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Eurípedes Leôncio

Especial para o Jornal Opção

A crítica a seguir visa demonstrar, resumidamente, as possibilidades de leitura do texto literário, onde intertextualizados revelam relações históricas, culturais, inovações estéticas e de linguagem, sob o prisma do comparativismo entre dois grandes autores, Miguel Cervantes, Classicismo espanhol e Carlos Drummond, Modernismo brasileiro.

A abordagem temática, a forma narrativa, quer na prosa, quanto na poesia, transformaram os dois escritores e suas obras como parâmetros revolucionários, ainda que separados por mais de 500 anos. Assim, justifica-se o estudo da literatura comparada ao revelar as relações entre autores e seus textos, nas duas literaturas, comprovando o seu conteúdo não estaque e regionalizado, mas amplo, Universal, na dinâmica temporal. Optou-se pelo suporte crítico e filosófico quanto a análise em questão, principalmente a de Michel Foucault.

Um olhar identificador de dois tempos

A cultura não pode inventar para si um padrão de identidade, sem que a somatória de valores étnicos, sociais, históricos, artísticos, aclopem a sua formação de vida. Cultura não é exclusão, mas inclusão de valores intrínsecos e extrínsecos ao tempo e ao espaço que se manifestam.

O Renascimento foi mola propulsora para novas descobertas, vertentes criadoras, não um formalismo-racional permanente, visto que a verdade de cada momento só a ela pertence.

O emaranhado de dúvidas que sombreava a época medieval motivou o surgimento do cogito cartesiano, onde o racionalismo aparece entre nuvens negras de tortuosos caminhos, onde viandantes tateiam na busca de uma luz, um horizonte próximo, pois se sentem descartados pelas conveniências econômicas e políticas afetando sobejamente a arte e a cultura.

O reflexo desse tempo secular provocara a proposta de um novo saber que mudou o rumo da dialética milenar no campo das ideias e do espírito científico, com reflexo nas artes, na literatura. Novas descobertas, novos métodos colocaram em dúvida o que se sabe e o que se produz com real valor. As pesquisas, os estudos de mestres do passado encontraram críticas e rupturas, explodindo contra as verdades e normas que foram alardeadas naquela época.

Nesse piscar do tempo, novas propostas surgiram reabilitando a palavra, a linguagem, como “morada do ser”. Sujeito e objeto, aquele que conhece e o que é conhecido tornam-se centro das atenções para evitar a decadência do ser e seu estado de expiação.

Miguel de Cervantes: escritor espanhol | Ilustração: Reprodução

Comparativismo, criatividade e novo saber

“Dom Quixote”, de Miguel Cervantes, foi publicado em 1605, início do século. XVII, e depois de longo interstício temporal, o poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade publica “As Impurezas do Branco”, em 1973, onde retoma o personagem de Cervantes sob o olhar surrealista, concretista, dentro das inovações estéticas do Modernismo. A questão da linguagem nos citados autores provocara uma verdadeira revolução ao unir as duas pontas do tempo, trazendo para o hoje um tema e uma mensagem que não se esgota: o personagem quixotesco, picaresco, no caso do espanhol e do “gauche”, no caso de Drummond.

Verifica-se um novo tratamento concedido ao espaço, e uma fragmentação temporal, além da ordem sintática, desconstruindo os conceitos formais no campo gramatical, num envolvimento do leitor a decifrar tais enigmas, com isso, a narrativa, aparentemente desorganizada, assim como o poema de Drummond, surpreende mesmo os mais ferrenhos críticos. O poeta mineiro apreende e interpreta o mundo, e o leitor se vê tentado a reinterpretá-lo, criação e recriação

A própria linguagem fala e dá a imagem dos dois grandes escritores, quer na prosa, quer no poema. Nesse intervalo temporal, nada foi combinado, mas intertextualizado, numa somatória cultural, histórica, social, literária. Tanto que a narrativa de Dom Quixote se torna verdadeiramente a grande surpresa fora dos modelos classicistas, desde a apresentação e ação do Fidalgo Dom Quixote, engenhoso já nos primeiros capítulos:

“E assim, sem a ninguém dar parte de sua intenção, e sem que ninguém o visse, uma manhã antes do dia, que era um dos encalmados de julho, apercebeu-se de todas as suas armas, montou-se no Rocinante, posta a sua celada feita à pressa, embraçou a sua adarga, empunhou a lança, e pela porta furtada de um pátio se lançou ao campo, com grandíssimo contentamento e alvoroço, de ver com que felicidade dava princípio ao seu bom desejo” (Dom Quixote, Cervantes, página 34, Editora Nova Cultural, São Paulo, 2003).

O pensador e crítico francês Michel Foucault escreve com entusiasmo sobre a ruptura e ao mesmo tempo renovação que representou Cervantes e sua obra:

“Dom Quixote é a primeira das obras modernas, pois que aí se vê a razão cruel das identidades e das diferenças desdenhar infinitamente dos signos e das similitudes: pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura; pois que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação.” (As Palavras e as Coisas, Michel Foucault, 9 ed. Martins Fontes, São Paulo, 2009.)

É de se notar que com a revolução de Dom Quixote, no final do  Classicismo,  no início do séc. XVII, só se obteve resposta acolhedora nos séculos XIX e XX, com o Romantismo e Modernismo, colocando o primado da imaginação criadora, da individualidade, da fantasia e sobretudo a inovação surrealista e para preencher este interstício, o poeta Carlos Drummond de Andrade, retrata poeticamente Dom Quixote, para acompanhar os desenhos de Portinari inseridos no livro de poemas “As Impurezas do Branco”,1973, reconstruindo o universo imaginário de Cervantes, valorizando seu famoso texto e o personagem, a partir de uma riqueza criativa, estilística na relação intertextual:

drummond de Andrade poema 1

      Nos dois grandes autores, prosa e poesia redescobrem a palavra e o ser e os colocam como realidade e fantasia, mesmo num mundo com pensamento científico, nas duas épocas, mas se revelando em sonhos e loucuras para os olhos da razão. Cervantes não foi o escritor solitário, como o seu famoso personagem e Carlos Drummond captou a mensagem, a escreveu no mesmo cunho surreal dentro das inovações estéticas do modernismo, explorando o espaço vazio, valorizando a palavra metaforicamente encaixada, dento da verticalidade e horizontalidade que acompanha o herói no espaço físico e na ponta da lança, espetando o mundo, às convenções e os dois, num encontro que o tempo não sepultou, os consagraram como os maiores escritores, no tema e no caminho anunciado, revelando o verdadeiro ser humano, não mitificado, mas “gauchecamente quixotizado” e na conclusão de Foucault sobre o poeta:

“[…] o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersas. Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enunciar, apaga na sua linhagem a distinção dos signos.” (As Palavras e as Coisas, p. 68).

Nos dois casos, do prosador e do poeta, o crítico justifica a criatividade e sua valoração que o tempo conduz, na espreita da captação em nova linguagem, sobre um mesmo tema, onde o ser humano é a razão maior da literatura e seu consequente comparativismo, uma prova da dinamicidade.

Eurípedes Leôncio é professor, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-GO, membro da UBE e Icebe-GO e da Academia de Letras e Artes de Brasília.