Um país dinamicamente imóvel

21 junho 2014 às 09h40

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O Brasil sofre da saudade de uma vida que nunca viveu e do medo de um inverno rigoroso descrito por profetas da Unicamp
Está claro que o Brasil não consegue se situar no mundo pela pujança política e social, e sua economia hoje tem, quando muito, uma pequeno-média significância internacional. Há lugares mais interessantes para investidores e, como exemplo de boas práticas e bons costumes, não está nem um pouco bem colocado. É um país que, internamente, vive preso às ideias ingênuas nascidas num passado utópico e, não paradoxalmente, às conquistas frívolas de um presente desgastado. Não muito melhor, externamente se apresenta como uma extravagante espécie de ornitorrinco onde povo, política, cultura e economia parecem partes de animais distintos. Daí que seu futuro, que os brasileiros se acostumaram a pensar como algo bom – representado pelo progresso, na bandeira –, tem se revelado muito mais obscuro do que os mais pessimistas dos nossos pensadores teriam imaginado nalgum tempo.
Primeiramente, não sendo um país de consolidadas reminiscências democráticas, experimenta prematuramente uma deterioração de suas instituições a duras penas conquistadas. A própria Constituição é matéria corroída pelos cupins dos interesses espúrios, da mesma forma como as leis desataviadas empurram os indivíduos para uma espécie de incivilização caricata e ameaçadora. Uma versão esquizofrênica sobre a igualdade civil, de cognome “justiça social”, sopita como lava de vulcão das profundezas mais ressentidas das massas e há muito sequestrou a política para uso mesquinho, egoísta e inconsequente. O conceito de responsabilidade foi mandado às favas, junto com a cordialidade, visto que a própria autoridade dos governantes e mesmo a autodeterminação da coletividade agoniza horrorosamente em praça pública, em meio a vandalismos, desrespeito e violência. De fato, o Brasil se tornou uma má companhia para aqueles que prezam pela própria imagem. Ora, a simples ideia de liberdade econômica, entendida desde o século 18 como aquela que melhor conduz um povo às oportunidades de riqueza, parece por aqui ser algo atacável em todos os âmbitos do governo e da política nacionalista.
Empresários, para ser bem-sucedidos, têm de se entregar à sanha de burocratas que querem ver seus nomes, bolsos e rostos associados ao “desenvolvimento”, mesmo que qualquer contextura neste sentido não trate de desenvolvimento algum. As palavras “empreendedorismo” e “inovação” significam ocultamente no Brasil “compadrio” e “dissimulação” (com raras exceções), valendo mais o acesso facilitado aos recursos do BNDES do que ponderar acerca de qualquer tipo de competição que impulsione e melhore o mercado e, sem dúvida, a vida dos trabalhadores. A persistência da situação de pobreza e miséria não se correlaciona com a falta de capitalismo, na percepção dos comandantes desse Titanic, pelo contrário, prefere-se a carcomida metáfora sociológica da casa grande versus senzala, com oligarquia e tudo, e sua solução exímia: o assistencialismo corriqueiro. Aliás, interferir estatalmente na economia brasileira, desde a revolução de 1930, é um gênero importante de atividade pública, mesmo que – de novo – esta nunca tenha realmente modificado para melhor as questões mais essenciais do país.
Empacado na descontinuidade entre o hoje e o amanhã, o Brasil sofre da saudade de uma vida que nunca viveu e do medo de um inverno rigoroso descrito por profetas da Unicamp. O neoliberalismo, a globalização e os altos executivos são monstros que povoam o seu porvir, ao mesmo tempo em que o bom selvagem, o igualitarismo socialista e um brioso salvador incorporam o conjunto do que achamos bom, belo e justo. Os brasileiros, mesmo vivendo as piores circunstâncias sociais, são enfim como cinderelas românticas a espera de fadas madrinhas e de cavaleiros medievais matadores de dragões. Quem se dá bem neste elemento, evidentemente, são os que melhor sabem jogar com tais devaneios, aqueles que afirmam “nunca antes na história deste país”, ou que esperam ser amados e louvados por incluir milhões de brasileiros num compasso autômato de consumo e dívida. Portanto, o país expia pela falta de visão e de antevisão que tanto qualificaram muitos países que se tornaram desenvolvidos e que, no tempo certo, compreenderam que para se chegar nalgum lugar precisariam necessariamente percorrer o fadigoso caminho que iria dar nesse lugar. Não há atalho e menor esforço possível, tampouco se pode prescindir de se assumir responsabilidades e consequências das ações empreendidas.
Lembremos o que Millôr Fernandes dizia: “viva o Brasil, onde o ano inteiro é primeiro de abril”. Afinal, não dá mais para disfarçar nem os embustes históricos do governo federal. Obras que não acontecem, sistema de saúde em frangalhos, ruína da Petrobrás, etc. O panorama do desgoverno não deixa equívocos os rastros de destruição por onde passaram as ineficiências, as irresponsabilidades, as asneiras, as corrupções e outras singularidades dos grupos dominantes. Provavelmente, serão necessárias décadas de trabalho duro para restaurar a excelência como forma de tratar a coisa pública, uma vez que o pior de todos os escândalos é o de deixar, para a posteridade, fortalecida a cultura do abuso pessoal da máquina pública como sendo algo adequado. O dinheiro público neste país abarrota uma piscina onde mergulham os homens e as mulheres bem ou mal intencionados do governo e seus convidados, importando na verdade saber que os resultados do seu uso são sempre os mesmos, péssimos para a população. Um inocente útil pode perguntar: Mas não foi sempre assim? Pouco importa, o que interessa é que nunca foi necessário ser assim, foi toda a vida uma escolha.
A boa notícia (se há) é que, se por um lado ainda não alcançamos um estágio sustentável de prosperidade, por outro não mais estamos dormindo em berço esplêndido. Alguma coisa despertou nos brasileiros desde o início das manifestações no ano passado e um – mesmo que ainda insuficiente – comichão de consciência passou a fazer parte das preocupações políticas. Dá para começar a se pensar que nas próximas eleições algumas crenças irão mudar e algumas reivindicações serão consideradas durante a formulação de novas políticas. Ao mesmo tempo, a situação a que chegou a economia tem levado a sociedade a avaliar o quanto tais políticas anacrônicas intervencionistas e protecionistas podem resultar em enfermidades realmente perigosas: inflação, desemprego e estagnação. O custo delas é muito alto e seus sintomas febris desestabilizam organicamente todas as outras dimensões da vida dos indivíduos. Logo, se o otimismo ainda tiver alguma importância nos nossos costumes, também vale aguardar por tempos melhores, senão menos piores, para o Brasil.
Everaldo Leite é economista