No coração da floresta amazônica, Xinã Yura Yawanawá, indígena de 33 anos, iniciou sua trajetória para se tornar pajé. A jornada espiritual acontece na Terra Indígena Rio Gregório, no Acre, e representa um profundo vínculo entre o passado e o futuro do povo Yawanawá. A equipe do portal ICL Notícias esteve no local para acompanhar de perto os cinco dias de rituais, marcados por práticas ancestrais e momentos de intensa conexão com a natureza.

Chegar à aldeia Macuã, onde Xinã vive, foi uma experiência desafiadora. O ponto de partida foi São Vicente, uma pequena vila urbana localizada às margens do Rio Gregório. De lá, uma canoa metálica enfrentou o trajeto de cinco horas pelas águas rasas do rio, que, devido à seca, exigiu manobras precisas para evitar o encalhe. A fumaça das queimadas, comum nessa época do ano, intensificou a sensação de vulnerabilidade e tornou o percurso ainda mais difícil.

A aldeia Macuã é uma comunidade jovem, fundada há apenas três anos, mas carrega um simbolismo poderoso. Com apenas três casas de madeira cercadas por plantações de mandioca e banana, o local mescla a simplicidade da vida na floresta com avanços modernos, como placas solares e internet via satélite. Essa integração permite que a aldeia mantenha suas tradições enquanto se conecta ao mundo exterior.

Xinã Yawanawá é um jovem que transita entre dois mundos. Divide seu tempo entre São Paulo e a Terra Indígena, mas agora decidiu se dedicar à iniciação como pajé. Os pajés desempenham um papel fundamental na cultura Yawanawá: são os guardiões do conhecimento espiritual, da cura com plantas medicinais e dos mistérios da floresta.

A história de Xinã é inseparável das lutas e conquistas de seu povo. Ele nasceu em 1991, ano que marcou a demarcação da Terra Indígena Rio Gregório, um território conquistado após décadas de exploração e violência. Antes disso, sua família e outras comunidades locais enfrentaram condições análogas à escravidão nos seringais, além da invasão de suas terras por projetos de infraestrutura.

Xinã Yura, próximo a uma sumaúma, árvore de importância espiritual para os Yawanawá e Noke Kuin, no Acre, está em sua preparação para se tornar um líder espiritual, conciliando a proteção da floresta com a manutenção das tradições de seu povo (Imagem: Victor Moriyama / Dialogue Earth)

Durante o ciclo da borracha, iniciado no final do século XIX, os Yawanawá foram brutalmente impactados pela exploração do látex. As doenças trazidas pelos colonizadores e as restrições impostas pelos seringalistas quase dizimaram o povo. No século XX, a abertura da rodovia BR-364 agravou a situação, desmatando áreas sagradas e forçando o contato com o mundo exterior em condições desiguais.

Outro golpe significativo veio com a chegada de missionários evangélicos. Eles proibiram práticas espirituais, como os cantos sagrados e o uso da medicina tradicional, além de impor o uso exclusivo da língua portuguesa. “Fomos obrigados a abandonar nossos costumes e a adotar uma cultura que não era nossa”, relembra Shaneini Yawanawá, mãe de Xinã.

A recuperação dessas tradições começou na década de 1980, graças à liderança de figuras como o cacique Nixiwaka Yawanawá. O processo incluiu a reintrodução da ayahuasca, dos rituais de cura e dos festivais espirituais. Essas práticas não apenas revitalizaram a cultura, mas também trouxeram reconhecimento internacional ao povo Yawanawá.

Utilizando o nane preto e o urucum vermelho, extraídos de plantas amazônicas, os Yawanawá criam suas pinturas faciais com significados culturais profundos. Linha superior: Txáü Kamanawá, pajé Pocha Kamanawá, Rãbü Kamanawá. Linha inferior: Xinã Yura, Meyö Kamanawá, Érica Txivã Roni (Imagens: Victor Moriyama / Dialogue Earth).

Hoje, o Festival Mariri, realizado anualmente, é um exemplo de resistência cultural e uma importante fonte de renda para a preservação do território. O evento atrai visitantes do mundo todo, interessados em vivenciar a espiritualidade indígena e apoiar a luta pela proteção da Amazônia.

Ao longo dos anos, a cultura Yawanawá também passou por transformações. Tradições antes exclusivas para homens mais velhos foram adaptadas para incluir mulheres e jovens. As tias de Xinã, Raimunda Putani e Hushahu Yawanawá, foram pioneiras como as primeiras mulheres a se tornarem pajés. Elas abriram caminho para que novas gerações, como Xinã, se tornassem líderes espirituais.

O processo de iniciação de Xinã é uma jornada que combina conhecimento ancestral com experiências transformadoras. Ele teve seu primeiro contato com a ayahuasca aos 16 anos, o que despertou seu interesse pela espiritualidade. Desde então, vem se aprofundando nos ensinamentos dos pajés mais velhos, preparando-se para assumir o papel de curador e guia.

Uma das etapas mais simbólicas dessa iniciação foi o ritual de purificação com kambô, uma secreção de sapo usada para fortalecer o corpo e afastar doenças. Xinã e sua esposa, Érica Txivã Roni, também participaram de banhos medicinais com ervas e receberam pinturas corporais de jenipapo, que simbolizam proteção espiritual.

Outro momento crucial foi a busca pela cobra sagrada, conhecida como vinö ronö. Sob a orientação dos pajés Tani Gaya Kawanawá e Pocha Kamanawá, Xinã foi levado a um buritizal onde essa cobra mística costuma habitar. A vinö ronö, descrita como uma anaconda gigantesca, é um símbolo poderoso na cosmologia Yawanawá, representando a conexão entre o mundo físico e espiritual.

O encontro com a vinö ronö exige uma preparação rigorosa. Rituais de defumação, uso de rapé e consumo de ayahuasca são fundamentais para alinhar o espírito e abrir o canal de comunicação com a cobra. “Ela só aparece para quem está espiritualmente pronto”, explicou Pocha, destacando a importância das pinturas corporais como parte desse alinhamento.

Para Xinã, o ritual foi um teste de coragem e fé. Ele enfrentou medos profundos, mas também experimentou momentos de grande iluminação espiritual. Ao final do processo, sentiu-se transformado, preparado para assumir sua missão como pajé e continuar o legado de seu povo.

A medicina tradicional dos Yawanawá, baseada em plantas como ayahuasca, rapé e kambô, é um elo vital entre a comunidade e a floresta. Além de promover cura, essas práticas são uma forma de resistência cultural, reafirmando a conexão com o território e a preservação do conhecimento ancestral.

A jornada de Xinã é um reflexo da resiliência do povo Yawanawá. Após séculos de opressão, eles conseguiram revitalizar suas tradições e se posicionar como defensores da floresta. O ritual de iniciação de Xinã, mais do que um marco individual, representa um compromisso coletivo com o futuro.

No ritual de purificação, Pajé Pocha oferece a Xinã um banho de ervas, passo essencial para conectá-lo às tradições orais, visões espirituais e ao universo ancestral (Imagem: Victor Moriyama / Dialogue Earth).

A Terra Indígena Rio Gregório é um exemplo vivo da importância de proteger a Amazônia e seus povos originários. Mais do que um lar, o território é uma fonte de sabedoria e um espaço sagrado que precisa ser preservado para as próximas gerações.

Ao testemunhar o processo de iniciação de Xinã, fica claro que a espiritualidade dos Yawanawá é um patrimônio inestimável. Sua capacidade de se adaptar aos tempos modernos sem perder a essência ancestral é uma lição para todos que valorizam a diversidade cultural e a preservação ambiental.

Xinã Yawanawá, agora caminhando firmemente rumo à pajelança, é um símbolo de renovação. Sua história inspira tanto seu povo quanto aqueles que acreditam no poder transformador das culturas indígenas e na necessidade de proteger a floresta amazônica.

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