Traficantes usam redes sociais para comercializar munição e armas restritas a militares

05 julho 2025 às 08h00

COMPARTILHAR
Armas e munições de uso permitido e até restrito às forças de segurança pública têm sido ofertadas aos montes por meio das redes sociais. Grupos, páginas e perfis em plataformas de empresas como Meta (controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp) e Telegram anunciam e vendem armas de fogo, munições e acessórios controlados pelo Exército e pela Polícia Federal (PF) em uma espécie de mercado paralelo sem fiscalização.
LEIA TAMBÉM
PF: CAC’s goianos integravam quadrilha internacional de tráfico de armas e munição
Policial de Goiás entra na mira da PF suspeito de importar e vender armas de forma ilegal
Na lista de ofertas feitas na rede social há revólveres, fuzis, canos, silenciadores, máquinas de recarga e até um kits importado que transformam uma pistola em submetralhadora de uso restrito das forças militares. Entretanto, o principal produtor ofertado são munições, oferecidas quase que de forma unânime por traficantes que se identificam como Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs).
As armas e munições, conforme investigação do Jornal Opção com base em conversas com traficantes e publicações de grupos fechados ou secretos no Facebook, nos quais o acesso de um membro é controlado pelo administrador da página e as informações são bloqueadas ao público externo, são adquiridas principalmente no Paraguai e nos Estados Unidos, mas também há publicações voltadas ao continente africano – prática que configura tráfico internacional. Para entender como funciona o esquema, a reportagem negociou com o administrador do grupo “Caçadores da Noite”, que conta com pouco mais de 40 membros.
Semanalmente, o CAC divulga promoções de munição e até canetas adaptadas para disparar balas .22, no grupo voltado à comercialização de balas. O traficante, durante conversa com o repórter, ofereceu munições de pistolas, como 9 mm e .380, além de espingardas de calibre 12, 16, 28, 32 e 36. Munições de fuzis, como 5,56x45mm, também estavam disponíveis para venda. Os projéteis variam de preço, de acordo com o calibre.
“[Da espingarda calibre 12] é R$ 10,20 cada unidade. A caixa [com 25 estojos] faço R$ 230. A da 24 faço R$ 200 a caixa. Vou despachar algumas coisas hoje pra seu Estado, quer aproveitar? Amanhã tenho outras coisas para despachar. Tudo bem sigiloso, pode ficar tranquilo”, afirmou o CAC.
As munições de pistola são mais em conta. Uma cartela com 10 estojos de calibre 9mm, por exemplo, sai a R$ 92. A caixa, com 50 unidades, é comercializada por R$ 380.
Questionado sobre a segurança do transporte e uma possível apreensão, o traficante diz que nunca teve problemas com as encomendas, que envia para todos os Estados do Brasil a partir de Uberlândia, em Minas Gerais.
“Pode ficar tranquilo, chega certinho graças a Deus. Sempre fui honesto com meus negócios. A munição é original, CBC. Se eu enviar hoje ou amanhã, no máximo quarta-feira tá aí”, contou, afirmando que o transporte levaria, em média, dois dias.
Crimes é combate
Apenas neste ano, a Polícia Federal realizou ao menos três operações para combater o tráfico de armas e munição em Goiás. Entre os alvos estão CACs e até um policial militar, que vendia acessórios e projéteis paraguaios por meio das redes sociais.
Na última quinta-feira, 3, também foi a vez da Polícia Civil de Goiás (PCGO) ir às ruas durante a Operação Desarme, deflagrada em Jataí, Mineiros e Rio Verde. A ação mirou proprietários de arma de fogo que estavam irregulares e perderam a posse das armas. Seis pessoas foram presas e 14 armas de fogo apreendidas. Assim como o comércio ilegal, que gera penas de até 16 anos de prisão e multa, a aquisição e a posse irregular deste tipo de artigo é crime.
“O processo de comercialização deve ser iniciado a partir do momento em que uma pessoa física ou jurídica seja autorizada pelo órgão fiscalizador, seja ele a Polícia Federal ou o Exército, para que ele possa no território nacional, produzir e vender armas, munições e outros acessórios. Já o combate é realizado por todas as forças de segurança pública, principal”, explica o delegado Anderson Pimentel.
Conforme o delegado, é necessário um maior controle das fronteiras pela PF, Polícia Rodoviária Federal (PRF), Exército e Marinha. De acordo com ele, há uma rede de tráfico e contrabando de armas na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. Porém, há ainda a presença deste tipo de acessório importado por meio aéreo e marítimo de outras partes do mundo.
“Há uma maior profusão dessa prática pela fronteira do Paraguai, mas não há como afirmar que lá seja o principal ponto. Temos uma fronteira muito extensa”, reforça Anderson.
Mudanças no governo
A persistência desse comércio mostra a dificuldade na moderação de conteúdo mesmo dentro de uma das maiores empresas do mundo em valor de mercado. Além disso, a continuidade desse comércio irregular acontece num momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenta frear o acesso a armas de fogo facilitado durante o governo Bolsonaro (PL).
Apenas nos seis primeiros meses de 2023, o número de CACs caiu 85,9% em Goiás. Segundo dados obtidos pela reportagem, entre janeiro e junho daquele ano, foram contabilizados “apenas” 10 registros apostilados pelo Exército Brasileiro. No ano anterior, ainda sob o comando de Bolsonaro, o número chegou a 71, fechando 2022 com um total de 153 novos CAC’s. Os dados são da PF.
Ainda em 2023, a quantidade de armas recolhidas com a Campanha do Desarmamento cresceu 71,4%. Foram 24 armas recolhidas contra 14 no mesmo período do ano passado, que registrou, ao todo, 30 armas de fogo entregues. O número de novos portadores de armas de fogo também apresentou declínio em Goiás.
Conforme a PF, a quantidade de registros de portes caiu 20,6%, passando de 116 para 92 em 2023. Já as armas registradas sofreram queda ainda maior, de 68,6%, reduzindo de 1.913 para 600. A baixa, inclusive, impactou o segmento voltado a este público, como estabelecimentos de tipo esportivo e lojas de caça e pesca. Despachante, instrutor de tiros e proprietário de clube de tiros desde 2019, o empresário Leder Pinheiro estima que a venda de armas caiu pela metade.
Para Leder, o governo criou mais burocracia para atrapalhar o seguimento do que para a eficácia no combate ao crime. Ainda de acordo com ele, o processo provocou não só redução nas vendas, como também na oferta de empregos.
“O seguimento é muito fiscalizado, mensalmente tem de ser feito, por parte das lojas de armas, um mapa de armas e munições com relatórios de vendas e documentação dos compradores. O comprador chega na loja com documentação pessoal e registro da arma, a loja faz um cadastro e verifica se aquela pessoa tem limite e pode adquirir aquela munição. Tudo é lançado no sistema e, ao final do mês, é feito um mapa com todas as vendas e enviado ao Exército”, afirma.
Fiscalização da PF
A Polícia Federal assumiu na terça-feira, 1º, a responsabilidade pela fiscalização dos CACs. De acordo com informações repassadas pelo Exército Brasileiro, existem no Brasil quase 980 mil certificados de registro de CACs, e 1,5 milhão de armas de fogo registradas.
Até o último mês, a responsabilidade pela fiscalização dos CACs era do Exército. A transferência para a PF ocorre de forma escalonada, e atende a uma determinação do governo Lula. A mudança consta do chamado decreto das armas, assinado em julho de 2023, e confirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Todos os processos iniciados até 30 de junho, no entanto, continuarão sob responsabilidade do Exército.
Entre as mudanças previstas, está a elaboração de um painel estatístico que reunirá dados sobre os processos de registros e outros conteúdos sobre os CACs no país. O objetivo é facilitar o acesso da sociedade a informações sobre o segmento.
Segundo a PF, os procedimentos de concessão seguirão os critérios previstos em lei, “com foco na verificação da idoneidade do solicitante, capacidade técnica e aptidão psicológica”. A previsão é que o tempo médio para análise dos pedidos seja de 11 dias.