Enquanto uma senhora se esforça para aprender a ler depois dos 60, “de carona” com o neto nas aulas remotas, dezenas de milhões de crianças sem internet não têm escola desde o ano passado. Enquanto isso uma deputada patriota sugere Censo virtual

A história de Marlene Hinckel, de 63 anos, é daquelas de fazer gente empática chorar já no começo e que leva a entender por que é necessário desenvolver por estas paragens um sentimento realmente patriótico. Marlene mostra que o Brasil profundo merece isso, apesar de gente como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), a “musa” do impeachment de Dilma Rousseff.

Marlene Hinckel, de 63 anos, e o neto Eduardo, de 7: aprendendo juntos | Foto: Divulgação

Marlene, patriotismo, Janaína. Vamos unir essas pontas até o fim destas linhas, por enquanto começamos com a história da senhora que, apesarde trabalhar desde pequena, casar-se ainda mocinha e ter três filhos, nunca deixou de sonhar em aprender a ler e escrever. A pandemia, trágica para milhões de brasileiros, deu-lhe essa chance aos 63 anos. A pausa está servindo para ela se alfabetizar, pegando carona nas aulas virtuais do neto Eduardo, de 7 anos.

É que Marlene morava sozinha, mas a filha Karina Hinckel resolveu deixar o emprego na área de enfermagem para cuidar dela mais de perto. Dona Marlene trocou a tristeza do isolamento por aulas de alfabetização com o filho único de Karina e Rinaldo Henrique, um físico que viaja bastante.

Ao jornal Correio Braziliense Marlene explicou como aproveitou a oportunidade de ouro para realizar o sonho de vida com as aulas online do neto. “Pensei comigo: o Eduardo, com 7 aninhos, está aprendendo. Vou aprender também. Hoje, estou conseguindo entender as coisas. Ele está lendo cada dia melhor e logo aprendeu a ler e escrever. Eu ainda estou tentando. As primeiras palavras foram dado, dia, lua, dedo e casa”, recorda.

É bom ressaltar que Marlene já tinha encaminhado seu desejo. Antes da pandemia, frequentava as aulas do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) na Escola Municipal Batista Pereira, em Ribeirão da Ilha (SC). A família admite que o EJA foi fundamental, principalmente pelo apoio das professoras para ela não desistir.

Não sei como isso é para você, leitor, mas me soa muito “nossa”, como Nação, essa história. Desigualdades desafiadas, superação de dificuldades, família se ajudando, o jeitinho brasileiro usado da melhor forma. O que é patriotismo a não ser ter o brio necessário e uma visão coletiva nacional de que é preciso vencer batalhas como essa para crescer como sociedade?

A história de Marlene é bonita e tem “final feliz”. Só que nem todas os lares poderiam repetir, na pandemia, o que está ocorrendo na casa dos Hinckel em Santa Catarina. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, um em cada quatro brasileiros ainda não tem acesso à internet. O que significa que, em tempos de pandemia, não só os idosos, mas milhões de crianças em idade escolar simplesmente estão sem qualquer condição de aprendizado.

Diante do contexto e da crise sanitária, o governo federal precisaria agir para minorar os prejuízos à educação básica, correto? Ainda mais uma gestão cuja palavra de ordem é patriotismo, certo? Pois, no mês passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou integralmente o projeto de lei que previa internet grátis a alunos e professores da educação na rede básica, em razão da necessidade do ensino remoto durante a pandemia. A alegação? O impacto orçamentário. Impacto orçamentário que não pesou para distribuir emendas para o centrão, entendido? Patriotismo, sim, mas só para fins publicitários e de campanha eleitoral, talquei?

Enquanto isso, o Brasil está também sem Censo. Vergonhosamente, o governo anunciou que não fará o levantamento – já atrasado em um ano pela pandemia – em 2021. Não saberemos exatamente quantas Marlenes Hinckel no País continuarão, literalmente, sem a chance remota de se alfabetizar. Nem quantos Eduardos estarão sem condições de iniciar a vida escolar.

E Janaína Paschoal, o que tem a ver com isso? É que, depois do anúncio do governo, o qual apoia, a deputada que rodou loucamente a bandeira do Brasil em um discurso fora-Dilma deu como solução que o Censo… fosse feito pela internet. Leia com os próprios olhos:

“Soluções fáceis para problemas complexos” nem seria o comentário adequado. Talvez, “gente sem senso para questões de Censo”. Sim a @JanaínaDoBrasil não conhece o Brasil. O Jair patriota desconhece o Brasil. Enquanto isso, Marlene e Eduardo aprendem a ler desafiando esse povo e tendo mais sorte do que outros 46 milhões de compatriotas, estagnados no tempo, limitados pelas restrições da realidade atual e alijados do mundo virtual.