Conheça a ‘grachorra’, animal híbrido identificado por pesquisadores no Brasil

20 outubro 2023 às 16h22


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Há dois anos, um animal muito semelhante a uma raposa de pequeno porte foi atropelado em uma estrada vicinal no município de Vacaria, no Rio Grande do Sul. Salvo por uma patrulha ambiental, foi levado ao setor de animais silvestres do Hospital Veterinário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Chamado popularmente de raposinha dos pampas na região Sul do país, esse animal não é exatamente uma raposa, apesar de sua semelhança. Tratava-se, supostamente, do graxaim-do-campo (Lycalopex gymnocercus), um pequeno carnívoro canídeo nativo da América do Sul.
Porém, ao ser retirado da caixa de transporte, surpreendentemente, o animal começou a latir. Sua pelagem também destoava do padrão comum dos graxains-do-campo, que geralmente apresentam pelos em tons de bege e cinza. Além disso, a fêmea resgatada exibia uma pelagem notavelmente mais escura, quase preta.
“Ela foi levada para nós como um graxaim. Mas, logo achamos que não era um graxaim, mas, sim, um cachorro. Enviamos ao setor de cães, mas ela acabou voltando pra gente. Era uma crise de identidade”, revelou Marcelo Alievi, veterinário do setor de animais silvestres do Hospital Veterinário da UFRGS.
No setor de animais domésticos, recusava-se a consumir ração, mas mostrava-se disposto por pequenos roedores. Além disso, demonstrava ser arisca, não dócil. Diante desse comportamento, foi devolvida à área de espécies silvestres.
Nesse ponto, Thales Renato Ochotorena de Freitas, geneticista do Instituto de Biociências da UFRGS, entrou em cena. Sua missão era elucidar o mistério: seria a fêmea um graxaim legítimo ou uma mistura com cachorro?
Os testes genéticos revelaram que, na verdade, era uma “grachorra”, como foi carinhosamente nomeada no laboratório, um híbrido. A mãe era uma graxaim, enquanto o pai era um cachorro de raça não definida.


Os graxains habitam áreas rurais, e a presença comum de cachorros soltos em fazendas facilita o encontro entre as duas espécies. Do ponto de vista ecológico, essa hibridização não é benéfica, já que o graxaim é uma espécie silvestre local e o cachorro é uma espécie invasora. Essa mistura representa uma ameaça à vida selvagem, com o potencial de impactar as espécies nativas.
“É uma contaminação, pode estar acontecendo uma passagem de genes do cachorro doméstico para uma espécie selvagem. Em termos de conservação não é bom, é uma espécie da fauna típica da região que está sendo alterada”, destacou Freitas.
Enquanto os cachorros domésticos (Canis lúpus) têm 78 cromossomos e os graxains-do-campo têm 74, a “grachorra” do laboratório da UFRGS apresentava 76 cromossomos – 39 herdados do cachorro e 37 do graxaim. O DNA mitocondrial, exclusivamente materno, era semelhante ao dos graxains-do-campo, mas o animal ainda revelava trechos genéticos exclusivos dos cachorros.
Esse evento foi registrado como o primeiro caso conhecido de hibridização entre cachorro e graxaim no mundo, de acordo com os pesquisadores. Apesar de pertencerem à mesma família, os canídeos, essas duas espécies não são do mesmo gênero, tornando esse cruzamento ainda mais surpreendente. O estudo científico foi publicado em agosto na revista Animals.
“Existem animais híbridos da natureza, claro, mas não há registro de cachorro com graxaim. Temos cruzamentos parecidos, de outras espécies, mas este especificamente nunca tinha sido descrito por ninguém”, afirmou Alievi.
“Os híbridos de cachorros domésticos com lobos, por exemplo, são mais comuns, mas ambos são do mesmo gênero, canis. No caso daqui, são gêneros diferentes, ou seja, filogeneticamente são animais muito diferentes”, ressaltou Freitas.
Após se recuperar das lesões causadas pelo atropelamento, a “grachorra” foi castrada, pois a reprodução de híbridos não é recomendada, e então foi encaminhada ao Mantenedouro São Braz, um zoológico em Santa Maria. O animal veio a falecer no início deste ano, e as causas da morte não foram divulgadas.
“Como era uma híbrida, não podíamos soltar na natureza. Achamos melhor encaminhar a um mantenedor de fauna”, argumentou Alievi.
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