“Alerta, alerta, perigo, se proteja.” Essa é a primeira lição que atravessa gerações de mães para filhas no Brasil e no mundo. Desde o berço, meninas aprendem que a vida não será vivida em liberdade plena, mas em constante vigília. Na infância, o controle se disfarça de cuidado: a roupa escolhida, o tom de voz, a forma de brincar. Na adolescência, os avisos se multiplicam: não voltar sozinha da escola, não beber demais, não confiar cegamente. Na vida adulta, a pressão se intensifica: no trabalho, na rua, em uma festa, até dentro de casa. Sempre há um risco, sempre há uma ameaça. E esse risco, invariavelmente, tem um rosto masculino.

Ao longo da história da humanidade, a sociedade construiu um manual cruel de sobrevivência feminina. Ser mulher é viver sob o peso de “os perigos do mundo”, sempre lembrados por pais, professores, amigas e vizinhos. A cada passo, a cada escolha, a culpa é preparada como sentença: se algo acontecer, a responsabilidade será dela. Afinal, dizem, “sua culpa, sua provocação”.

Mas como explicar que mesmo com todos os alertas, com todas as estratégias de autoproteção, mulheres continuam sendo brutalmente agredidas, esfaqueadas, espancadas e assassinadas? O que falha nesse sistema que obriga a vítima a se proteger, mas nunca obriga a sociedade a transformar os agressores?

O ciclo que não cessa

Na última quarta-feira, 13, uma mulher de 51 anos foi atacada dentro de casa, em Ibiapina, no Ceará. Dormia quando o agressor, um homem que conheceu ao ajudar a mãe dele em tarefas domésticas, invadiu sua casa e a golpeou com socos e facadas. Ela sobreviveu, mas carrega as marcas de uma violência que não deveria existir.

Dias antes, em Natal, no Rio Grande do Norte, o país acompanhou as imagens de Juliana Garcia dos Santos. A jovem foi espancada com 61 socos no rosto dentro de um elevador. O agressor, Igor Eduardo Pereira Cabral, ex-jogador de basquete de 29 anos, foi denunciado por tentativa de feminicídio. Juliana precisou de uma cirurgia de reconstrução facial de mais de sete horas.

No Pará, mais uma história: uma adolescente de 15 anos foi puxada pelos cabelos, levada à rua e esfaqueada repetidas vezes pelo ex-namorado de 19 anos, Jacó Gomes Pereira. O ataque, em Igarapé-Açu, ocorreu no começo de agosto.

A lista não termina aí. Em Pirenópolis, em Goiás, uma mulher de 33 anos foi golpeada mais de 20 vezes pelo namorado em uma pousada. Sobreviveu por pouco. Já na Irlanda, o brasileiro Bruno Rodrigues da Costa, natural de Anápolis, foi preso após espancar brutalmente a namorada Raquel Maciel, que vive no país há 15 anos.

Histórias diferentes, mas com a mesma raiz: a brutalidade contra a mulher não é exceção, é regra.

O Brasil se orgulha da Lei Maria da Penha, considerada uma legislação avançada no combate à violência doméstica. No entanto, na prática, os mecanismos de proteção falham. As medidas protetivas são descumpridas, denúncias não garantem segurança, investigações se arrastam. E o resultado disso é perverso, cada novo crime parece inspirar o próximo, como se a impunidade fosse combustível para a violência.

E assim seguimos: manchetes se acumulam, estatísticas crescem, vidas femininas são interrompidas. E nos perguntamos, então: viver é isso para uma mulher? Crescer em medo e alerta, amar em alerta, dormir em alerta, morrer em alerta?

Uma cultura inteira da desresponsabilização

“Nem todos os homens são ruins”, repete a sociedade, como se essa afirmação fosse consolo suficiente. Mas onde está a contrapartida dos que não são? Onde está a responsabilidade coletiva de construir um mundo seguro para meninas e mulheres?

Enquanto se insiste em culpar a vítima, pela roupa, pela confiança, pelo amor, pela ingenuidade, esquece-se de questionar os verdadeiros responsáveis. O perigo não é uma entidade abstrata. Não é o “bicho papão”. O perigo tem nome, tem rosto, tem CPF. O perigo é um homem.

E, no entanto, homens seguem pouco cobrados a refletirem sobre seus comportamentos, a educarem seus pares, a intervirem em situações de violência. A omissão é tão criminosa quanto a ação. A cultura patriarcal segue sustentando a ideia de que a mulher precisa se proteger sozinha, enquanto o homem continua livre para agredir.

A cada feminicídio, a cada tentativa brutal de assassinato, uma sociedade inteira é colocada diante do espelho. Mas até agora, a imagem refletida permanece a mesma: um país que normaliza a violência contra a mulher.

Mudar exige mais do que leis no papel. Exige punições rápidas e que sirvam de exemplo. Exige educação de base que rompa estereótipos de gênero. Exige campanhas permanentes de conscientização. Exige que homens bons não sejam apenas “nem todos”, mas sejam parte ativa da mudança.

Já não dá mais para sustentar, para aguentar, para se perguntar até quando? Porque essa é a pergunta que já ressoa em cada rosto desfigurado, em cada corpo esfaqueado, em cada menina que nasce em uma sociedade que, até hoje, insiste em girar do avesso quando se trata de mulheres.

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