Reconhecimento do luto perinatal e formas de enfrentamento
15 março 2020 às 11h15

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Em Goiás, já foi sancionada lei que estabelece Semana de Sensibilização à Perda Gestacional, Neonatal e Infantil e regularizado registro do nome de bebês natimortos

Aos 16 anos, a redatora publicitária Tainá Azevedo enfrentou transformações marcantes em sua vida. Entre concluir o ensino médio e mudar de estado para começar a faculdade, Tainá engravidou. Apesar de jovem, a escolha foi de manter a gravidez e, no dia 15 de outubro de 2012, nasceu Sofia em um parto prematuro. Cinco dias depois do nascimento, a menina faleceu devido a uma pneumonia.
Cerca de seis anos depois, como parte da conclusão do curso de Comunicação Social, Tainá Azevedo escreveu o livro-reportagem “Um voo submerso”, que, em oito capítulos, traz relatos de mulheres que sofreram perda gestacional ou neonatal — entre 0 e 27 dias de vida do bebê. Além disso, ela retratou o luto em reprodução assistida, o olhar da equipe médica sobre essas mulheres, a relação da mulher com aborto provocado, o “bebê arco-íris” e o luto paterno.
Nos relatos, a escritora percebeu diversas dimensões da perda. Entre as histórias, mães e pais das crianças falaram sobre a dor da negação e a importância do registo civil do bebê, a diferença nas formas de encarar a morte, o efeito do estigma social, que vem da própria dificuldade da sociedade de lidar com o luto do outro, e processos hospitalares nas maternidades.
Tainá conta que escrever sobre o assunto contribuiu para o seu próprio enfrentamento e compreensão do que havia acontecido anos antes. “Quando fui escrever sobre isso é que vivi meu luto, porque entrevistei mulheres que passaram por algo parecido e escrevi a minha própria história. Foi um processo interessante para mim, porque tive que me ver de fora. Chorei muito enquanto escrevia, é muito diferente você passar por uma coisa e você racionalizar. Escrever aquilo como se fosse uma pessoa olhando de fora é muito diferente e foi o que mais me ajudou a lidar” relatou.
Lei Gregório
A assistente social Sherloma Aires perdeu o seu filho, Gregório, três dias após seu nascimento, no dia 28 de fevereiro de 2019. Ela contou que foi um parto surpresa, sem qualquer indício de prematuridade, e aconteceu durante uma viagem à Florianópolis com o esposo, Felipe Aires.
“Na clínica, fomos atendidos por profissionais com condutas humanizadas. Me senti acolhida pelas enfermeiras. Mas, também tinham outros que não estavam preparados para lidar com a morte. A própria direção do hospital se mostrou despreparada no quesito de documentações. Vivemos momentos difíceis neste aspecto” relatou a assistente social.
Durante o puerpério e o luto, Sherloma teve a licença maternidade revogada, assim como seu esposo teve a licença paternidade impedida.
“Me foi negado o direito à licença maternidade, tal como foi negada a licença paternidade do meu esposo. Isso nos causou muita dor. Para mim, foi como terem negado a minha maternidade” desabafou.
A assistente social contou que, enquanto pesquisava sobre a questão da licença maternidade, se deparou com uma lei do município de Araraquara-SP, que instituía a Semana de Sensibilização à Perda Gestacional, Neonatal e Infantil, no dia 15 de outubro, que é a data mundial para memória dessas perdas. Com base neste documento, ela e o esposo redigiram a proposta de Lei n.º 10.408, homenageada com o nome “Lei Gregório”.
“O impulso para a elaboração da proposta partiu da dor ao ter nossos direitos violados e também da valorização dos atendimentos humanizados que recebemos. Ambos fizeram diferença na forma com que lidamos com o luto” explicou Sherloma.
A lei foi sancionada no dia 15 de outubro de 2019 e criou, no calendário oficial de Goiânia, a semana de sensibilização, estabelecendo que, durante uma semana por ano, esse tema seja tratado em palestras, campanhas, caminhadas, notícias, pensando as mudanças que a educação e a sensibilização podem gerar.

Também no final do ano de 2019, foi regulamentado o direito dos pais de registrarem o filho natimorto — quando o bebê falece dentro do útero materno ou no momento do parto. Apesar da iniciativa não ter partido do casal, Felipe Aires teve a oportunidade de participar da elaboração do documento, para isso diz ter considerado o princípio da dignidade da pessoa humana, referente ao direito de memória dos pais em relação aos filhos. O documento também assegurou a possibilidade de retificação, para contemplar os pais que já viveram a situação e queiram incluir o nome no documento antigo.
“O registro do nome simboliza muito aos pais. Desde a gravidez, por vezes até antes, escolhemos os nomes de nossos filhos. Simboliza o reconhecimento desse vínculo já estabelecido. Simboliza a memória do filho que faleceu. Muitas mães que passaram por isso me disseram: ‘doeu quando vi o documento sem o nome. Até parecia que meu filho era um indigente’ ” contou a assistente social.
Estatísticas
Na justificativa da Lei Gregório é informado que a perda gestacional e neonatal varia entre 15% e 20% das gestações, sendo a maior ocorrência na 12° semana de gravidez. O período perinatal considera entre os 5 meses de gravidez e os 7 dias após o nascimento.
“O intuito da Lei é dar visibilidade para esse tema, tanto para os profissionais da saúde que atendem as pessoas em situação de luto parental nestas fases, como para a sociedade, que muitas vezes invalida esse luto. Todos nós, mesmos as pessoas que não são pais, já escutamos que a maior dor do mundo é a dor de perder um filho. Mas, quando se trata da perda de um filho na fase gestacional ou neonatal, esse luto é minimizado. Há tentativas de silenciá-lo” explicou Sherloma.
De acordo com o Ministério da Saúde, as principais causas de morte infantil (0 até 1 ano) são prematuridade, pneumonia, complicações durante o trabalho de parto e diarreia. O órgão apontou que mais de 5,8 mil bebês morreram em Goiás em um período de dez anos. Em 2016, ano da epidemia do zika vírus, o Estado chegou a 13,3 de mortes a cada mil nascidos contra 12,72 mortes por mil na média nacional.
De acordo com o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) as cidades que apresentaram maiores registros de óbitos infantis são Goiânia, Aparecida de Goiânia, Anápolis e Rio Verde. Estes municípios são responsáveis por 39,88% de casos de mortalidade neonatal.