O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a desapropriação de terras onde sejam identificados incêndios criminosos ou desmatamento ilegal, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 743, uma ação que visa endurecer o combate às queimadas no Pantanal e na Amazônia. Com impactos diretos sobre o setor agropecuário, a medida é vista por alguns especialistas como um avanço para a preservação ambiental, enquanto outros alertam para os riscos de insegurança jurídica.

Em entrevistas ao Jornal Opção, representantes do governo de Goiás e especialistas ambientais ofereceram suas análises detalhadas sobre os efeitos da decisão.

Para o advogado Mauro Zica Neto, presidente da Comissão de Regularização Fundiária, “a decisão é frágil” por extrapolar o objeto originalmente debatido e invadir competência legislativa. “Ela foi tomada monocraticamente, ou seja, sozinho, no âmbito de um cumprimento de sentença de uma ADPF”, afirmou.

Neto ressalta que a função da ADPF é promover a mediação entre os Poderes, obrigando o Executivo a cumprir o que está na Constituição. “Essa ação foi analisada, o colegiado decidiu de alguma forma […] e ele ampliou, na minha visão, o que tinha sido decidido colegiadamente, ou seja, uma decisão frágil”.

Segundo ele, ao determinar que a União desaproprie terras com ocorrências ambientais quando houver culpa do produtor, Dino extrapolou o objeto da ação e invadiu competências do Legislativo. “Essa decisão, à primeira vista, pode ser interpretada como uma defesa ao meio ambiente […], mas na prática traz insegurança jurídica”. Para Mauro, a ausência de critérios objetivos pode culminar em “injustiças, arbitrariedades e, logicamente, punir em excesso aqueles que têm que proteger o meio ambiente”.

Marco no cumprimento da Constituição

Por outro lado, o procurador federal em Goiás, ambientalista e membro do Observatório de Políticas Socioambientais do Estado, Bruno Benfica Marinho, enxerga a decisão do STF como um marco no cumprimento da Constituição. “Sem dúvidas representa um avanço. Essa decisão não é um fato isolado, mas sim fruto de um processo de sedimentação jurisprudencial ocorrido a partir dos debates junto aos operadores do Direito e nos Tribunais brasileiros.”

Segundo Bruno, o artigo 186 da Constituição determina que a função social da propriedade rural exige, entre outros aspectos, a utilização adequada dos recursos naturais e a preservação ambiental. “A Constituição é clara ao dizer que o imóvel rural que não observar as normas de preservação do meio ambiente não estará cumprindo a sua função social.” Bruno acredita que a possibilidade de desapropriação pode atuar como medida efetiva contra práticas criminosas: “O infrator ambiental saberá que poderá ter o seu imóvel rural desapropriado.”

Na mesma direção de Mauro Neto, a advogada Márcia Alcântara, especialista em Direito Agrário e do Agronegócio e integrante do escritório Celso Cândido de Souza Advogados, também alertou para as brechas jurídicas da decisão. “O ministro fundamentou a sua decisão com fundamento nos artigos 184 e 186 da Constituição da República. Entretanto falta-lhes preceitos de solidez”.

Ela destaca que faltam evidências de que as queimadas nessas regiões sejam majoritariamente criminosas, bem como provas consistentes que sustentem a medida. “Para ser sólida, seria necessária a confiabilidade perante o Judiciário”. A advogada lembra que decisões do STF em ADPFs possuem efeitos vinculantes e valem para todos, o que exige, em sua opinião, um rigor ainda maior na fundamentação.

Outro ponto que causa apreensão para Márcia é a falta de clareza sobre como será comprovada a responsabilidade do proprietário. “Quem vai fiscalizar? Quem julga? Quais são os parâmetros? Isso não está claro. As omissões na decisão abrem espaço para interpretações perigosas”, advertiu. Ela ressalta que, ao se tratar de crimes imprescritíveis, como os ambientais, o temor é de que as obrigações recaiam sobre atuais proprietários, mesmo quando o dano foi causado por antigos donos.

Sobre a questão das dúvidas da aplicação da decisão, Bruno Marinho explica que a desapropriação ocorrerá via processo judicial, com pleno direito de defesa. Para ele, “a segurança jurídica da desapropriação estará amparada pelo crivo do Poder Judiciário”.

Em relação à proibição de regularização de terras envolvidas em crimes ambientais, ele avalia que a medida pode combater a grilagem: “Uma prática disseminada na Região Norte é a grilagem, desmatamento e venda posterior das áreas. Trata-se de um ciclo de destruição ambiental trágico e feito em larga escala. Agora com essa decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, essa atuação predatória pelo visto estará com os dias contados”.

Já para Mauro Neto, o Brasil necessita fomentar a regularização fundiária, avançar na aplicação das mais de 27 mil normas existentes e aperfeiçoar a aplicação jurídica, em vez de criar precedentes frágeis. “Na prática, hoje quem define se a terra é produtiva ou improdutiva, ou seja, se tem cumprida a legislação com relação à função social da propriedade, é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), no nível federal. E se ela for improdutiva, é declarada de utilidade pública, e abre-se um procedimento legal”. 

O problema, segundo ele, é que a decisão amplia as possibilidades de desapropriação sem garantir o direito à ampla defesa e ao devido processo legal. “A Constituição prevê que quem não cumpre a função social da sociedade poderá ser desapropriado, e o ministro Dino coloca que deverá ser desapropriado. Essa sutileza pode trazer consequências graves e desapropriações injustas”.

A decisão também foi criticada por ter delegado aos estados a responsabilidade pela implementação. “Jogou a bomba para os estados”, como definiu Márcia Alcântara, ao destacar a determinação do STF para que estados da Amazônia Legal e do Pantanal criem mecanismos normativos para impedir regularização de áreas com ilícitos ambientais.

“Se hoje os estados são carentes de contingente tanto na prevenção quanto no combate aos crimes ambientais e queimadas criminosas, não será uma decisão que irá mudar isso”, afirma. Para ela, o ideal seria que o STF determinasse medidas educativas, financiamentos para reflorestamento e apoio direto aos produtores.

Setor agropecuário em Goiás

Para o presidente da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Goiás (Seapa), Pedro Leonardo de Paula Rezende, a realidade goiana difere da preocupação nacional. “Em Goiás não há essa preocupação porque a gente tem a convicção que o produtor rural é o maior interessado em cumprir todas as legislações. O ativo ambiental é um ativo importante, inclusive um ativo financeiro para o produtor rural. O produtor rural não produz sem água.”

Segundo Pedro, a preservação ambiental está intrinsecamente ligada à atividade produtiva. “O produtor rural não tem condição de exercer a sua atividade produtiva sem ter a garantia de que esses ativos ambientais estejam preservados dentro do seu sistema produtivo”, afirmou. Ele ressalta que essa consciência ambiental está disseminada entre os produtores: “O produtor que não estiver consciente da necessidade do cumprimento dessas exigências dificilmente consegue permanecer na sua atividade”.

A advogada Márcia Alcântara pondera que é possível preservar o meio ambiente sem penalizar proprietários que atuam dentro da lei. “A decisão traz ao proprietário a incerteza de se permanecer com a propriedade mesmo sendo produtiva”. E questiona: “A pequena propriedade é impenhorável. Será que, pelo diálogo das fontes, essa propriedade também seria inexpropriável?”

Ambos os advogados convergem em um ponto: é urgente que o Congresso Nacional se debruce sobre o tema, regulamente os limites da decisão e evite que ela se torne um precedente inseguro. “O processo legislativo é um verdadeiro exercício de humildade, de convergência, de diálogo, de debate. Por isso que um tema complexo como esse é muito difícil numa pessoa só decidir por todos o que é o adequado”, alertou Mauro Neto.

O procurador e ambientalista Bruno Marinho, também destaca a importância de combinar a decisão com mais investimentos em fiscalização e tecnologia. “Não podemos esquecer que estamos vivendo tempos de emergência climática, todos os estudos apontam para cenários desafiadores de extremos climáticos. Hoje, com tecnologias de sensoriamento remoto e detecção de focos de calor, temos uma capacidade robusta para detectar queimadas, desmatamentos e também os seus autores.”

O especialista ainda citou estudos que apontam riscos iminentes de colapso hídrico, como o do pesquisador Yuri Botelho Salmona, doutor em Ciências Florestais e professor do Departamento de Ciências Florestais da Universidade de Brasília, que analisou o impacto das mudanças climáticas sobre os rios do Cerrado. Os dados mostram um cenário dramático até 2050, afetando diretamente a agricultura, energia e abastecimento.

Para incentivar boas práticas, o governo de Goiás tem investido em programas de sustentabilidade. O presidente do Seapa cita, por exemplo, linhas de crédito do Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO) Verde, com condições diferenciadas para produtores que adotam práticas sustentáveis. “O produtor que deseja recuperar área degradada tem acesso a taxas de juros reduzidas, a períodos de carência diferenciados e tantos outros estímulos.”

Ele também destacou que Goiás é pioneiro na implementação de uma política de pagamento por serviços ambientais, remunerando produtores que optam por preservar vegetação nativa em vez de suprimi-la legalmente. Além disso, o Estado foi reconhecido como polo de bioinsumos, que têm menor impacto ambiental.

A decisão do STF, embora busque garantir a preservação ambiental, acabou por instaurar um clima de divisão entre os especialistas e produtores. Para Alcântara: “A imposição de medidas drásticas que deixam o produtor rural ‘assustado’ aguça a desconfiança das instituições de classe e não traz segurança jurídica. Deve ser repensada”.

Já Bruno Marinho ressalta que “os órgãos de controle, em especial o Ministério Público Federal e também dos Estados, precisam ser proativos na implementação dessa nova orientação do Supremo Tribunal Federal, quer cobrando a atuação dos órgãos da Administração Pública, como também ajuizando as suas próprias ações civis públicas”. Ele finaliza destacando a importância do cuidado ambiental. “Proteger a natureza é exercício de auto proteção coletiva, pois dependemos da natureza para nos alimentar, ter água, viver e tocar nossos negócios”.

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