A confiabilidade do processo eleitoral brasileiro
25 setembro 2022 às 00h18
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Itaney F. Campos
Um olhar retrospectivo à evolução do processo político-eleitoral brasileiro permite constatar que o sistema de votação praticado no Brasil ao longo das três primeiras décadas do regime republicano era bastante viciado e sujeito a incontáveis fraudes, contribuindo para o continuísmo do poder em mãos das velhas oligarquias dos setores agrícola e pecuário.
Pode-se dizer mesmo que o sistema de votação era ferramenta essencial para o domínio oligárquico. O coronelismo, como elemento da organização social, permitia a perpetuação das oligarquias no comando do governo, e tinha como uma das suas bases de apoio, o sistema de votação, pois as atas de apuração de votos eram costumeiramente alteradas, para refletir a vitória dos chefes políticos interioranos.
O chamado “voto de cabresto” era uma prática corriqueira, pois na economia rural a vontade da classe trabalhadora era subordinada aos interesses dos grandes proprietários rurais. Sobre o tema é muito instrutiva a leitura do clássico “Coronelismo, Enxada e Voto — O Município e o Regime Representativo no Brasil” (Companhia das Letras, 363 páginas), de autoria de Victor Nunes Leal (1914-1985), que foi ministro do Supremo Tribunal Federal e professor da Universidade de Brasília (UnB).
As distorções do sistema eleitoral eram de tal dimensão que a revolução de outubro de 1930, para promover a ruptura do regime oligárquico, teve de instituir um novo sistema de votação, criando, inclusive, um ramo especializado da Justiça, em 1932, para realizar e apurar as eleições no Brasil.
A Justiça Eleitoral não subsistiu, porém, por muito tempo, pois em 1937 o presidente Getúlio Vargas decretou o chamado Estado Novo (1937-1945), que descambou na ditadura, impondo uma constituição autoritária, que dispensava a manifestação da vontade popular na escolha dos governantes, passando estes a serem nomeados pelos chefes do Executivo.
A Constituição democrática de 1946 restaurou a Justiça eleitoral, em moldes a realizar-se eleições isentas e uma apuração séria e imparcial, livre das interferências políticas indevidas.
A Constituição de 1988, sob cuja égide vivemos, quis prestigiar também a Justiça eleitoral como organismo idôneo, exclusivo, autônomo e independente encarregado de organizar, presidir e apurar as eleições gerais no Brasil. E isso vem ocorrendo.
Pode-se afirmar, por mais estranho que pareça, que, no Brasil, o voto é impresso! Explico. É que, ao final da votação, cada urna, como se sabe, imprime seu particular resultado, o qual exprime a realidade daquela seção eleitoral.
Com sua estrutura formada pelo Tribunal Superior Eleitoral, Tribunais Regionais Eleitorais, nos Estados, e Juízos Eleitorais nas Zonas eleitorais, além das Juntas apuradoras indicadas pelos Juízos, no período eleitoral, e aprovadas pelos TREs, o processo das eleições vêm se desenvolvendo com rigor, seriedade e autonomia.
Nada obstante, o sistema de votação e apuração ainda deixava muito a desejar, em vista da complexidade e demora na sua realização e proclamação dos resultados, decorrente de métodos manuais, quase artesanais, num tempo em que a tecnologia já se tornava ferramenta essencial e de alta eficiência em vários setores dos serviços públicos do Estado brasileiro, sem contar sua dinâmica de alta produtividade na indústria nacional. A Justiça Eleitoral despertou para a necessidade de modernização tecnológica, introduzindo a partir daí os recursos eletrônicos de aparato e arquivos digitais no cadastramento de eleitores, o sistema de identificação por biometria e a urna eletrônica de votação e apuração dos votos, reduzindo em muito a interferência humana, responsável pela demora, pelas falhas e possibilidade de fraudes.
Ademais disso, a integração nacional possibilitada pela rede mundial de computadores deu ordenamento, controle e centralidade a esses sistemas, com grande transparência e governança eleitoral. Esses passos iniciais se deram há mais de vinte anos. O aperfeiçoamento foi contínuo, sem notícias de fraudes, interferências impróprias ou defeitos insanáveis de funcionamento. Adotou-se assim um sistema de votação e apuração que pode considerar-se como exemplar: seguro, transparente, rápido e auditável. Os vários pleitos realizados comprovam essa experiência bem-sucedida de eleições.
Segundo pesquisa realizada por organismo internacional, em que se ouviram mais de 36 mil pessoas em todo o mundo (1150 no Brasil), “…os brasileiros ficaram mais desconfiados das empresas de mídia e do governo. Na atual edição da Edelman Trust Barometer, a confiança no governo caiu 5 pontos percentuais, atingindo o patamar de 34%”.
Com relação às empresas de mídia, a pesquisa apontou que “a confiança nas empresas de mídia (que abrange imprensa, redes sociais, mecanismos de buscas e canais proprietários de empresas e marcas) recuou um ponto em relação à edição anterior da pesquisa, ficando em 47%. Tanto mídia quanto governo ficam situados no patamar de desconfiança do estudo”.
Eleições gerais isentas, seguras, fidedignas, em ambiente democrático e participativo, com total transparência quanto à sua lisura, é um compromisso solene da Justiça Eleitoral brasileira. Para essa instituição, posso dar o testemunho, a democracia representativa, como manifestação da soberania da Nação, é o valor que mais alto se alevanta. Por isso, é um bem social inegociável.
Tal realidade sociológica dificulta, em certa medida, os trabalhos das instituições públicas, notadamente daquelas que lidam diretamente com a sociedade por meio de interfaces bastante nítidas, v.g., as forças de segurança, que, no seu mister diário, interagem constantemente com os cidadãos.
A Justiça Eleitoral não escapa desse fenômeno. Encarregada de gerir o maior evento eleitoral do Ocidente, uma vez que o Brasil é a segunda maior democracia das Américas, na qual, de se dizer, o voto é obrigatório, pesa sobre ela o dever de em um único dia levar às urnas eletrônicas quase 160 milhões de eleitores, a quais incumbe o mister de lançar (nas quase 500 mil urnas eletrônicas espalhadas por 5.568 municípios) sua vontade.
Seria ingenuidade não cogitar que uma operação tão complexa e relevante do ponto de vista logístico e sociológico fosse passar ao largo, sem ataques à sua legitimidade, sobretudo num mundo digital em que as informações se propagam em velocidade e abrangência alucinantes.
G. K. Chesterton (1874-1936), ensaísta, romancista, jornalista, dramaturgo, crítico de arte, jornalista inglês, disse, em seus ensaios sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que “…não foi o mundo que piorou, as coberturas jornalísticas é que melhoraram muito”.
A frase refletia o agravamento da sensação de insegurança dos ingleses quanto aos rigores da guerra à medida em que o rádio, o telégrafo e os meios de transporte diminuíram as distâncias entre as trincheiras, encurtaram as fronteiras e “trouxeram o som e o cheiro da guerra para as salas de chá da sociedade inglesa”.
A frase de Chesterton continua a falar alto ainda hoje. A rápida evolução tecnológica dos meios de comunicação permitiu que um verdadeiro tsunami de informações arrebate o cidadão a cada manhã e durante todo o dia.
Uma miríade de dados, sobre quaisquer assuntos que se possam cogitar, estão a um simples “click” de todos, nos modernos aparelhos celulares.
Da noite para o dia, as antigas e respeitadas redações e editoriais dos jornais deixaram de nos “guiar” manhã a fora. Os editores migraram de suas mesas nos grandes centros de jornalismo falado e escrito para os aplicativos de mensageria eletrônica.
Tal fenômeno da modernidade na esfera das comunicações trouxe consigo diversos benefícios, mas também muitos riscos, dentre eles, o de sermos levados pelas fake news ou, simplesmente, pela desinformação, involuntária ou maliciosa.
Num mundo de sentimentos efervescentes onde todos podem livremente se expressar, não é raro que é surjam os excessos, impondo aos desavisados o risco do engano.
É justamente neste cenário de queda na confiabilidade das instituições públicas e incremento vertiginoso na proliferação de informações das mais diversas matizes que a Justiça Eleitoral se viu questionada e precisou se levantar para demonstrar que seu trabalho — que em 2022 completou 90 anos — é confiável.
Nessa perspectiva, esse discurso de crítica às urnas eletrônicas de votação, tachando-as de pouco fidedignas, e aduzindo que as cédulas de papel dariam mais confiabilidade ao processo não traz motivação sequer razoável. Esse argumento, desprovido de justificativa séria, prega o retrocesso e ignora que o sistema eletrônico é plenamente seguro, confiável e auditável.
Os controles de fabricação e qualidade, a checagem e exclusividade dos softwares instalados nas urnas, insuscetíveis de invasões e ataques, o documento da zeresima e dos boletins de urnas, expedidos nas seções eleitorais, no momento da eleição, além dos testes de integridade e da votação paralela evidenciam a transparência e confiabilidade da sistemática brasileira de votação e apuração das eleições. Todas essas fases são abertas à fiscalização pública. Por isso, pode-se assegurar: não há como fraudar um processo eletrônico de votação que conta com fiscalização tenaz, em todas as suas fases, por parte da sociedade organizada, e desde sua concepção até o resultado final.
Nesse ponto, pode-se afirmar, por mais estranho que pareça, que, no Brasil, o voto é impresso! Explico. É que, ao final da votação, cada urna, como se sabe, imprime seu particular resultado, o qual exprime a realidade daquela seção eleitoral.
A esse resultado impresso somam-se, nas chamadas totalizações, os resultados das mais quinhentas mil urnas, com seus exatos microresultados, para revelar, ao final, a vontade popular.
Questiono: como, no contexto da inteligência das ciências criminais e sua metodologia investigativa, poderia se cogitar possível fraudar um processo de votação eletrônica no qual um sem-número de atores interagem em todas as fases?
Seja no Tribunal Superior Eleitoral ou nos Tribunais Regionais Eleitorais, há toda uma miríade de técnicos, analistas, acadêmicos, peritos etc, atuando em conjunto para, sob os atentos olhares dos partidos políticos, do Ministério Público Federal e da Ordem dos Advogados do Brasil, da Polícia Federal, do Ministério da Defesa, das academias, das entidades fiscalizadoras, demonstrarem a lisura do processo eletrônico de votação.
Escapa à lógica a alegação de mácula a um processo que tem se mostrado seguro no longo dos últimos 26 anos, sem qualquer dúvida jurídica razoável.
Eleições gerais isentas, seguras, fidedignas, em ambiente democrático e participativo, com total transparência quanto à sua lisura, é um compromisso solene da Justiça Eleitoral brasileira. Para essa instituição, posso dar o testemunho, a democracia representativa, como manifestação da soberania da Nação, é o valor que mais alto se alevanta. Por isso, é um bem social inegociável.
Itaney F. Campos é presidente do Tribunal Regional Eleitoral-Goiás (TRE-GO).