Por que o processo de Bolsonaro durou 1 ano e o de Lula levou 7?
28 novembro 2025 às 18h39

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Os julgamentos de ex-presidentes brasileiros, sendo um no âmbito da Operação Lava Jato e outro na Ação Penal 2668 por tentativa de golpe de Estado, se tornaram dois dos episódios mais simbólicos da relação entre Justiça e política no Brasil democrático. Embora frequentemente comparados no debate público, os dois casos possuem trajetórias processuais distintas, fundamentos jurídicos diferentes e consequências que podem reverberar por anos décadas no sistema judicial.

Para aprofundar essas diferenças e convergências entre os processos, a reportagem ouviu o advogado criminalista Pedro Paulo de Medeiros, presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas da OAB. Ao Jornal Opção, ele explica como o Supremo aplicou as regras de foro por prerrogativa, por que a velocidade de tramitação difere quando o processo nasce na instância máxima e qual o alcance técnico das nulidades, que no caso de Lula, levaram à anulação das condenações.
Quais as diferenças que marcam os processos de Bolsonaro, por golpe de Estado, e o do presidente Lula na Lava Jato?
Acho que a primeira coisa é separar a fotografia jurídica de hoje da história dos processos.
Hoje, objetivamente, a situação é esta: o ex-presidente Lula não tem mais condenações criminais válidas no âmbito da Lava Jato, porque o Supremo Tribunal Federal anulou aqueles processos de Curitiba, ao reconhecer a incompetência da 13ª Vara Federal e a parcialidade do então juiz. Já o ex-presidente Bolsonaro, por sua vez, tem hoje uma condenação criminal definitiva, na Ação Penal 2668, no STF, a 27 anos e 3 meses de prisão, em regime inicial fechado, por fatos que o Supremo enquadrou como tentativa de golpe de Estado e outros crimes contra o Estado Democrático de Direito. Essa condenação já transitou em julgado e começou a ser executada.
Dito isso, eu sempre ressalto: isso é a fotografia de hoje, não um carimbo eterno de “inocente” de um lado e “culpado para sempre” do outro. O próprio caso do presidente Lula mostra que uma pessoa pode ser condenada, cumprir pena e, anos depois, ter tudo anulado por decisão do Supremo. Do ponto de vista técnico, nada impede que, no futuro, se discuta, por exemplo, uma revisão criminal em favor do presidente Bolsonaro, ou até alguma forma de intervenção legislativa. Não estou dizendo que isso vai acontecer, apenas que o sistema jurídico admite essa possibilidade.
Quanto às diferenças estruturais entre os casos, eu resumiria em três pontos:
- 1. O caminho do processo:
- Lula foi processado e condenado na primeira instância, em Curitiba, com confirmação no TRF-4, depois discussão no STJ e, por fim, no STF, até que as condenações foram anuladas.
- Bolsonaro foi processado diretamente no STF, como réu originário, sem passar por juiz de primeiro grau nem por tribunal intermediário.
- 2. A natureza das acusações:
- Nos processos da Lava Jato, Lula respondia principalmente por crimes comuns previstos no Código Penal, como corrupção e lavagem de dinheiro, ligados a contratos e vantagens indevidas.
- Na Ação Penal 2668, Bolsonaro responde por crimes enquadrados na legislação que tutela o Estado Democrático de Direito. O STF entendeu que houve tentativa de golpe de Estado, abolição violenta da ordem democrática, organização criminosa e outros delitos conexos aos episódios de 8 de janeiro.
- 3. O momento processual de cada um:
- Lula já passou por uma fase de condenação e cumprimento de pena, que depois foi revertida, e hoje não tem condenações criminais válidas nesses casos.
- Bolsonaro está, agora, na fase em que Lula já esteve: condenado a uma pena alta, em execução, com instrumentos excepcionais ainda possíveis, como revisão criminal, mas com o processo, em tese, encerrado.
Então eu não colocaria como “um é inocente e o outro é culpado”. Eu diria: são casos diferentes, em estágios diferentes da vida processual, e a experiência brasileira recente mostra que decisões muito duras podem vir a ser revistas, para qualquer lado.
Uma das argumentações de quem faz essa comparação é sobre o foro privilegiado. O STF fez um entendimento de que Bolsonaro ainda teria foro. Pode explicar esse entendimento, sobre o foro e sua visão a respeito?
Aqui a chave é entender a tese geral do STF sobre foro por prerrogativa e depois ver como ela foi aplicada ao caso concreto do ex-presidente Bolsonaro.
Em 2018, no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937, o STF restringiu o foro por prerrogativa: passou a valer apenas para crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções. Mais recentemente, o próprio Supremo firmou o entendimento de que, se o crime foi praticado no cargo e por causa do cargo, esse foro se mantém mesmo depois do fim do mandato, ainda que o inquérito ou a ação penal só comecem depois que a pessoa deixou o cargo.
No caso Bolsonaro, a maioria do STF aplicou essa lógica dizendo, em síntese, o seguinte:
– a suposta trama golpista teria começado quando ele ainda era presidente;
– esses atos estariam ligados ao exercício da Presidência, envolvendo uso da estrutura do cargo, ataques ao sistema eleitoral, pressão sobre instituições e não reconhecimento do resultado das eleições;
– havia ainda conexão com outros investigados com foro no STF e envolvimento direto das sedes dos Poderes, inclusive o próprio Supremo.
A partir daí, o Tribunal concluiu que, se os fatos centrais são funcionais e começaram no exercício da Presidência, a competência é do STF, e ela se mantém mesmo após o fim do mandato.
Do ponto de vista teórico, eu vejo essa tese com dois lados principais:
De um lado, ela tenta evitar uma prática comum de “ganhar tempo” com a mudança de foro após o fim do mandato, empurrando processos para a primeira instância para praticamente recomeçar tudo.
De outro lado, ela reforça uma função histórica do foro por prerrogativa, que é evitar que um ex-presidente da República, que inevitavelmente desagrada grupos políticos e cria muitos adversários, fique vulnerável a decisões isoladas de um juiz de primeira instância em determinada localidade.
Eu entendo que o mínimo que se pode garantir a um ex-chefe de Estado, em matéria penal, é um julgamento colegiado, em órgão de cúpula. Não é um privilégio da pessoa; é uma proteção do cargo e, em alguma medida, da estabilidade institucional.
Isso, claro, não afasta o debate legítimo. Há juristas – e ministros, em votos vencidos – que entendem que o caso de Bolsonaro deveria ter começado na primeira instância, tal como os processos de Lula na Lava Jato. Essa é uma discussão importante sobre alcance do foro e juiz natural, que deve ser feita sem paixões partidárias. Mas hoje a tese que prevalece no Supremo é essa: crimes funcionais permanecem no STF mesmo após o término do mandato.
Qual o impacto na velocidade de tramitação e de recursos quando um processo já começa no Supremo?
O impacto é muito grande. Quando um processo nasce no Supremo, ele queima várias etapas do caminho tradicional de um processo penal.
No modelo clássico, que foi o das ações contra Lula na Lava Jato, o fluxo é:
- juiz de primeira instância;
- tribunal de segunda instância (TRF ou TJ);
- eventualmente STJ;
- eventualmente STF.
Em cada degrau há possibilidades de recursos, reexame de provas, discussão de nulidades. Isso torna o processo mais lento, mas também oferece vários filtros sucessivos de controle, o que permite corrigir injustiças. No próprio caso Lula, no final desse caminho, o STF reconheceu problemas de competência e de parcialidade e anulou as condenações.
Quando o processo começa no STF, como no caso de Bolsonaro, o desenho muda. O Supremo atua ao mesmo tempo como juízo de instrução e de julgamento colegiado e, depois, os recursos ficam basicamente limitados a embargos internos na própria Corte. Isso encurta muito o trajeto.
E no caso daqueles condenados no 8 de janeiro. Por que esses processos foram no Supremo?
Os casos do 8 de janeiro chegaram ao Supremo por uma combinação de fatores: competência, conexão e natureza dos fatos.
Primeiro, porque os ataques foram dirigidos diretamente às sedes dos Três Poderes, incluindo o próprio Supremo Tribunal Federal. O Regimento Interno do STF prevê competência para crimes cometidos nas suas dependências e, além disso, a Constituição já atribui ao Tribunal um papel central na proteção das instituições democráticas.
Segundo, desde o início havia investigados com foro por prerrogativa de função – parlamentares, autoridades federais e outros agentes que, em tese, seriam julgados originariamente pelo STF. A Corte, então, entendeu que, para evitar decisões contraditórias e fragmentação processual, poderia também julgar os demais participantes por conexão, ou seja, pelo vínculo entre as condutas, com base nas regras do Código de Processo Penal.
Terceiro, o STF passou a tratar esses eventos como crimes multitudinários e como atentados ao Estado Democrático de Direito, e não apenas como atos de vandalismo ou depredação de patrimônio público. Na visão majoritária, fazia sentido manter o núcleo desses processos sob sua jurisdição porque o próprio Tribunal era vítima institucional e porque havia uma articulação mais ampla, que ultrapassava a simples presença física nas manifestações.
Isso não quer dizer que todos os casos tenham ficado em Brasília. Ao longo do tempo, o Supremo foi desmembrando e remetendo à primeira instância do Distrito Federal situações consideradas menos graves ou com participação periférica. Mas os réus apontados como principais – organizadores, financiadores ou liderança desses atos – permaneceram sendo julgados diretamente no STF.
Houve, realmente, “benesses” e vantagens para Lula, como estão pregando alguns bolsonaristas? Bolsonaro teve alguma possibilidade retirada, na ampla defesa, por exemplo?
Eu costumo responder essa pergunta tentando tirar o viés de torcida e voltar para o plano técnico.
No caso de Lula, o que alguns chamam de “benesses” foi, na verdade, o resultado de decisões do próprio STF reconhecendo ilegalidades processuais graves. O Supremo afirmou, em síntese, duas coisas: que a 13ª Vara Federal de Curitiba não era competente para julgar determinados fatos e que houve parcialidade do juiz que conduziu o processo. Esses fundamentos não são “privilégios pessoais”; são regras que valem para qualquer réu: ninguém pode ser julgado por juiz incompetente ou parcial.
No caso de Bolsonaro, a narrativa de seus apoiadores é de perseguição e de supressão da ampla defesa. Do ponto de vista formal do processo, porém, o que se observa é que a defesa teve acesso aos autos, pôde se manifestar, apresentar provas, memoriais, sustentações orais e interpor os recursos cabíveis dentro da estrutura do STF. As alegações de cerceamento foram examinadas pelo Tribunal e rejeitadas pela maioria, sob o argumento de que não houve limitação formal às garantias de defesa.
E aqui eu faço uma observação em primeira pessoa: eu mesmo fiz questão de acompanhar presencialmente as sessões do STF relacionadas a esses julgamentos, na condição de presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia do Conselho Federal da OAB, por determinação do presidente nacional da Ordem, Beto Simonetti, e do presidente da OAB-GO, Rafael Lara. O objetivo era justamente verificar se havia algum tipo de violação às prerrogativas da advocacia ou à ampla defesa, tanto em relação à defesa do presidente Bolsonaro quanto dos demais réus. Do que pude presenciar, os advogados tiveram condições concretas de exercer a defesa, com acesso aos autos, tempo de fala e espaço para atuação técnica.
Isso não significa que o modelo seja perfeito ou imune a críticas. As críticas mais sofisticadas que eu vejo hoje não se concentram tanto na ausência de ampla defesa, mas em temas como competência do STF para atuar como juízo de origem, extensão da conexão para atrair réus sem foro e concentração de poderes na figura do relator.
Então, de forma direta: falar em “benesses” a Lula simplifica demais o que foram decisões de controle de legalidade e de imparcialidade do processo; e dizer que Bolsonaro não teve ampla defesa, olhando para o rito que foi adotado no STF, também não me parece correto. O debate jurídico mais sério está em como é estruturado esse modelo de julgamento e qual é o alcance adequado da atuação penal do Supremo.
Há semelhanças nos dois casos?
Há semelhanças, sim, mas não exatamente na forma como normalmente aparecem no debate mais apaixonado. A primeira semelhança é bem objetiva: estamos falando de dois ex-presidentes da República sendo julgados por fatos supostamente ocorridos no exercício do mandato. Isso, por si só, já dá uma carga institucional enorme aos processos e coloca o Poder Judiciário, especialmente o STF, sob forte escrutínio político e social.
A segunda semelhança é o tipo de discussão jurídica que os casos geram. Nos processos de Lula, discutiram-se juiz natural, competência territorial, parcialidade e o alcance da operação Lava Jato. Nos processos relacionados a Bolsonaro e ao 8 de janeiro, discutem-se foro por prerrogativa, competência originária do STF, crimes multitudinários, limites da atuação do relator e do próprio Supremo como juízo penal de primeira e, na prática, única instância para alguns réus.
Há também uma semelhança do ponto de vista político: em ambos os casos, uma parte da sociedade fala em perseguição e em lawfare, enquanto outra parte enxerga as decisões como afirmação da responsabilidade de autoridades de alto escalão. Em momentos diferentes, tanto o campo ligado a Lula quanto o campo ligado a Bolsonaro já se viram criticando ou defendendo o STF, o Ministério Público e a Polícia Federal. Ao mesmo tempo, há diferenças relevantes na situação atual de cada um: Lula, hoje, está sem condenações criminais válidas naqueles processos e com seus direitos políticos restabelecidos; Bolsonaro, hoje, está cumprindo uma condenação penal definitiva, proferida pelo STF, a 27 anos e 3 meses de prisão.
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