Poema mal dito e o adeus em versos livres

10 julho 2025 às 19h15

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eM Verso
Vai piorar muito antes de melhorar,
mas a vida tem dessas.
Retratos rasgados,
lembranças jogadas fora,
um poema esquecido,
mas um amontoado de memórias
que marcaram a minha vida.
Queria me lembrar
daquele poema esquecido.
Mal dito!
Encarando a dura realidade,
às vezes no cara a cara,
em outras
de olhos arregalados, engrandecidos,
orgulhosos e envergonhados —
mas sempre, sempre ouvindo fundo
o coração.
Refletia no céu,
às vezes com tantos medos.
Um carrinho confortável,
uma amizade onde até as verdades
podiam ser recitadas
diante do gigante guerreiro.
É que eu pareço AC/DC,
mas sou Pink Floyd
enquanto gritam aqui fora.
O conto nunca terminado,
o romance inacabado,
e o maldito do poema esquecido.
Li, reli, recitei tantas vezes.
Mas não lembro.
Lembro da igrejinha,
branquíssima.
Num dia quente,
de céu azul como água de mar.
Do caminho pra casa,
com as bandeirolas amareladas,
quase prontas para enfeitar as vistas
e depois o chão.
Na igreja,
o padre sabe com quem fala,
por isso às vezes
toca profundamente.
Já no meio da noite,
orgulho —
o céu estrelado
foi substituído pelas nuvens.
Passei a olhar
também para outras coisas
mais bonitas.
Lembrei das lentes sujas
e da saudade
de apostar com cartas.
Esqueci do maldito poema.
Lembro que sorri,
corei as bochechas marronzinhas
e me deu um suador.
Me derreti.
Me empolguei.
Me arrisquei, eu sei.
Consciente do risco de uma batida,
mas fiel ao coração.
Adorava aquela emoção:
das trocas obscenas,
das noites de cinema,
do toque sem malícia,
do beijo pra carinho,
no cantinho escondidinho.
Fiquei enciumado,
envergonhado,
apaixonado.
O poema mal dito falava de amor.
Tá engavetado,
foi apagado,
reescrito
e amassado.
Mas inquieto como a Lua,
de um lado para o outro,
e as estrelas,
que correm noite adentro,
fui amaldiçoado.
Não lembro.
Sei o que diz,
como diz,
onde tocou,
onde doeu.
Esse poema nunca foi ouvido,
nem lido,
impresso,
riscado
ou escrito.
Menos ainda imaginado.
Pensaram nele,
desacreditados
e até com tédio.
Vesti o guerreiro,
e fui à luta.
Ganhei o mundo,
mas perdeu a graça.
Me desmontei,
me destruí,
me soterrei.
Cheguei ao fim.
Aí eu me refiz:
tijolo sobre tijolo,
papel sobre papel,
palavras após a outra.
E quando vi,
cheguei aqui.
Nem tão perto do fim,
e nem tão longe também.
Não houve adeus,
nem há de haver.
O tempo passou tão rápido
que a Lua deixou o céu,
dando lugar às estrelas —
dessa vez sem nuvens,
só as formas:
gente,
bicho
e o que mais vier na cabeça.
Mas qual a melhor forma
de colocar um foguete no céu
pra ver as estrelas de perto,
a borda do mundo,
à beira do mar?
Gasolina e fogo.
Mas o amor,
quando é sincero,
zomba do seu inimigo.
Poema maldito.
Passou a Lua,
e as estrelas,
ela tão bela.
Ficaram alguns papéis dobrados.
Passou um dia,
um ano inteiro,
meios rabiscos
e as verdades.
Distantes a oito léguas,
separados em poucos graus,
suas cartas se amontoarão.
Ficarão os poemas,
naqueles versos maus escritos.
Eu escrevo porque preciso.
Se não precisasse,
aí não viveria mais.
Enquanto a vida me encarar com desafios,
dobrarei as cartas apostadas.
Talvez assim
saia finalmente
mais algumas páginas
daqueles rabiscos
e de contos mal ditos.
Talvez assim eu aprenda,
com o balanço do mar
e o ranger da madeira
e o barulho das ondas quebrando.
Xuaaaa.
É hora de dizer a deus
É hora de dizer a deus.
Encaixotei os livros, tirei tudo da tomada, me despedi dos amigos,
joguei fora o que não prestava mais
Era hora do adeus
Separei as roupas para doação, abracei uma última vez e pedi perdão
Respirei fundo e disse adeus, mas não fui
Fechei a janela, mas deixei tudo a mostra. Escrevi uma carta, já que era a hora de dizer adeus
Me lembrei que havia esquecido de tanta coisa que ficou pra trás
Lembrei do tempo que não volta mais e do que nunca mais virá
Eu disse adeus, e desta vez foi pra valer. Vou levar apenas a roupa do corpo
como quem carrega uma mala pesada cheia de memórias
Vou levar um livro, isqueiro, meus escritos e quem sabe, algumas histórias
Uma última vez eu disse adeus. E chorei
Sabia que não diria mais, sabia até que queria mais, mas era hora
Respirei fundo e disse, até breve. Que em uma próxima seja leve, que numa próxima você me leve contigo ao invés de dizer adeus
Mas não houve, adeus
E Deus disse: “que haja luz”
Mas houve escuridão
Ouviu-se o silêncio, um estrondo e de repente um brilho, e tudo ficou tão claro, como um dia depois do outro
No corpo, um terno escuro, gravata prateada, mochila nos ombros
E os cabelos bagunçados
As mãos entrelaçadas uma à outra, como quem está nervoso por um primeiro encontro
Mas houve apenas a quietude, rompido pelo som do adeus
Mundo mundo vasto, mundo. Mais vasto ainda é meu coração
Onde hei de chegar, não alcançarão os passos meus
Mundo, mundo, vasto mundo. Olha só o que me deu
Aperto forte os joelhos contra o peito como quem abraça a saudade
A saudade aperta aperta forte
o peito como quem já de joelhos implora por perdão
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