Relacionamento abusivo: entenda o ciclo e como pode ser identificado

14 novembro 2023 às 15h12

COMPARTILHAR
Maria das Graças tem 54 anos e está casada há 33. Ela conta que iniciou o relacionamento aos 17, mas se casou aos 21 anos porque se descobriu grávida. O marido não recebeu muito bem a notícia, mas se casaram porque segundo ela, na época, “mulher solteira era vista como puta”. De acordo com seu relato, as agressões verbais começaram pouco tempo após a oficialização do matrimônio, seguidas pelas violências físicas e psicológicas. Ela já registrou um boletim de ocorrência contra o marido por duas vezes, e em uma delas, também solicitou uma medida protetiva. As agressões, no entanto, só tiveram fim quando Maria decidiu pedir o divórcio aos 52 anos.
A mulher citada na reportagem é uma das milhares de vítimas que sofrem com violência de gênero no Brasil, espeficiamente em Goiás, onde mais de 100 mulheres são vítimas de violência doméstica por dia. Os dados registrados pela Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) podem sofrer com subnotificação considerando que a maior parte das mulheres que sofrem com um relacionamento abusivo não procuram a polícia.
Lenore E. Walker, psicóloga norte-americana, foi a primeira a identificar e compreender o padrão de comportamento nos agressores de casos de violência doméstica. Na década de 1970, após entrevistar mais de 1.500 vítimas, ela delineou o “Ciclo da Violência”, dividindo-o em três fases:
- Construção das tensões: ocorrem o controle do comportamento, o isolamento da mulher, ofensas verbais e humilhações
- Explosão da violência: há agressão física, violência patrimonial, violência moral, violência sexual ou violência psicológica
- Lua de mel: o homem pede perdão, enche a mulher de promessas de mudança, há reconciliação e reconstrução do vínculo
Em fevereiro, para tentar atender a demanda de mulheres abusadas, foi criada a Delegacia Estadual de Combate a Violência Contra a Mulher no Estado de Goiás. A delegada titular, Ana Elisa Gomes, já representou a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Goiânia e também já foi titular na Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA). Ela contou ao Jornal Opção que, apesar dos avanços sociais, as mulheres ainda sofrem com o mesmo ciclo de violência identificado pela pesquisadora norte-americana.
De acordo com a delegada, muitas mulheres sofrem com um relacionamento de abuso, mas não procuram a polícia por medo ou “descrença do próprio sistema”. Isso porque, além de lidar com o medo da agressão do marido, as mulheres ainda tem que lidar com a ineficiência do Poder Judiciário. Segundo a titular da Deam, cerca de 97% dos agressores são soltos em audiências de custódia.
“Quando a investigação não é célere, querendo ou não querendo, ela estimula aquela sensação de impunidade. Aquela mulher que vai na delegacia, registra um boletim de ocorrência e não tem o inquérito concluído no tempo determinado por lei, essa mulher muitas vezes fica descrente do próprio sistema. E o agressor, por outro lado, entende que ele não está sendo responsabilizado dentro do que é esperado socialmente, legalmente falando. Então a delegacia fica nesse processo de registrar a ocorrência, cumprir uma data de prisão, concluir a investigação, representar por prisões e fazer autodivisões em flagrante para que a gente consiga, dar a resposta na mesma velocidade do avanço dessa violência”, explicou Ana Elisa.
Feminicídio cresce em Goiás
De acordo com a SSP, em Goiás, os dados de janeiro a junho de 2023 mostram que foram registrados 21 casos de homicídio/feminicídio na faixa etária de 0 a 17 anos. Outras 15 vítimas com idade acima de 65 anos e 60 são mulheres. Considerando o mesmo período, foram 123 casos de estupro com vítimas de 0 a 17 anos. Outras 7 com idade acima de 65 anos e 336 vítimas mulheres. Já os crimes contra a honra (injúria, difamação e calúnia) somam 838 casos com vítimas de 0 a 17 anos. Com idade acima dos 65 anos, foram 663 e 11.787 mulheres. Já os registros de ameaça revelam que 1.520 vítimas tinham entre 0 a 17 anos. Outras 943 com idade acima dos 65 anos e 14.777 mulheres.
“A gente fala também de uma sociedade que minimiza a violência. Hoje nós estamos tolerando mais a violência, em todos os sentidos. Não só a violência de gênero, mas hoje nós aceitamos situações de violência, atos de violência e ainda há o partidarismo, com uma parte torcendo para um lado e outra torcendo para o outro. Hoje, se você for ver a reação das pessoas nas redes sociais, por exemplo, as pessoas se indignam muito mais com um cachorro sofrendo maus tratos do que com uma criança sendo chutada pelo pai ou mãe”, exemplificou a delegada.
A semana em Goiânia começou com uma mulher sendo assassinada de domingo, 12, para segunda-feira, 13. O autor do crime, companheiro da mulher, ainda tentou ludibriar os policiais e atrapalhar as investigações para não ser preso. São mulheres que vão se tornando números e estatísticas, mas alguns casos, por serem mais divulgados, acabam causando a comoção pública pelos requintes de crueldade do crime. Em maio, Ramon de Souza Pereira matou as duas filhas para atingir a mulher, que supostamente havia o traído. Na época do crime, as redes sociais traziam comentários como “deveria ter matado a mulher e não as crianças”, como se uma violência justificasse a outra.
“A violência hoje não é penalizada, ela é socialmente aceita. Nós toleramos a violência e muitas vezes até incitamos e aplaudimos essa violência. O olho por olho, o dente por dente, vamos resolver na porrada mesmo, está tudo certo. Nesse tipo de cultura, nesse tipo de sociedade que tudo tolera, é o público vulnerável que mais sofre. E entre os vulneráveis estão as crianças, as mulheres, os idosos, a população LGBTQIAP+, são essas pessoas menos representadas” finalizou Ana Elisa.
Tatiane Machiavelli é psicóloga, professora da Universidade Federal de Catalão (UFCAT) e estuda relações de gênero. Segundo ela, o ciclo da violência ainda é o mesmo apresentado na década de 70, mas que as agressões podem acontecer em momentos diferentes da relação, porque tem casais que vivenciam esse ciclo ao longo de uma semana e tem casais que vivenciam esse ciclo ao longo de um ano. Além disso, ela já estudou casos de mulheres que vivenciam as violências sem necessariamente passarem pelo ciclo.
Ciclo de violência não abrange totalidade
“É importante destacar isso porque a mulher pode pensar que, porque não vivencia essa descrição teórica, não vivencia também a violência. O segundo ponto é que relacionamentos abusivos, que levam às violências domésticas, tendem a confundir as mulheres e muitas vezes a agressão é confundida com amor, carinho, cuidado”, explicou a professora.
Segundo ela, isso acontece porque vivemos em uma sociedade regida pelo sistema patriarcal. Ou seja, a raiz da violência de gênero está nas relações de poder entre homens e mulheres. Assim, o modo de relação, o modo em que as pessoas, homens, mulheres, crianças, idosos se relacionam, essa relação é muito pautada na desigualdade, onde o corpo da mulher se torna um objeto de satisfação masculina. A mulher fica nessa condição de inferioridade, de subserviência, de submissão às escolhas, às percepções, aos desejos dos homens.
“Esse sistema patriarcal vai naturalizar as relações desiguais e também as relações violentas. Então, um homem decidir por uma mulher, um homem fazer escolhas por uma mulher, um homem mandar numa mulher, esse tipo de relação vai sendo naturalizado, vai sendo normalizado de tal forma que isso vai provocar uma invisibilização no lugar das mulheres na sociedade. E, junto com tudo isso, a experiência da violência vai ser naturalizada”, completou a pesquisadora.
Historicamente, no Brasil, foi apenas a partir da década de 1970 que a sociedade passou a clamar coletivamente pelo enfrentamento da violência doméstica. Um aspecto crucial nesse cenário é a desigualdade entre as experiências pública e privada, especialmente no âmbito da privacidade. Nas relações íntimas dentro dos lares, entre pais e filhos, casais e demais membros da casa, o Estado historicamente não regulamentou nem teve acesso. Nessa esfera, a expressão “ninguém mete a colher” traduzia a ideia de que o Estado não deveria intervir nos problemas de violência doméstica, omitindo-se na criação de leis e mecanismos para garantir a segurança das mulheres e crianças. Essa postura agora está sendo questionada com a crescente demanda por medidas que enfrentem efetivamente esse tipo de violência.
- Leia também: Cultura do estupro no Brasil continua em alta, apesar dos avanços sociais
- Por que precisamos falar sobre a cultura do estupro?
Contatos para mulheres que sofrem abuso
- 190 – telefone para emergência que aciona a Polícia Militar;
- 153 – telefone para emergência que aciona a Guarda Civil Metropolitana (GCM);
- (62) 9 9930-9778 – Batalhão Maria da Penha para situações de descumprimento de medida protetiva;
- (62) 3157-1039 – assessoria jurídica gratuita do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem);
- (62) 9 8306-0191 – atendimento psicológico do Centro de Referência Estadual da Igualdade (Crei);
- (62) 9 9108-2133 – Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO);
- (62) 3201-2801/2802/2807 – 1 ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), que fica no centro de Goiânia;
- (62) 3201-3644/6332/6331 – 2 ª Deam, no Setor Noroeste da capital;
- (62) 3201-2642 – Deam de Aparecida de Goiânia.