Professor não deveria ser porta-voz de dogmas religiosos, diz doutora em Educação
24 setembro 2017 às 15h24
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Em entrevista ao Jornal Opção, professora da UFG comenta ADI julgada pelo Supremo que questiona modelo de ensino religioso nas escolas da rede pública de ensino do país
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar nesta semana o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, na qual a Procuradoria-Geral da República (PGR) questiona o modelo de ensino religioso nas escolas da rede pública de ensino do país.
Na ação, a PGR pede que seja conferida interpretação conforme a Constituição Federal ao dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação para assentar que o ensino religioso nas escolas públicas não pode ser vinculado a uma religião específica e que seja proibida a admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas. Sustenta que tal disciplina, cuja matrícula é facultativa, deve ser voltada para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica.
Até o momento, o placar está desfavorável ao pedido, com 5 votos pela improcedência da ação e três a favor, incluindo o parecer do relator, o ministro Roberto Barroso.
O cenário contrário à ADI não surpreende a doutora em Educação e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) Diane Valdez. Em entrevista ao Jornal Opção, a especialista avalia não ser coincidência os ministros “sustentarem suas defesas sob uma suposta liberdade de crença ignorando a Constituição de 1988”.
“Em uma casa republicana, como o Supremo, ornada por um crucifixo na parede, símbolo máximo do cristianismo, não se esperaria unanimidade a respeito do questionamento da Procuradoria-Geral da República de autorizar as escolas públicas ‘ensinarem’ aulas de religiões específicas, como, por exemplo, o catolicismo”, defende.
Apesar de se posicionar contra a disciplina de ensino religioso nas escolas, Valdez não é otimista quanto à proposta defendida pela PGR. Isso porque, para ela, a própria designação da disciplina já exclui qualquer tentativa de neutralidade. Além do mais, a doutora defente que o ensino de História na Educação Básica não deveria privilegiar temas ou recortes dessa natureza: “A criança e adolescente tem o direito de conhecer a história da humanidade sob diferentes aspectos”.
Dentro da realidade da interferência religiosa na escola pública, a docente enfatiza, ainda, que a laicidade do Estado fica mais fragilizada com a “convicção apostólica” de formar alunos para a religião. Por isso, defende que é dever de todos confrontar, dentro e fora do espaço escolar, práticas que excluem, segregam e discriminam.
“Discutir religião, assim como todos outros temas, é um direito de meninos e meninas que estão no espaço público educativo, mas não ser objeto de doutrinação por parte de quem for, a autoridade docente não deveria permitir ser porta-voz de dogmas pertencentes à sua religião”, complementa.
Confira abaixo a entrevista na íntegra com a professora Diane Valdez*:
Qual é a avaliação da senhora quanto a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, na qual a Procuradoria-Geral da República questiona o modelo de ensino religioso nas escolas da rede pública de ensino do país?
É papel da Procuradoria-Geral da República questionar um modelo de ensino que fere os princípios do Estado laico promulgado pela Constituição de 1988. No entanto, vale ressaltar que o momento é propício a reações favoráveis a todo tipo de intervenção religiosa no poder público, em especial na defesa de um ensino de religiões específicas nas escolas públicas em detrimento de um formato genérico que não privilegie quaisquer religião, nem as consideradas majoritárias. A despeito de considerar que a designação “ensino religioso” já exclui qualquer tentativa de neutralidade, ingenuidade ou desinteresse, o que assistimos nos discursos de togas é uma tentativa de piorar o que já estava arruinado. Os movimentos estratégicos (convencionais) realizados por representantes de religiões cristãs para assegurar o ensino religioso na escola pública, além do acordo com o Vaticano, são algumas das marcas históricas de que a igreja sempre se recusou a manter-se na esfera privada, pois é no espaço público, em especial na escola, que a mesma ganha o status exclusivo de mestre da moral pública. Este status é partilhado por boa parte da República, mesmo distante de templos. O Estado laico é o único capaz de assegurar o direito e o exercício da religião, o Estado não é responsável de dar educação religiosa para crianças, é responsável de assegurar que ninguém seja discriminado pelas suas crenças ou de sua família. A escola tem outros papéis, em especial de garantir o direito de acesso ao conhecimento científico de cada aluno, independente da idade ou de classe social.
A senhora acredita que, atualmente, o ensino religioso na rede pública tem sido vinculado a religiões específicas, prejudicando, assim a laicidade do Estado? Neste sentido, a admissibilidade da ADI seria positiva ou negativa?
A despeito do debate tentar retomar o que a Constituição garante, vale ressaltar que o estrago já foi feito, pois nas ondas ultraconservadoras religiosas, que crescem de forma assustadora, as religiões encontraram importantes aliados e estenderam seus templos para as escolas públicas, com a conivência do próprio Estado. Assim, profissionais diversos, em especial quem ocupa cargos de gestão, sentem-se à vontade para disseminarem seus credos nesses espaços onde parece não faltar proselitismo religioso que conflita com a educação laica. Imposições de fé cristã são aplicadas diariamente, como: receber alunos com a repetição diária de rezas, orações, leituras de histórias bíblicas, músicas religiosas etc., a presença de visitas externas de líderes religiosos (padres, pastores/as, ministros/as) com seus credos “ecumênicos”, em solenidades festivas ou reuniões de formação (espaço privilegiado de debates científicos); paredes que ostentam símbolos religiosos cristãos, como crucifixos, terços, além de frases bíblicas espalhadas nas paredes do ambiente escolar; exposição da bíblia em lugar evidente; projetos coletivos comemorativos, dotados de pretensa ausência do proselitismo (paz, amor, esperança, caridade) são executados por lideranças docentes religiosas, além de outras práticas que excluem qualquer tentativa deste lugar cumprir com seu papel de garantir o conhecimento científico que amplia o universo dos que a frequentam.
Uma matéria de caráter facultativa voltada para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica, assim como propõe a ADI, é possível no Brasil? Como isso funcionaria na prática?
Não sou otimista com essa possibilidade, é muito difícil conter o proselitismo diante de uma disciplina, contraditoriamente, chamada “ensino religioso” em um Estado laico. Considerando que a designação já exclui qualquer tentativa de neutralidade, penso mais nas possibilidades de arbitrariedades do que nas possibilidades educativas. Além de que, o ensino de História na Educação Básica não deve privilegiar temas ou recortes dessa natureza, a criança e adolescente tem o direito de conhecer a história da humanidade sob diferentes aspectos. Claro que se um aluno ou aluna, optar por um estudo específico da área, dentro de um conhecimento científico, a escola deve orientar e proporcionar este saber de forma individual. Além do já conhecido controle social, muito bem utilizado para homogeneizar as diferenças no ambiente escolar, o argumento religioso é mais um elemento coercitivo para moldar comportamentos. O sentido moralizador da religião age a partir das versões de quem imprime sua crença particular para o coletivo, seja sob ameaça (deus está vendo), punição (deus castiga), imposição (deus único), projetos (deus tem planos), solução (deus salva) e outros. Não há neutralidade, imparcialidade, liberdade, direito de decidir ou de escolher, o caminho é um só: a aceitação.
A facultatividade da matrícula e o direito ao desligamento a qualquer tempo já não são salvaguardas suficientes para garantir o direito integral dos alunos de escolas públicas em relação ao ensino religioso?
É muito complicado falar sobre ensino facultativo em nossas escolas públicas, pois elas não se constituem ainda como um espaço democrático na qual o aluno é ensinado a escolher e opinar em detrimento de aceitar e se calar. O protagonismo infanto-juvenil ainda soa como uma ameaça para a comunidade escolar adulta que, historicamente, impôs formatos de educar, sobretudo educar para a submissão. A educação para a liberdade poderia proporcionar a escolha ou a recusa de forma crítica, no entanto, o conceito de infância e adolescência, em especial das camadas pobres da população, ainda se configura, na maioria das vezes, sob a égide de subserviência e não de direito. Claro que a recusa pode aparecer sob outros formatos, dentro da própria aula por exemplo, no entanto, fica ainda a questão da imposição religiosa que se faz por meio de justificativas morais e autoritárias. A mais utilizada, baseada em uma suposta desorientação do mundo, propõe salvar “esses alunos de hoje” que se encontram perdidos, agressivos, sem referência de moral, fé, costume, família, religião, deus etc. Para estes só resta a religião e não a construção do conhecimento em torno de temas como gênero, direitos humanos, sexualidade, etnia, diferenças sociais e outros que afligem a infância, adolescência e juventude. Diante de um quadro de tamanho autoritarismo, qual é o movimento que a meninada pode fazer em optar assistir ou não as aulas dessa disciplina?
Os ministros que foram contra a ADI argumentaram, por exemplo, que, a Constituição resguarda a individualidade da pessoa e sua liberdade de crença, respeitando tanto os que querem se aprofundar em uma religião quanto os que não querem se sujeitar a determinados dogmas, uma vez que deixa a questão “em aberto”. Essa afirmação não aparenta ser contraditória à laicidade do Estado?
Não penso que é coincidência os ministros sustentarem suas defesas sob uma suposta liberdade de crença ignorando a Constituição de 1988. Em uma casa republicana, como o Supremo, ornada por um crucifixo na parede, símbolo máximo do cristianismo, não se esperaria unanimidade a respeito do questionamento da Procuradoria-Geral da República de autorizar as escolas públicas ‘ensinarem’ aulas de religiões específicas, como, por exemplo, o catolicismo.
Parece incontestável que cada um pode escolher sua religião (já optar por nenhuma religião, nem fé, nem crença, já não parece tão aceitável), sim, cada um pode, mas o aprofundamento de determinada crença sob o argumento de evitar dogmas e preceitos, é no mínimo trágico. Na minha concepção, o próprio ensino religioso já ofende a neutralidade do Estado, ministrar estudos específicos é ainda pior, pois ao contrário de evitar dogmatismo pode aprofundar ainda mais a imposição de preceitos conservadores no ambiente escolar. Exemplos não faltam, como a professora que entra na sala e fala para as crianças que só serão ‘salvas’ as pessoas de sua religião, o professor que discrimina, publicamente, a religião de matriz africana da aluna negra, a diretora que insiste em ameaçar as crianças com castigos divinos, a coordenadora que transfere o papel de educação para autoridades religiosas de fora da escola e muitos outros.
Profissionais da educação já expressam suas fés e disseminam valores de suas crenças nas salas de aulas sem o menor problema, desrespeitando crenças que não são as suas e contrariando o direito do aluno de ter acesso irrestrito ao conhecimento científico. A escola tem o papel de ensinar, socializar e garantir um espaço longe das disputas ideológicas de doutrinação. Discutir religião, assim como todos outros temas, é um direito de meninos e meninas que estão no espaço público educativo, mas não ser objeto de doutrinação por parte de quem for, a autoridade docente não deveria permitir ser porta-voz de dogmas pertencentes à sua religião.
Neste cenário, como a senhora avalia esta interferência religiosa no ensino público?
Em um mundo que tem mais de cinco mil deuses e religiões, falar que existe um deus único, oração universal e só uma religião salva, é no mínimo ignorar a universalidade e pluralidade que nos constituem. O fato de alguém optar por uma religião para nós, ainda quando criança, parece dar continuidade no espaço escolar quando professores/as em vez de abordar aspectos sociais de diferentes crenças, impõem seus valores religiosos acentuando a intolerância e ignorando qualquer possibilidade de ensino democrático.
Censura, ao contrário do que sugerem os ministros, é impôr dogmas nas escolas por meio da autoridade docente, recusando qualquer outro deus que não seja o que representa religiões cristãs. Censura é priorizar as chamadas religiões majoritárias ignorando a diversidade religiosa existente. O conceito de censura aqui é largo, bem maior do que os ministros sugerem.
Só um Estado laico pode garantir o direito de cada aluno/a exercer no domínio privado, em suas famílias e templos, suas crenças. A escola pública é composta pela diversidade, não enxergar isso é afrontar com direitos republicanos, desrespeitando a pluralidade que deveria garantir o respeito e a tolerância no espaço escolar. Assim, a escola, por natureza um espaço de conflitos, é contemplada com mais uma disputa, nada pacífica, entre os próprios cristãos, que se acham proprietários de conceitos morais que não merecem discussões e sim imposições.
A interferência religiosa na escola pública é uma realidade, um fenômeno complexo que revela concepções de mundo em disputa e, distante de disseminar (impor) ‘amor’, trata-se de disputa política, mercadológica, onde se compete por fiéis, ofertas, votos, produtos e, certamente, poder. A laicidade enfraquece ainda mais na convicção apostólica de formar alunas(os) para a religião, pois vai na contramão de processos pedagógicos exitosos que contribuam com a formação humana e científica. A ‘feira religiosa’ na escola pública, neste movimento, tende a crescer e o papel de todos nós é confrontar práticas que excluem, segregam e discriminam. A imposição de dogmas religiosos, longe de garantir melhores pessoas, funciona na contramão, pois, historicamente, sabemos que religião não define caráter de ninguém.
*Diane Valdez é graduada e mestra em História, doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da UFG e militante de movimentos sociais