*Demóstenes Torres

Brasília, 2013. Adaptação real do escritor tcheco Franz Kafka.

Cena 1 – Advogada grávida, sob risco de perder o bebê, pede ao presidente do Conselho Nacional de Justiça, com quem tinha audiência, para seu processo ser chamado. Ele indefere, alegando falta de mandamento legal, apesar de o artigo 227 da Constituição determinar que deveria, sim, “com absoluta prioridade”, colocar a futura criança, à época feto no 6º mês de gestação, “a salvo de toda forma” de 5 absurdos ali presentes: “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Cena 2 – Um colega defensor, já na tribuna, abre mão de seu tempo e o repassa à gestante. O ministro nega a oportunidade. Foi um dia de fúria contra a mãe e sua cria. Das 8 da manhã às 5 da tarde e a mulher lá, sem comer, sem beber, mas também sem se curvar às decisões kafkianas. Sem se afastar de onde teria de cumprir a missão delegada por seu ofício. Só sai de lá depois da audiência. Na cena seguinte, minutos depois, já está num hospital onde ficaria internada por 1 quinzena.

Consequência do sofrimento, acelerou-se o parto. Nasceu na 29ª semana, bebê de 1 kg, cabia numa das mãos da mãe. No dia do filme de horror, meio mês antes, suas taxas de sobrevivência estavam em 75% a 85%, segundo o preemieHelp.com, citado pela Associação Brasileira de Pais, Familiares, Amigos e Cuidadores de Bebês Prematuros.

O prognóstico, segundo a entidade, é de até 25% dos nascidos prematuros terem paralisia cerebral, deficiência intelectual grave, cegueira, surdez ou um combo dessas deficiências. De 50 a 60% ficam com sequelas leves. Observem-se as consequências de uma grosseria.

Felizmente, nossas duas heroínas escaparam fortes e saudáveis, apesar dos mais de 2 meses que a recém-nascida permaneceu na UTI. A mãe, Daniela Rodrigues Teixeira, vai tomar posse no Superior Tribunal de Justiça, o STJ. A filha, Júlia Matos, virou até nome de lei. Justamente a lei, cuja inexistência havia sido usada como argumento em desfavor de sua mãe no CNJ.

A repercussão do episódio mobilizou militantes do direito de todo o país. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), com suas 27 seccionais, entrou na causa. Diversos outros parceiros, idem.

Quem a ajudou no Congresso teve êxito: Simone Tebet relatou a favor no Senado, virou candidata a presidente e é ministra do Planejamento. Na Câmara, Rogério Rosso apresentou o projeto, depois unido a um de Daniel Vilela –o 1º viria a ser governador do DF (como o então presidente da Ordem no DF, Ibaneis Rocha), o 2º é vice em Goiás.

A Lei Júlia Matos é um primor de simplicidade e modernidade. Como elaborei 2.000 relatórios a proposituras, participei de 189 que viraram leis e não percebi essa ausência? Em síntese, a lei 13.363 de 2016, dentre outras inovações, criou um artigo no Estatuto da OAB, o 7º-A, com, olha o óbvio que não víamos, os direitos da advogada.

É um documento inteiramente ótimo. Por exemplo, entrar em tribunais sem ser submetida a detectores de metais e raios X, assegurar vaga nas garagens dos fóruns, suspender prazos pós-parto ou adoção e, resolvendo o erro original, “preferência na ordem das sustentações orais e das audiências”.

Meu Deus, que machismo paleolítico acometia quem arriscava a saúde dos fetos passando aparelhos de tanta radiação… Não só mulheres e bebês foram beneficiados, igualmente os advogados que se tornam pais. Enfim, 1,5 milhão de inscritos na OAB somos gratos a Daniela Teixeira por tirar o Brasil da Idade da Pedra Lascada. Nada mais justo e apropriado do que ela compor o Tribunal da Cidadania.

Além dela, os novos integrantes do STJ serão Afrânio Vilela e Teodoro Silva Santos. Vive-se uma era iluminada nos tribunais superiores e no Supremo Tribunal Federal. São escolhidos integrantes de nível formidável e os demais se equiparam no conhecimento, na idoneidade e na independência. Então, não há derrotados.

Uns entram agora; outros, mais à frente. Afrânio Vilela esteve duas vezes nas listas. Daniela Teixeira havia liderado, em 2019, para compor o Tribunal Superior Eleitoral, com 10 dos 11 votos do STF. Importa é que doravante honrarão suas indicações num tribunal que é superior não só no nome.

A morte do incomparável Paulo de Tarso Sanseverino e as aposentadorias de Felix Fischer e Jorge Mussi são muito sentidas, dadas a honradez, a sabedoria e a expertise demonstradas. Uma rápida visão das trajetórias de seus substitutos Afrânio, Daniela e Teodoro indicam para a felicidade dos ex-ocupantes das cadeiras, pois se conserva o patamar.

Emociona a história de Teodoro, com quem me identifiquei logo de cara por sermos devotos de 2 padres, ele de seu conterrâneo Cícero Romão Batista e eu, do italiano Pio de Pietrelcina. Como o próprio ressalta, pobre, negro, nordestino, cresceu numa casinhola na região cearense do Cariri, junto com o pai, a mãe e os 18 irmãos.

Inteligente, insistente e esforçado nos estudos, enfileirou aprovação em concursos públicos e títulos de mestre e doutor. Foi sargento da Polícia Militar, delegado da Polícia Civil, promotor e procurador de Justiça até ser eleito pelo Ministério Público do Ceará para o Tribunal de Justiça do Estado.

Teodoro espalhou o sucesso advindo dos livros e, graças a ele, a família em peso se interessou por faculdade, a maioria de direito, em que dá aulas para muitos Silva, muitos Santos. Um dos irmãos, Raimundo Nonato, o alcançou na glória de ser desembargador.

Teodoro traz para a capital federal uma característica rara, a lealdade. É fiel à lei, à verdade, aos princípios e aos amigos. Torce pelo Ceará, que está na Segundona do Brasileirão e em 2023 não mais vai subir para a Série A. Gosta de andar à beira do Atlântico.

Brasília não tem praia, mas o ministro pode cuidar da forma e cativar novos amigos em suas caminhadas no Parque da Cidade e no lago Paranoá, em cujas margens há dezenas de estabelecimentos similares ao Caravelle e ao Montese, que frequentava na juventude. Tudo bem, não se compara aos ventos de Fortaleza, mas a brisa do Cerrado é inspiradora.

Como a dos companheiros de posse, é imensamente rica a biografia de Afrânio Vilela. Descende do deputado Lamounier Godofredo, que ajudou a fazer a 1ª Constituição da República, a de 1891. Porém, encarou maus bocados. Sua família padeceu durante décadas por 2 grandes erros judiciários. Um deles, de proporções planetárias. Nas mãos de um grande autor, nem precisaria ser de um Kafka, seria best-seller internacional. O ministro lembrou, em sua sabatina no Senado, que os Vilela enfrentaram uma acusação de assassinato, espécie de fake news do século passado:

“A família perdeu o patrimônio. Os maiores foram presos e condenados. Os menores de idade foram para o reformatório. E, 20 anos após o cumprimento das penas, o verdadeiro assassino confessou o delito. No STF, o ministro Nelson Hungria, ao julgar a revisão criminal, afirmou ter sido um caso emblemático”.

Afrânio Vilela fez a prova oral da magistratura mineira 5 dias depois da promulgação da Constituição de 1988. De juiz, foi a desembargador, filho de um tropeiro, personagem presente nos modões das autênticas duplas sertanejas. Tocava boi nesse Brasilzão, tornando estrada onde só havia a demanda, passando pelo leito das ferrovias, desbravando o velho oeste de Minas.

O novo componente do STJ lembra que o pai juntou algum dinheiro na lida com o gado e, em sociedade com um primo, construiu uma charqueada. Em bairros vizinhos aos de minha infância, em Goiânia, acompanhei os trabalhos de charque. Afianço: é um serviço duríssimo, exige demais, é exclusividade dos fortes da estirpe de José e Erotildes.

Como continua tradicional para o empreendedor brasileiro, toda essa dedicação foi “premiada” com mais um erro judiciário, contido em sentenças elaboradas por magistrados diferentes do que foram Fischer, Sanverino e Mussi e do que são Daniela, Teodoro e Afrânio. A empresa dos Vilela foi à falência. Centenas de colaboradores ficaram desempregados, incluídos os pais de Afrânio.

Daí em diante, Seu José passou a ser carcereiro até a aposentadoria na cadeia pública de Ibiá (MG). Dona Erotildes arrumou vaga de servente num colégio. Não houve um Nelson Hungria para ressuscitar o estabelecimento.

Afrânio herdou desafios e os superou. Aluno de ensino público da alfabetização à universidade, se quis aula particular teve de derramar suor: na pré-adolescência, capinava o jardim do Colégio São José em troca do curso de datilografia. Eis um resumo do trio que estreia no STJ. Por essa minibio se vê que os 3 haverão de reafirmá-lo como uma Corte realmente cidadã. P.S.: lembra do processo de Daniela Teixeira no CNJ? Pois é, ela venceu.

*Demóstenes Torres, 62 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.