiência anônima.
Com isso, o que se tem, afinal, é um jogo de espelhos confrontados cujos aços refletem o próprio autor. A quebra da barreira entre obra e criador, mostrando que a escrita nem sempre é uma maneira de expurgar demônios, mas também a chance de se fazer um pacto com o diabo.
Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc
Leia trechos do romance de Bruno Ribeiro:
TRECHO 1
¿O que há em minha boca sem dente? ¿Só abismo? Um labirinto de espelhos e dentro de cada reflexo uma luz contendo as Américas, milhões de olhos derretendo, as mulheres da nossa, minha vida, pedaços de cigarros, engrenagens rodando e violentando colossos, três milhões e quatrocentos e quatorze padres loucos invocando Lúcifer para destruírem o totalitarismo do filho Jesus Cristo, desertos equiláteros deslizando pelas gengivas pútridas, longos cabelos negros tornando-se uma só química capilar, nervos de aço, um tumor no cu, cancro mole, pai comendo vinte e duas garçonetes da cidade natal que não lembro mais o nome, a menina que disse que me esperava, ela nos espera, um redemoinho de poetas, um dinossauro em decomposição, sombras me perseguindo, a pobreza em forma concreta: é um mar sem água, e finalmente vi, vimos, minha, nossa morte; no rosto dele, em meu rosto, poeta, coagulam tripa e picos na veia, eu sou aquilo que todos conhecem e temem, admiram e odeiam, dentro das galáxias reproduzem meu nome, na minha boca eu gargarejo escritores e cuspo gênios, eu sou os pingos da chuva que deslizam pelo corpo humano, a projeção do passado, a metafísica do cão, a máquina sem capital, a luz branca do inferno, o deslizar de todas as fezes do mundo: você. ¿O que você fez? Perguntei. Ele tirou a campânula do meu peito, uma fumaça subiu, ele disse: você está pronto. ¿Pronto? Sim, você está pronto para escrever a biografia de Manuel di Paula, poeta. Sentia uma vertigem sem fim, tombava dentro da minha própria constituição humana: perdido. Amanhã começamos. Beatriz o levará até seu quarto. Fui para o meu quarto em ziguezague. Beatriz sorriu, escreveu em um papel buenas nochese saiu. Dormi. Dia seguinte, respirei e fui conhecer essa cidade que não era uma cidade, era uma hecatombe de mim mesmo. De nós. Não havia mais retorno.
TRECHO 2
¿Sabe o que ela disse para mim antes de partir para o Rio de Janeiro? Estávamos no aeroporto, sozinhos, de mãos dadas. Minutos depois eu conheceria este puto do Manuel di Paula, mas neste momento, lhe juro, eu sabia que suas palavras eram verdadeiras, sabia. Yuri, ela disse e sua voz era firme, ¿você parou pra pensar em sua fraqueza? Eu parei para pensar na minha. Não importa, mas sou instável, oscilante, sei que você odeia isso, ¿mas sabe por que você odeia? Porque você tem medo do futuro. Você calcula cada passo, pois tem medo de cair, você teme as feridas e para isso criou uma carranca de certezas; você clama por aí que é cheio de cortes e que são elas que fazem você ser o escritor celebridade underground que é; falácia. O escritor em você nasceu do medo. Você teme tanto que escreve, difere sombras no papel, reproduz um grito seco que nunca poderia ter saído de ti, mas transborda da caneta; ¿sabe por que te amo? Porque você é um homem cheio de medos e são eles que fazem de você tão cheio de paixão e vontade; pois um homem com medo é um homem que não perde tempo, é alguém que precisa planejar tudo antes que seja tarde, é intenso por vida; você vive como se sempre fosse tarde, estou atrasado é seu dizer favorito, mesmo que não esteja; a pulsação no seu peito passa para o meu e aqui estamos; minha oscilação e dúvida nada mais são do que uma defesa contra sua loucura. Sem meus cuidados, nós estaríamos mortos, Yuri. Minha tensão, pilha, voz grave, nervosismo, ansiedade, não chegam perto do que passa no seu corpo, no interior de ti; a curvatura do seu demônio-bicho toma o aeroporto, toma João Pessoa, toma é tudo, é tão forte que um dia vai ganhar vida, vai comer gente ao redor, universo, galáxia, mastigar o próprio Deus e Diabo; eu conheço esse bicho, Yuri, nunca o vi, mas conheço. Eu não tenho medo dele, posso senti-lo com sua boca de eco, posso escutá-lo e não tema, pois estamos juntos, é sua loucura que me incentiva a ser forte e é minha ansiedade que o incentiva a ser um protetor e é seu medo que me incentiva a ser dura e é minha paralisação que o torna ativo; eu vejo você, Yuri. Eu poderia ter voltado de diversas maneiras para a Paraíba, amorosa, romanticazinha, mimada, mas não temos tempo para isso, algo maior do que nós está pairando no ar: o seu bicho, Yuri, é dele que tô falando. E é dele que você precisa cuidar. Agora saiba: eu quero você e estarei do seu lado; você pode ver meu bicho também, ¿não pode? Por isso que nunca seremos capazes de nos esquecermos... E você imaginou que eu voltaria como relâmpago, daqueles kamikazes que se imortalizam no céu na forma de cicatriz. Não. Eu retornei tormenta, daquelas que puxam tudo para o ralo, inundando qualquer rastro de rua.
TRECHO 3
¿E é amor? Aquela arma apontada no peito. ¿E é dor? Interrompo a traveco e em meio a gritos enlouquecidos, eu digo: nunca rime amor com dor, caralho. Já disse, ¿não disse? Disse menino, oxe, fique calmo. É difícil ter inspiração, a gente não somo artista não. ¿Calmo? ¿Vocês pensam com o intestino? ¿E a novinha? ¿Não veio hoje? As duas travecos ficam caladas. Nós três estávamos em uma das casinhas barrocas que ficam na frente da rodoviária velha. Locais que são tomados de conta por velhinhas rugosas que cobram dez reais a hora em um quarto. Cafetinas antigas, daquelas que pariam menino como se cagassem. O quarto fedia a estragado; cama de casal no chão e uma mesa de centro. Papéis e jornais enfeitavam o espaço; nós sentávamos na cama e escrevíamos com as canetas que eu trazia de casa. Elas arregalaram os olhos e começaram a me escutar. Poesia, queridas, fiquei de pé, é se perder em território linguístico. Já diria o infeliz Octavio Paz, “somos filhos do romantismo alemão”, filhos dessa ideia da inspiração, da luz no poeta, o abençoado das palavras, ora não, não existe essa abominação. Antes os verdadeiros pioneiros do século XIX, o simbolismo, a decadência, somos nós; Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, antes este último nome, o primeiro dos malditos e modernos. Aqui para vocês, uma cópia de Flores do Mal... Leiam e, na próxima classe, digam o que acharam. Digam da maneira de vocês, mas digam. Já diria Baudelaire, “ser sempre poeta, incluso na prosa”, atrevo a dizer, agora citando Yuri Quirino - eu próprio, caso não saibam - ser sempre poeta incluso na vida. E vocês, assim como eu, são poetas na vida. A ruptura é um retorno às origens e o dia-a-dia de vocês é pura ruptura. Vocês têm o que, mas não tem o como. Mas ter o que é mais importante do que o como. O que há de estudantes de literatura preenchidos pelo como não há como contabilizar, são bilhões, trilhões, e nenhum deles tem o que, o que, o que, ¿o que vou contar? Nada. Baudelaire vivia atrás do que, bebendo putas e comendo vinhos. Rimbaud abandonou tudo, ainda ninfeto, para virar traficante na África. ¿E Artaud? ¿Que viveu sua própria obra transgressiva, respirando utopia e vomitando manifestos dilacerados e falidos? Eles tinham vida, amores, cheios de que, atravessados pelo como, resultando a mistura em dinamite lapidada. ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Matar amores, gente, cotidiano, trabalho, algo deve tombar. Dissecar a linguagem e jogá-la em cima do cadáver, só assim a poesia pura renascerá. Repitam comigo: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? As duas ficam sem jeito. Começo a pular e grito: repitam. Elas repetem: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Você, eu aponto para a travesti de peruca loira, escreva uma poesia agora, sem pensar em métrica ou rima, assassine o soneto: escreva algo envolvendo morte, isso mesmo, quero algo com efeito poético e que carregue finitude. Ela pisca os olhos freneticamente, empolgada, pega a caneta, pensa por alguns segundos e começa a escrever.
TRECHO 4
A depressão vinha. Luciana não foi exclusividade, com Malena também teve distância no relacionamento. Desde pequeno, em Minas Gerais, após mudanças e mais mudanças de cidades, eu lutei contra a dor do adeus. Sinto-me feito aqueles soldados traumatizados do Vietnã, ao invés de crises sobre cadáveres, tenho crises de amor. Não há como produzir dessa maneira, sabendo que a mulher que você tanto quer está em outro lugar. Nunca consegui concretizar um relacionamento normal, sempre teve barreiras em forma de bueiros, longos e negros, tão afastados das minhas mãos que nem conseguiria medir quilometragem. Fecho o notebook e não respondo o recado de Luciana. Preso em Campina Grande, sem trabalho, sem escrever, sem nada. Meu pai é um bom homem, vem até minha casa e diz que pagará o aluguel, mas que não rola de ser assim para sempre. Sei que você é poeta, filho, ele diz, sei que você ganhou prêmios, mas porra, vai trabalhar, cacete. E eu abaixo a cabeça. Observo a varanda, três andares, no máximo conseguiria ficar aleijado. Tentar se matar e fracassar é uma das coisas mais patéticas do universo, a outra são as coisas que dizemos quando estamos amando. Ou seja, eu estava próximo de ser o maior patético do universo. Crise de gente branca é deplorável. Decido dar uma volta pelo meu bairro, Catolé, e vejo o quanto cresceu. Agora tem prédios onde havia barro, tudo desenvolve, cresce dentro do ecossistema das moradias humanas, prolifera feito barata e não existe remédio que as extermine. Agora é obra diariamente, gritos de pedreiro, assovios, movimento, tudo indo para frente. Agora é imobiliária, martelo, trator, pastilhas, argamassa, base, mão, capacete, madeira, capital, investimento, e só sei que tudo mudou. As coisas evoluem, os corpos não. Movimento é vida.
TRECHO 5
O idoso disse que quando o pai foi encontrado morto, a cidade passou por um momento de horror. A filha do prefeito estava grávida e, quando foi parir, teve uma criança sem cabeça e braço. O bebê nasceu vivo, chorava, ria, vivia: ninguém sabia como, mas era possível escutar seu choro reverberando por toda a cidade; os médicos tentaram encontrar os membros dentro da vagina da mulher, mas não havia nada, literalmente nada; o bebê sem cabeça e braço chorava sem parar, assombrando a todos da cidade. Até que o marido da mulher matou o filho e foi preso. Cinco dias depois, o marido foi encontrado em sua cela transformado em um bode vermelho: os policiais o mataram e jogaram a carcaça do animal no rio; dois dias depois, o rio estava vermelho; as plantações deixaram de crescer; os alimentos apodreceram; chovia pregos diariamente; a maioria da população se mudou para a capital, e os que ficaram tiveram que passar por uma temporada terrível e escassa de comida, pois tudo apodrecia. Os moradores das cabanas enlouqueceram e muitos se mataram e outros imploravam ajuda a Deus. Todos os bebês nascidos neste período vinham com alguma deficiência, a maioria nascia com demência ou com alguma parte do corpo faltando. Bebês decapitados e insanos foram se infestando pela cidade de Tigre; maridos bodes, mulheres perdendo os dentes e se tornando ninfomaníacas, bandidos se transformando em ratos, chuvas ácidas toda quinta-feira e eventuais terremotos e trovões de sangue; a maldição cessou quando a mansão caiu no Delta do Rio Paraná; o idoso não sabe a data em que isso aconteceu, perguntei o ano ao menos, mas ele virou as costas e pediu para eu esquecer essas coisas: a família di Paula viveu em todos os séculos, dias, anos, não tem um dia para isso, só há esquecimento e é o que se deve fazer, ele disse em castelhano e fechou a porta envelhecida da sua casa. Manuel di Paula carrega séculos de trevas em suas costas, uma maldição familiar, uma herança que o aterroriza até hoje. E também aterroriza a todos nós que aqui resistimos e escrevemos o que restou do todo.

O escritor deve deixar o pobre do narrador respirar de vez em quando. É preciso deixá-lo esticar as pernas, tomar um gole d’água, ir à cozinha beliscar um pedaço de queijo

Reeleito para mais um mandato à frente de Hidrolândia, o novo presidente da AGM diz que é preciso haver forte mobilização em Brasília por parte dos gestores municipais para conseguir mudar o quadro desfavorável

Buscando reagir à “perda de qualidade” na poesia brasileira, observável na passagem da geração de 1930 para a geração de 1945, o Concretismo revelou-se um movimento catastrófico

Com tradução de Irapuan Costa Junior, publicada pela Cânone Editorial em 2016, o público brasileiro tem agora acesso a uma das reflexões mais importantes sobre a linguagem, elaborada pelo filósofo Herbert Spencer

Em 19 de janeiro de 2017, comemora-se cem anos do nascimento de Carson McCullers , a escritora estadunidense que retratou a solidão humana com tragicidade, compaixão e senso de humor

Não é de espantar que o movimento Holliness e o surgimento de seitas pentecostais, bem como seu correlato católico, a Renovação Carismática, promovam espetaculares sessões de cura e libertação e forneçam os modelos culturais seja do entusiasmo divino, seja do furor diabólico
[caption id="attachment_87361" align="alignleft" width="620"] Detalhe do quadro "Sabá das Bruxas" (1746), de Francisco Goya[/caption]
Philippe Sartin
Especial para o Jornal Opção
Tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do lago, e se afogou. (Lucas, 8: 33)
1.
A possessão pelo demônio no mundo Ocidental (sobretudo nos meios católicos), tal como hoje a conhecemos, é uma formação cultural típica dos séculos XVI e XVII – a época da “caça às bruxas” –, período no qual o número de casos reportados (seja de indivíduos atormentados, seja de possessões coletivas) foi inaudito. Mais que um fenômeno quantitativo, todavia, as feições que adquiriu em meio a crises confessionais, acusações de bruxaria, neuroses sexuais em conventos e psicopatologias reais tornaram-no o símbolo de um mundo controvertido: a carne convulsiva das endemoninhadas (na expressão de Michel Foucault), desdenhada pelos iluministas como tola superstição e desencantada, já no século XIX, pelo racionalismo psiquiátrico (e psicanalítico), teima em oferecer-se aos olhos da modernidade no escuro dos porões de igreja, ou das salas de cinema. O mundo das reformas e revoluções – que, afinal, é o nosso mundo – não pode ainda prescindir deste fenômeno misterioso, relutante e incompreendido, que insistimos, tolamente, em chamar de “medieval”.
[caption id="attachment_87368" align="alignleft" width="300"]
"Jesus exorciza geraseno" | Iluminura medieval[/caption]
Presentes em diversas culturas espalhadas pelo mundo todo, e ao longo da História, os fenômenos de possessão enraizaram-se na cristandade desde os seus primórdios: os Evangelhos contêm descrições memoráveis dos embates, geralmente fulminantes, entre Jesus e os espíritos malignos. Talvez o mais significativo seja o dos demônios de Gerasa: possuído por uma legião e apartado da vida em sociedade, um homem dilapidava-se aos gritos entre as sepulturas, até que Cristo – num gesto apocalíptico, anunciando a chegada do Reino – libertou-o de seus tormentos, e a miríade demoníaca tomou posse de uma vara de porcos, lançando-a no mar. Muito embora tais narrativas forneçam os contornos do fenômeno, é preciso notar que a sua violência e negatividade são características peculiares de uma interpretação cristã de mundo, calcada no conceito de Diabo e que entende a tomada do corpo e o eclipse da consciência como uma forma de desordem. Em muitas culturas, todavia, outras formas de possessão (que nada tem de demoníacas) exercem importantes papéis culturais, sendo encorajadas e cultuadas.
Mas fiquemos com o Ocidente, que é o que nos interessa. Durante o período medieval os relatos desenvolvem-se lentamente. Presentes nalgumas crônicas e, sobretudo, nas vidas dos santos, a possessão e o exorcismo cumpriam uma função pouco mais que retórica: eram símbolos da luta travada entre o cristianismo e as superstições, a partir da qual a magia era substituída pelas devoções sacramentais e os feiticeiros pelos sacerdotes (ou pelos santos). Foi apenas no “outono da Idade Média” (na expressão do grande historiador Johan Huizinga), quando uma espiritualidade mística extrapolou os muros conventuais e atingiu o coração dos leigos, e quando, igualmente, iniciou-se o terrível capítulo da caça às bruxas, que as possessões demoníacas adquiriram maior notoriedade. Este novo ambiente forneceria os elementos para o seu enredo típico: o indivíduo – geralmente mulher – que por meio de seus próprios pecados (geralmente sexuais) ou por um ataque de terceiros (sob a forma do malefício) percebe-se tolhido em seus pensamentos e ações por uma presença cega e obscura; os sacerdotes que modulam o seu sofrimento em termos religiosos, tornando-o operativo enquanto possessão, pronta para se dissolver nos extenuantes exorcismos; por fim, após disputas e controvérsias, propaganda (do clero) e edificação (dos ouvintes), a crise que amaina, a possuída que se vê livre e reconciliada com o grêmio dos cristãos.
Segundo historiadores como Brian Levack (The devil within. Possession and exorcism in Christian West, 2013, Yale University Press, 346 pp.) foi na Época Moderna, quando católicos e protestantes se anatematizavam, fogueiras ardiam em praça pública e, por outro lado, a ciência de Galileu e Newton dava seus importantes passos, que os sintomas mais comuns da possessão se fixaram: seja os fisiológicos (convulsões, dores, rigidez dos membros, ou flexibilidade muscular e contorsões, força sobre-humana, levitação, inchaço em algumas partes do corpo, vômitos, perda de funções corporais, perda de apetite), seja os comportamentais (falar línguas estranhas, usar de vozes incomuns, transe, clarevidência, blasfêmia, aversão a objetos sagrados e uma conduta imoral). Foi igualmente neste período que o rito do exorcismo adquiriu os contornos com que hoje o identificamos: bençãos, ladainhas, deprecações e conjurações. Com efeito, o primeiro ritual oficial da Igreja surgiu apenas em 1614.
Com o passar dos anos, todavia, o fenômeno foi pouco a pouco perdendo a credibilidade: cenários extravagantes como o da possessão coletiva das freiras ursulinas em Loudun, a descoberta de fraudes, os avanços do pensamento científico e, por fim, as realizações da medicina mergulharam as possessões, já no século XIX, numa aura de desencanto e decadência, até transformá-las num objeto de curiosidade, espécie de símbolo do fanatismo do passado. Estudos como os de Charcot, Janet e Freud revelaram mecanismos psíquicos desencadeantes de fenômenos semelhantes à possessão, definindo-a ora como neurose, ora como histeria. Foi no campo das artes, já no século XX, que a possessão demoníaca recobrou suas forças e tornou-se novamente relevante para a cultura ocidental: após sucessos literárias como os de Georges Bernanos (Sous le soleil de Satan, 1926) e Aldous Huxley (The devils of Loudun, 1952), seria a vez do cinema trazer o diabo à tona.
2.
O cinema da segunda metade do século XX foi pródigo em realizações sobre o tema da possessão. Gostaria de destacar as principais: Matka Joanna od Aniołów, de Jerzy Kawalerowicz (1961) vencedor do Prêmio Especial do Júri, em Cannes, e baseado na famosa possessão de Loudun; The Devils, de Ken Russel (1971), sobre o mesmo evento, com destaque para as atuações de Oliver Reed e Vanessa Redgrave; The Exorcist, de William Friedkin (1973), que recebeu nada menos que dez indicações ao Oscar (vencendo como Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Mixagem de Som) e sete ao Globo de Ouro (vencendo em quatro categorias); Sous le soleil de Satan, de Maurice Pialat (1987), vencedor da Palma de Ouro, e com seis nomeações ao César.
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"O exorcista" ("The Exorcist"), 1973. Direção: William Friedkin[/caption]
A partir dos anos 2000, uma explosão de películas caça-níqueis tomou conta das salas de cinema, desde filmes relacionados a O exorcista (Exorcist: The Begining, de Renny Harlin, em 2004, e Dominion: Prequel to the Exorcist, de Paul Schraber, em 2005), buscando redimir as péssimas sequências de décadas anteriores (Exorcist II: The Heretic, de John Boorman, em 1977 e The Exorcist III, dirigido pelo proprio W. P. Blatty, em 1990) – e falhando miseravelmente, diga-se de passagem – até produções puramente formulaicas, como The Possession, de Ole Bornedal (2012), The devil inside, de William Brent Bell (2012) e o sofrível The Vatican Tapes, de Mark Neveldine (2015). Destacam-se filmes regulares como The Last Exorcism, de Daniel Stamm (2010) (com um final, todavia, decepcionante) e The rite, de Mikael Håfström (2011) que, se não trazem nada de novo, são um entretenimento honesto. As produções mais relevantes, todavia – pela abordagem, e boas atuações – são The Exorcism of Emily Rose, de Scott Derrickson (2005), Requiem, de Hans-Christian Schmid (2006), que deu a Sandra Hüller um Urso de Prata – ambos sobre o caso Kinglenberg (1976) – e, por fim, După dealuri (2012), que em Cannes rendeu a Cristian Mungiu o prêmio de Melhor Roteiro e a Cristina Flutur e Cosmina Stratan o de Melhor Atriz.
Paralelo ao avanço “demonológico” no cinema, os casos de possessão aumentaram significativamente na segunda metade do século XX. Hoje são milhares os exorcismos realizados todos os anos em diversas dioceses mundo afora – seja nos países católicos da Europa e da América Latina, seja nos Estados Unidos – onde a busca por consolo espiritual – ante males geralmente bem mundanos – convive com um renovado interesse nos aspectos extraordinários da vida religiosa. Não é de espantar que o movimento Holliness e o surgimento de seitas pentecostais, bem como seu correlato católico, a Renovação Carismática, promovam espetaculares sessões de cura e libertação e forneçam os modelos culturais seja do entusiasmo divino – visível nas explosões teatrais da glossolalia – seja do furor diabólico. Soma-se a tais fenômenos a crescente divulgação da pastoral exorcística por figuras icônicas como o eufórico passionista padre Gabriele Amorth, responsável pelo revigoramento do ritual no coração de Roma, fazendo-se presente com inúmeras publicações, aparições televisivas e um famoso programa de rádio.
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A jovem estudante alemã, Anneliese Michel, morta após sessões de exorcismo, em 1976[/caption]
O contemporâneo interesse pela demonologia, pela possessão e pelos exorcismos, oferece a ocasião de um raciocínio no qual o historiador, acostumado à navalha de Occam, frequentemente se compraz: seria a publicidade do fenômeno a responsável pelo incremento nos casos de possessão? Me lembro de ter mencionado, não há muito, um certo “caso Kinglenberg”: trata-se da dolorosa possessão de uma jovem estudante alemã, Anneliese Michel, e das catastróficas sessões de exorcismo que, em 1976, culminaram na sua morte. O episódio suscitou animosas reações da opinião pública e de setores liberais da Igreja (não havia muito que uma teologia avessa ao tradicional conceito do Diabo se afirmara entre os teólogos de língua alemã). Pensou-se que uma crença equivocada nos poderes diabólicos – como a da própria Anneliese e de sua família, bem como dos exorcistas envolvidos – desse azo a situações descontroladas com consequências muitas vezes fatais.
Por trás da possessão e de suas críticas palpitava o estrondoso sucesso de Friedkin. Teria a narrativa de Reagan e Pazuzu extrapolado o nível do entretenimento e suscitado possessões verdadeiras, no mundo real? Ou, ao contrário, seria o retorno destas práticas a ocasião de que se beneficiara o filme, para popularizar-se como nenhuma película de terror até então? É certo que, de modo diverso do que as cenas isoladas – hoje mesmo ridículas – dos malabarismos da garota podem levar a crer, o mérito de O exorcista foi atingir, ao meu ver, um reservatório íntimo de emoções e crenças que o visual gore e os jumpscares dos filmes atuais não conseguem senão arranhar. Talvez, como na Época Moderna, quando o paradigma da possessão esteve em pleno funcionamento, a materialidade e a paranóia do terror de Friedkin tenham posto o público ocidental em contato com aspectos da própria cultura que jaziam candidamente adormecidos. O filme toca nos caracteres centrais dos sintomas de possessão: em seu terror crescente, claustrofóbico e angustiante, a eficaz intensidade da religião transparece como uma possibilidade real de autocompreensão e transformação. Os ateus dificilmente são possuídos.
3.
Estabelecer uma relação de causalidade entre o filme de 1973 e os sintomas de ataque diabólico, hoje em dia corriqueiros no Ocidente cristão, parece-me um exercício de futilidade. Uma simples correlação, todavia, é muito mais que plausível, embora coloque questões de difícil resolução. Permito-me uma pequena digressão à grande obra de Carlo Ginzburg, Storia Notturna, de 1989 (História noturna, tradução de Nilson Louzada, Cia. De Bolso, 2012, 479 pp.). Decifrar o sabá – a misteriosa reunião das bruxas com o Demônio, um mito que gerou pânicos persecutórios na Época Moderna – significou uma série de escolhas de caráter teórico e metodológico: era preciso separar, nos relatos compilados pelos inquisidores, os lugares comuns repetidos pela pressão dos interrogatórios (muitas vezes sob tortura) das informações fornecidas pelas supostas bruxas que contrastavam com os saberes demonológicos. Numa palavra, tratava-se de rastrear as origens dos diversos elementos narrativos, numa pesquisa guiada por pistas aparentemente irrelevantes e comparações em grande escala, que consagrou justamente o já célebre historiador italiano.
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Entre as complexas conclusões de Ginzburg, uma é preciso reter para o que nos interessa: a viagem noturna, o contato com o mundo dos mortos – elementos folclóricos deslindados por sua análise do estereótipo da bruxaria – não implica tão somente a fatídica pergunta “quem vem primeiro, o relato ou o fato?”. Ela ilumina a raiz da própria idéia de narrativa: ter estado lá e retornar para dar notícia. É, por assim dizer, uma espécie de pré-condição. Todavia, a narrativa não se cria ex nihilo, mas resulta de um aprendizado, donde a importância do relato.
Ora, podemos transpor suas indagações para o universo, igualmente misterioso, das possessões. A pergunta a ser feita, a partir destes problemas é: o que possibilita a narrativa silenciosa que um indivíduo no século XXI, sentindo-se possuído, recita a si mesmo, no âmago de sua intimidade? Não penso que seja possível ignorar o papel desempenhado pelas narrativas cinematográficas nestas questões. Penso que seja o meio mais eficaz de difusão de tais modelos – com maior alcance, inclusive, que as obras literárias que lhes deram origem. Donde uma segunda pergunta: o que torna estes filmes tão bem aceitos entre uma larga parcela da população? Penso que podemos aprender muito a partir destas duas questões.
Philippe Sartin é doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP)

O dândi vê-se acorrentado a uma sociedade pútrida que o aparta do Ideal. Não mais versando o sublime, deve-se voltar ao baixo, ao cotidiano, onde a vida, como diria João Cabral, fala com palavras agudas
[caption id="attachment_87215" align="alignnone" width="620"] "I Shot the Albatross". Detalhe de uma das ilustração de Gustav Doré para o livro "The Rime of the Ancient Mariner", de Samuel Taylor Coleridge[/caption]
Pedro Mohallem
Especial para o Jornal Opção
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
(“L’Albatros”, Charles Baudelaire )
Quando falamos da poética de Charles Baudelaire, logo nos vem à mente um apanhado de características marcantes: o requinte formal com ares de ruína, o simbolismo carregado de liturgia e revolta, o olhar de camarote à miséria humana e a coexistência do mármore e da carniça. Pode-se dizer que esse conjunto de elementos contraditórios compõe seu principal motivo: a expressão da modernidade, contraditória por excelência.
Mas o que se entende por modernidade e moderno no contexto de Baudelaire? Decerto todas as mudanças que as unidades social, econômica e política enfrentavam, com a decadência da monarquia e ascensão da burguesia e da classe operária, com o progresso industrial, que transformava as pequenas vilas em núcleos de calor e burburinho, e com um nova compreensão de sociedade: um coletivo de homens de morais díspares, guiados por propósitos individuais. Aos olhos daqueles que primavam pelo Belo e pelo Sublime, a modernidade era uma ameaça à pureza moral do homem e de suas ideias. Dessa aversão ao progresso, hastearam-se as bandeiras de escolas literárias como o Romantismo, que buscara a fuga sobretudo no exótico e no onírico, e o Parnasianismo, que propunha uma regressão ao passado e à harmonia grega. Baudelaire hasteara sua bandeira justamente contra esses ideais.
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Charles Baudelaire (1821-1867)[/caption]
Les Fleurs du Mal, seu maior legado, representa um marco na literatura, na poesia e na compreensão do homem moderno; não à toa, Otto Maria Carpeaux chama o poeta de “fundador da poesia lírica moderna”. “L’Albatros”, dentre os inaugurais do livro, é um poema emblemático tanto para a obra do francês quanto para toda uma geração decadentista que se levantava no ocidente contra a mesmice e a monotonia que se tornaram o Romantismo e o Parnasianismo (excetuando-se, claro, os grandes autores dessas escolas, que, a despeito das divergências ideológicas, permaneceriam exemplares ao gosto moderno). Escrito em alexandrinos franceses, seus quatro quartetos descrevem o sadismo de uma tripulação que captura albatrozes no alto-mar, torturando-os e rindo de seu desajeito; ao fim, tem-se a comparação que sela as imagens do poema: o poeta é como o albatroz que, exilado no chão, não pode andar devido à inconveniência das asas gigantescas.
Bem mais que um símbolo, esse poema é uma alegoria. O albatroz exilado no solo sangra a cada passo desferido contra o chão de pedra em meio ao caos da multidão latente – e assim é o poeta moderno que se afoga no escarcéu das cidades: perdida a capacidade de voar, perde também seu posto como príncipe das alturas. Semelhante argumento em símiles bem parecidos é apresentado no poema anterior, “Bênção”, no qual acerca do poeta lemos, pela tradução de Ivan Junqueira (As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 131), que:
Às nuvens ele fala, aos ventos desafia
E a via-sacra entre canções percorre em festa;
O Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.
Os que ele quer amar o observam com receio,
Ou então, por desprezo à sua estranha paz,
Buscam quem saiba acometê-lo em pleno seio,
E empenham-se em sangrar a fera que ele traz.
Além de abordar alguns dos principais motivos dAs Flores do Mal, i.e., o Exílio, a Queda, a Multidão, o Spleen e o Sublime, “L’Albatros” prenuncia a nova identidade do Poeta ante a modernização do final do século: o dândi acorrentado a uma sociedade pútrida que o aparta do Ideal. Não mais versando o sublime, deve-se voltar ao baixo, ao cotidiano, onde a vida, como diria João Cabral, fala com palavras agudas.
Há que se perceber o avanço dessas ideias: como dito anteriormente, o que reinava no ocidente então era a ideologia emancipatória de românticos e parnasianos. Aqueles, fugindo ao progresso, voltavam-se ao exótico e ao esotérico; estes, inspirados pelo passado remoto da Grécia e pelos ícones artificiais que a representavam, promoviam o autoexílio na Beleza e a arte com o fim em si própria, sem interesse no engajamento social. De um, Baudelaire herdou o catolicismo e o satanismo; de outro, a mitologia e a perfeição formal. No entanto, se nele reencontramos a questão do Exílio, esta já é tratada de maneira completamente diversa: o poeta que se trancava em seu gabinete (a famosa torre de mármore), abrindo seus braços para o Etéreo e os ouvidos para a voz de Deus, é agora um transeunte privado desse posto de xamã. Sobre o tema do exílio em “L’Albatros”, diz Ivan Junqueira (Baudelaire, Eliot, Dylan Thomas: três visões da modernidade. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 71):
"[...] encontra, ao menos para nós, sua mais alta expressão poética na insólita imagem desse pássaro privado do espaço, dessa ave que se arrasta, “ridícula e sublime”, entre as vicissitudes de um mundo que não é o seu. Poder-se-ia conceber imagem mais tangível e tramática da Queda, da expulsão do Paraíso, do que a desse majestoso e todavia impotente albatroz lançado às tábuas de um convés?"
Desde o pecado original, o homem vive alheio aos desígnios divinos, e o poeta era o eleito dentre os homens para promover a correspondência entre o mundo visível e o mundo ideal; entretanto, não há mais consonância entre o que acontece no plano visível e no plano etéreo: o progresso e o ideal nunca se reencontrariam.
No Brasil, sabe-se que o Romantismo e o Parnasianismo (o segundo mais que o primeiro) por muito tempo ofuscaram o que viria a ser o Simbolismo de um Cruz e Souza, de um Alphonsus de Guimaraens e de um Pedro Kilkerry, o satanismo de um Teófilo Dias e de um Carvalho Júnior. O parnaso se instalou e sobreviveu por aqui mais que em qualquer outro lugar, de forma que tais poetas só seriam resgatados pelos modernistas e pós-modernistas. Esses autores, por muitas décadas marginalizados, foram os principais responsáveis pela chegada de Baudelaire à terra da santa cruz. Quanto a “L’Albatros”, ou “O Albatroz”, como o chamaríamos, tem-se uma contradição bastante curiosa: o poema-escudo de Olavo Bilac e emblema do Parnasianismo brasileiro, o soneto “Longe do estéril turbilhão” da rua seria publicado somente em 1919, mais de sessenta anos após Les Fleurs Du Mal perfurarem a Literatura com seus espinhos retorcidos.
Se custou para que o poeta decadente caísse ao gosto do público francês (sabe-se que, na época de sua publicação, fora duramente reprimido), ainda mais custou para que o príncipe da altura tombasse definitivamente ao turbilhão da rua, sobretudo em nossa pátria de vanguardas tardias. Entretanto, quase que paradoxalmente, temos para o português diversas traduções de “O Albatroz” – o poema, creio, mais traduzido de Baudelaire. Algumas datam antes mesmo do soneto de Bilac. Guilherme de Almeida (1944), Ivan Junqueira (Op.Cit.), Teófilo Dias (1878), Felix Pacheco(1932), Onestaldo de Pennafort (1931), Jamil Almansur Haddad (1958), entre outros, divulgaram por aqui a palavra do poeta-profeta francês. Pretendo ater-me às traduções aqui mencionadas e pôr um jugo analítico sobre algumas escolhas desses autores.
Algo já se conclui das primeiras leituras: dentre as selecionadas, a tradução de Guilherme de Almeida é uma das mais fluentes, ao passo que a tradução de Teófilo Dias apresenta os maiores arcaísmos; salvo por Felix Pacheco, todas traduzem des albatros, no plural, por um albatroz, no singular; algumas reprimem a liberdade transcriativa, outras lançam-lhe mão a bel prazer; todas, enfim, dão um sabor tropical ao oceano navegado.
Formalmente, todos os poetas mencionados mantiveram a correspondência métrica, traduzindo o alexandrino francês como alexandrino português, ambos com doze sílabas poéticas. Junqueira é o único que apresenta ocasionalmente versos sem a cesura na sexta sílaba do alexandrino clássico. Nenhum manteve o esquema rímico francês de oxítonas e paroxítonas alternadas, visto que se trata de um recurso idiomático que não caberia preservar em nossa língua. Comparando os resultados, percebemos muitas consonâncias, versos quase cristalizados e imutáveis por terem talvez atingido o ideal da tradução poética, como é o caso do último:
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
“Impedem-no de — andar — as asas de gigante!” (Teófilo Dias)
“As asas de gigante o impedem de marchar!” (Felix Pacheco)
“As asas de gigante impedem-no de andar.” (Ivan Junqueira, Guilherme de Almeida e Jamil Almansur Haddad)
“suas asas de gigante impedem-no de andar.” (Onestaldo de Pennafort)
O mesmo não se percebe em momentos mais narrativos, como o da primeira estrofe:
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
“O nauta, muita vez, por diversão, costuma
Apanhar o albatroz, águia dos mares largos,
Que segue desdenhoso a esteira de áurea espuma
Da nau que talha a onda em vórtices amargos.”
(Teófilo Dias)
“Muita vez, por brinquedo, os homens da equipagem
Deitam mão, no alto oceano, a albatrozes ousados,
que, num voo indolente, acompanhando a viagem,
seguem a nau que fende os abismos salgados.”
(Felix Pacheco)
“Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.”
(Ivan Junqueira)
Perceba-se que Teófilo Dias recorre a um descritivismo inexistente no original ao mencionar uma “esteira de áurea espuma” (trecho cuja sonoridade atinge alto nível poético: os ditongos e encontros consonantais chegam a sugerir o oscilante voo da ave e até mesmo a ideia do navio cortando a esteira marinha). A propósito, dos que tomamos para análise, ele é o único que não traduz les hommes d’équipage por “os homens da equipagem”. Cada um pinta a figura dos gouffres amers de um jeito diferente: “vórtices amargos”, “abismos salgados”, “glaucos patamares”. Este último substitui a amargura pelo tom esverdeado, dando outro sentido ao verso. Entretanto, com mares-patamares Ivan mantém o jogo de palavras entre mers-amers, em que a segunda palavra engloba a primeira. Pour s’amuser apresenta soluções muito interessantes, sendo “por prazer” (Guilherme de Almeida, Ivan Junqueira) a mais próxima semântica e sonoramente; ademais, nos deparamos com “por brinquedo” (Felix Pacheco), “por diversão” (Teófilo Dias), “em recreio” (Onestaldo de Pennafort), “por folgar” (Jamil Almansur Haddad).
É importante notar como o poema trabalha com contraposições imagéticas do começo ao fim: primeiro, os marinheiros no chão e o albatroz no céu; em seguida, as tábuas do convés (rude, forjado) e as asas brancas (suave, natural); após, a lembrança de uma ave bela e o encontro de uma ave arruinada; por fim, o sumo da queda e o sumo do exílio no nefelibata. Os tradutores logram trabalhar de maneira própria esses contrastes:
“E por sobre o convés, mal estendido apenas,
O imperador do azul, canhestro e envergonhado,
Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas,
Eis que deixa arrastar como remos ao lado”
(Jamil A. Haddad)
“Esse alado viajor, como é grotesco andando!
Ei-lo horrível e inerme, ele que antes pairava!
Um chega-lhe o cachimbo ao bico, e outro, coxeando,
arremeda no andar o pobre que voava!”
(Onestaldo de Pennafort)
“Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.”
(Guilherme de Almeida)
Alguns acréscimos e alterações visam somente a manutenção da métrica e da rima, como vemos em limbo-cachimbo, nimbo-cachimbo, costuma-espuma, ousados-salgados. Contudo, antes de criticá-las como afastamentos do poema original, devemos analisar se no conjunto final são alterações pífias, ou se realmente possuem significância, pois, como percebemos no “esteira de áurea espuma” de Teófilo dias, essa alteração representou um ganho sonoro para o poema. A meu ver, em todos esses casos, as alterações são válidas, pois não prejudicam a compreensão do original, e as traduções não se afastam formalmente do mesmo. No fim, são leituras condicionadas por pensamentos de épocas diversas. Temos, atualmente, projetos de tradução ainda mais ousados, como o de Mário Laranjeira, que traduziu As Flores do Mal com rimas toantes, e o de Álvaro Faleiros, que procura em seu projeto de tradução resgatar o prosaísmo baudelaireano em detrimento da perfeição dos alexandrinos e das rimas.
Entretanto, se a ideia é selecionar dentre as estudadas uma versão em que a proximidade ao conteúdo original se faz mais explícita, eu escolheria a de Guilherme de Almeida. Embora não atinja a todo momento os melhores resultados (perde-se, por exemplo, a caracterização dos abismos no quarto verso), ela apresenta uma unidade muito próxima do original, uma tentativa de recuperar ao máximo os recursos e vocábulos franceses sem transbordar de sentimentos próprios do tradutor.
Após esta breve análise que visava à exaltação do poema de Baudelaire e do ato tradutório executado por alguns de seus maiores seguidores, apresento minha tradução do poema, que não é nada mais que uma leitura pessoal de versos que tanto admiro, e para a qual busquei resultados diferentes dos apresentados aqui. Formalmente, mantive os versos alexandrinos com cesura na sexta sílaba e segui o mesmo esquema de rimas cruzadas do original. Como os demais, não logrei a transposição regular do esquema rímico francês. Só me ocorreu fazê-lo na última estrofe.
Concedi-me alguma liberdade na construção das sentenças, prezando sempre pela manutenção do sentido e das imagens; alguns termos, somente, foram acrescentados, suprimidos e alterados para fins métricos e sonoros, como é o caso sobretudo de “prince des nuées” tornado “nobre superno”, e “au milieu des huées” tornado “preso ao mundano inferno”. Essa última, eu creio que seja a transposição que mais se afasta do original, mas não acuso nela perda de sentido, tendo em mente a concepção de multidão na obra de Baudelaire como apontamos neste ensaio. Enfim, todas essas releituras foram pensadas tanto para o afastamento de minha tradução das demais quanto para não me tornar um fidus interpres da obra original, dando um pouco de mim ao poema na medida do inofensivo.
Tradução autoral
O ALBATROZ
No tédio, é bem comum que os marinheiros peguem
À força do alto-mar imensos albatrozes
Que, indolentes, a nau acompanhando, seguem
A deslizar por sobre os pélagos atrozes.
E basta que ao convés arremessados sejam
Para que os reis do azul, acanhados e mancos,
Deixem tombar consigo as vastas mãos que adejam
Qual se fossem um par de longos remos brancos.
Pobre alado viajor, como é canhestra e lassa
Sua figura outrora altiva e ora tão feia!
Um, tomando um cachimbo, irrita-o com a fumaça,
Outro, a zombar do enfermo órfão do céu, coxeia!
O Poeta é semelhante a esse nobre superno
Que, acima, ri do arqueiro e afronta os vendavais:
Exilado no chão, preso ao mundano inferno,
Vacila rastejando as asas colossais.
Traduções estudadas
Teófilo Dias (1854-1889)
O ALBATROZ
A Arthur de Oliveira
O nauta, muita vez, por diversão, costuma
Apanhar o albatroz, águia dos mares largos,
Que segue desdenhoso a esteira de áurea espuma
Da nau que talha a onda em vórtices amargos.
Mal se expõe do convés ás gargalhadas francas,
O herói, que aos céus vingava os páramos extremos,
Deixa piedosamente as grandes asas brancas
Colherem-se nos pés, como esquecidos remos.
Como a envergura audaz comicamente agita,
Sem o garbo, o primor, que altívolo ostentava!
Um, metendo-lhe ao bico um ferro em brasa, o irrita;
Outro — inválido — apupa o enfermo que voava!
O poeta é como o rei do etéreo azul profundo,
Que ama os tufões, e fita, em face, o sol radiante:
Da turba exposto ao rir no exílio deste mundo,
Impedem-no de — andar — as asas de gigante!
Felix Pacheco (1879-1935)
O ALBATROZ
Muita vez, por brinquedo, os homens da equipagem
Deitam mão, no alto oceano, a albatrozes ousados,
que, num voo indolente, acompanhando a viagem,
seguem a nau que fende os abismos salgados.
E, mal no tombadilho assim os vão pousando,
como esses reis do azul se aviltam logo, esquerdos,
As asas sem medida e brancas semelhando
Dous remos laterais que se arrestassem lerdos!
Tão belo, não faz muito, e, ora, que cousa ignava!
O nauta audaz dos céus, como parece à toa!
Qual com um cachimbo aceso o bico lhe irritava,
E outro zomba, a coxear, do enfermo que não voa.
A seta e o raio entanto olhara com denodo,
E o Poeta é em tudo igual a esse príncipe do ar:
Exilado na terra, em meio a vaia e o apodo,
As asas de gigante o impedem de marchar!
Guilherme de Almeida (1890-1969)
O ALBATROZ
Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.
Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.
Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!
O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
Onestaldo de Pennafort (1902-1987)
O ALBATROZ
Às vezes, em recreio, os homens da equipagem
pegam um albatroz, enorme ave marinha
que segue, companheiro indolente de viagem,
o navio que sobre o atro abismo caminha.
Mal no convés se vê, todo desconjuntado,
logo esse rei do azul, em passos desiguais,
como dois remos, põe-se a arrastar a seu lado,
desajeitadamente, as asas colossais.
Esse alado viajor, como é grotesco andando!
Ei-lo horrível e inerme, ele que antes pairava!
Um chega-lhe o cachimbo ao bico, e outro, coxeando,
arremeda no andar o pobre que voava!
O poeta é o albatroz que nas nuvens se espraia,
que ri dos vendavais e afronta as setas, no ar;
exilado no solo, em meio ao riso e à vaia,
suas asas de gigante impedem-no de andar.
Jamil Almansur Haddad (1914-1988)
O ALBATROZ
Às vezes, por folgar, os homens da equipagem
Pegam de um albatroz, enorme ave do mar,
Que segue — companheiro indolente de viagem —
O navio no abismo amargo a deslizar.
E por sobre o convés, mal estendido apenas,
O imperador do azul, canhestro e envergonhado,
Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas,
Eis que deixa arrastar como remos ao lado.
O alado viajor tomba como num limbo!
Hoje é cômico e feio, ontem tanto agradava!
Um ao seu bico leva o irritante cachimbo,
Outro imita a coxear o enfermo que voava!
O Poeta é semelhante ao príncipe do céu
Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;
Exilado na terra e em meio do escarcéu,
As asas de gigante impedem-no de andar.
Ivan Junqueira (1934-2014)
O ALBATROZ
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.
Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.
Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!
O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
Pedro Mohallem é graduado em Letras Português-Inglês pela Universidade de São Paulo (USP)