Carolina Horta inspira como a única mulher da UFG na lista de pesquisadores mais influentes do mundo
10 novembro 2024 às 00h00
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A Universidade Federal de Goiás (UFG) celebra uma conquista notável: nove de seus professores foram classificados entre os pesquisadores mais influentes do mundo, segundo levantamento do ano de 2023 da Universidade Stanford em parceria com a editora Elsevier. Dentre eles, destaca-se Carolina Horta Andrade, única mulher na lista e referência em Química Medicinal, Química Computacional e Planejamento de Fármacos. Ela não só representa um avanço em sua área, mas também lidera projetos de pesquisa que buscam soluções para doenças negligenciadas.
Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção, Carolina, de 41 anos, compartilhou detalhes de sua trajetória e paixão pela ciência. Nascida em Formosa, Goiás, e única goiana em uma família de pais mineiros, ela revelou que sua inspiração veio de seu avô paterno. “Ele era professor na área de engenharia, falava oito línguas, mas infelizmente faleceu quando meu pai era muito jovem. Nunca tive contato com ele, mas talvez tenha herdado dele o desejo por uma carreira acadêmica”, comentou Carolina, que começou sua formação no ensino básico e médio em sua cidade natal antes de ingressar na UFG.
Carolina explicou que inicialmente considerou carreiras como medicina e farmácia, mas após perceber que a medicina não combinava com ela, optou pela farmácia. “Farmácia é um curso versátil, com diversas áreas de atuação. Durante a graduação, me encontrei quando comecei a fazer iniciação científica na química medicinal e no planejamento de fármacos. Foi então que minha paixão pela pesquisa começou a crescer”, relembrou.
Primeiros passos e escolhas determinantes
Uma experiência marcante para Carolina foi a visita à Universidade de São Paulo (USP) para assistir à defesa de doutorado de um aluno. “Foi um divisor de águas, uma oportunidade de ver de perto o que significava fazer uma tese, uma pesquisa. A partir desse momento, tive certeza de que queria fazer mestrado e doutorado”, afirmou. Ela escolheu seguir sua formação em São Paulo, orientada pela professora Elizabeth Igne Ferreira, com quem Carolina iniciou seus estudos na área de química farmacêutica.
Mesmo após um contratempo inicial – não passar na primeira prova para o mestrado –, ela persistiu. “A professora me incentivou a continuar e eu fui, com muita dedicação, estudar mais e tentar novamente. Nesse período, trabalhei na rede de farmácias Pague Menos, em São Paulo. Foi um período desafiador, mas recompensador”, relatou.
Além disso, a pesquisadora recorda como sua família foi uma grande apoiadora desde o início de sua carreira. “Meu pai, minha mãe e minhas quatro irmãs mais velhas sempre estiveram torcendo e vibrando por mim. Eles me incentivaram e apoiaram financeiramente quando precisei”, relembra Carolina.
A professora conta que sempre se inspirou nos valores familiares transmitidos por seus pais, que também buscaram viver de maneira empreendedora e realizaram o sonho de fundar um restaurante, o Brioso & Manhoso, após deixar São Paulo e se estabelecer em Goiás. “Meus pais foram muito visionários. Eles criaram uma vida do zero em Goiás, sempre priorizando a nossa educação e incentivando a abertura para o mundo. Meu pai dizia que ‘cria filho para o mundo’, e isso sempre ecoou em mim”, conta, com orgulho.
Conquistas na carreira
Ao longo de sua carreira, Carolina ganhou diversos prêmios nacionais e internacionais, incluindo dois prêmios da L’Oréal para Mulheres na Ciência, em 2014 e 2015, um deles concedido pela Academia Brasileira de Ciências. “Foi um marco importante para mim. Esses prêmios ajudaram a visibilizar o trabalho das mulheres cientistas e o valor da ciência para a sociedade”, destacou.
Além disso, Carolina foi eleita membro-afiliado na Academia Brasileira de Ciências, uma realização que considera um dos pontos altos de sua carreira. Sua dedicação a projetos na UFG, onde fundou o Laboratório de Planejamento de Fármacos e Modelagem Molecular, o Labmol, a levou a conquistar diversas parcerias internacionais, inclusive com centros de pesquisa dos Estados Unidos, onde realizou estágios e publicações.
O reconhecimento mundial veio como uma surpresa para Carolina, especialmente por ela ser a única mulher da UFG a figurar na lista. “Eu imaginava que haveria outras pesquisadoras da UFG. Temos excelentes cientistas aqui, mas o método de classificação considera métricas específicas de cada área, o que explica a ausência de outras mulheres”, comenta Carolina. Ela também ressalta a importância desse tipo de reconhecimento, afirmando que é uma prova de que os esforços de sua equipe têm impacto global: “Saber que nossos estudos estão sendo lidos, citados e aplicados no mundo é um reconhecimento gratificante.”
Mulheres na Ciência
Ao longo de sua trajetória, Carolina percebeu a importância de incentivar e apoiar mulheres na ciência, especialmente aquelas que enfrentam desafios ao conciliar a carreira acadêmica com a maternidade. Ela é mãe de dois filhos, Manuela, de 6 anos, e Gabriel, de 3, e conta que o equilíbrio entre as responsabilidades familiares e profissionais é uma batalha diária.
“A maternidade muda a dinâmica de vida. Isso é uma pergunta constante: como equilibrar tudo? É algo que eu trabalho todos os dias. As mulheres se cobram muito, tanto no trabalho quanto em casa. O equilíbrio é difícil, mas é essencial para que a gente continue fazendo o que ama.”
Carolina destaca que, apesar das dificuldades, o apoio familiar é fundamental para a sua continuidade na carreira. Ela compartilha que seu marido, Judson Vieira, administrador de empresas de 43 anos, tem um papel essencial em sua rotina, permitindo que ela viaje e participe de eventos científicos internacionais. “Muitas vezes me perguntam como consigo viajar tanto e manter a carreira. O segredo é o apoio do meu marido, que é um pai incrível. Ele assume tudo quando eu viajo, é realmente uma parceria que faz toda a diferença.”
Ela relembra sua primeira viagem a trabalho após o nascimento do filho mais novo, quando esteve na África do Sul. “Foi uma experiência de confiança. Eu trabalhei com uma psicóloga para lidar com a ansiedade. A mãe sempre tem uma carga maior com os filhos, mas meu marido evoluiu muito e hoje faz de tudo. Para mim, foi um processo de aprender a confiar e delegar”, relata.
A desigualdade de gênero na ciência, segundo Carolina, também se reflete no reconhecimento e nas oportunidades. Embora o número de mulheres em cursos de graduação e em algumas áreas de pesquisa esteja em crescimento, há uma queda na representatividade feminina em cargos mais altos e em áreas como engenharia, física, informática e química.
Carolina observa que a falta de incentivo e o desestímulo constantes fazem com que muitas mulheres desistam da carreira acadêmica ao se tornarem mães. Ela aponta que, para enfrentar essa realidade, são necessários programas de apoio. “É essencial ter apoio, seja uma creche ou espaços que permitam levar os filhos aos eventos, pois isso ajuda a dar continuidade à carreira. Muitas vezes as mulheres desistem porque não há essa estrutura, e se sentem pressionadas a escolher entre a maternidade e a pesquisa.”
Carolina enfatiza que é preciso haver uma rede de apoio para essas jovens cientistas. “É fundamental que as mulheres tenham um suporte, uma rede que incentive a continuar. A ciência precisa dessa diversidade, pois é isso que a fortalece. Cada um tem sua realidade e faz suas escolhas, mas, com apoio, podemos seguir em frente e fazer o que amamos.”
Projetos e pesquisa de doenças negligenciadas
Ao longo de sua carreira, Carolina desenvolveu e coordenou uma série de projetos em parceria com universidades e empresas globais, incluindo algumas inovações de destaque. Entre 2010 e 2015, trabalhou no projeto “Leishmaniose Multialvo” e, entre 2013 e 2017, no “Predherg”, focado na predição de toxicidade cardíaca, com o qual ainda está envolvida. Carolina também coordenou o “Predskin”, que, de 2013 a 2018, estudou a toxicidade na pele, e, com ele, a professora recebeu prêmios e atraiu o interesse de grandes empresas de cosméticos, como a Natura, no Brasil, e a Lush, no Reino Unido.
Além disso, Carolina desenvolveu com equipe mundial o “COVID AI”, um projeto colaborativo entre os países do BRICS, no qual se uniram esforços do Brasil, Rússia e África do Sul para desenvolver respostas rápidas e eficazes contra a COVID-19.
“A minha linha de pesquisa sempre foi voltada para novos fármacos, especialmente para doenças negligenciadas”, explica Andrade. “Essas são doenças parasitárias ou virais que afetam principalmente populações em países em desenvolvimento, onde há problemas de saneamento e infraestrutura básica. Estamos falando de doenças como leishmaniose, doença de Chagas, esquistossomose, tuberculose, dengue e chikungunya.”
Carolina compartilha que sua paixão por doenças negligenciadas nasceu ainda no doutorado, quando começou a trabalhar com estudos sobre tuberculose. “Minha orientadora de doutorado já pesquisava nessa área, e meu trabalho inicial foi focado em tuberculose. Eu gostava de lidar com essas doenças que exigem um desenvolvimento contínuo de medicamentos, justamente porque as opções terapêuticas atuais são insuficientes ou ineficazes”, explica.
A professora enfatiza a complexidade das doenças negligenciadas, que atingem milhões de pessoas, mas recebem pouco ou nenhum investimento por parte das grandes indústrias farmacêuticas. “Essas empresas geralmente focam em doenças que trazem retorno financeiro, como câncer e doenças cardiovasculares. Desenvolver um novo medicamento é caríssimo, e sem a perspectiva de lucro, muitas vezes essas doenças ficam sem uma resposta adequada da indústria,” lamenta.
De acordo com Andrade, um dos pontos centrais de seu trabalho é desenvolver abordagens eficazes para o tratamento dessas doenças. “Recebi um prêmio da L’Oréal por um projeto focado em leishmaniose, onde desenvolvemos uma abordagem que atinge múltiplos alvos no parasita”, conta. Ela explica que o método utilizado reduz a possibilidade de resistência por parte do parasita, tornando o tratamento mais eficaz e seguro. “Essas substâncias que desenvolvemos conseguem atacar mais de um alvo no parasita, aumentando a eficácia do tratamento e reduzindo a chance de resistência, o que é um avanço enorme frente aos fármacos atuais.”
Outro projeto de destaque na carreira da pesquisadora foi o desenvolvimento de um fármaco para dengue e zika. Em parceria com uma equipe global e a empresa International Business Machines Corporation (IBM), Andrade coordenou o projeto “Open Zika”, que de 2016 e 2020, utilizou uma rede de supercomputadores ao redor do mundo para acelerar a pesquisa.
“A IBM tinha um programa de computação filantrópica que nos permitiu acesso a uma rede de supercomputadores para essa pesquisa. Submetemos o projeto para análise, e ele foi aprovado, permitindo que conduzíssemos estudos avançados de forma gratuita”, explica Carolina. “O Open Zika foi um projeto aberto, ou seja, não patenteamos os resultados para que outros pesquisadores possam utilizá-los e desenvolver ainda mais a pesquisa.”
Com essa abordagem de compartilhamento aberto, o projeto gerou substâncias promissoras para tratar o vírus Zika e, posteriormente, o da dengue e da chikungunya. “Descobrimos que algumas das substâncias também tinham atividade contra dengue e chikungunya”, revela.
A pandemia de COVID-19 trouxe um novo desafio para Andrade e sua equipe, que rapidamente adaptaram suas pesquisas para combater o vírus. “Já trabalhávamos com viroses e, quando a COVID-19 surgiu, vimos a necessidade de fazer algo”, lembra a professora. “Desenvolvemos um artigo em conjunto com colegas do projeto Open Zika sobre a importância de impulsionar pesquisas para enfrentar o vírus, e isso aconteceu logo no início da pandemia.”
O sucesso das vacinas contra a COVID-19 também é um exemplo positivo para Carolina, especialmente pela agilidade com que foram desenvolvidas. Ela explica que o desenvolvimento foi acelerado graças à tecnologia existente, pois as vacinas foram adaptadas a partir de estudos para outros vírus.
Inteligência artificial e novas fronteiras
Desde 2020, o laboratório de Carolina, LabMol, faz parte do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da UFG, onde a professora se dedica a inovar em modelos de IA aplicados à saúde. Em junho deste ano, a cientista iniciou o projeto “Sofia”, (Sensory Olfactive Framework Immersive AI), com o objetivo de desenvolver tecnologias de realidade virtual com capacidades olfativas. “No projeto Sofia, estamos estudando como moléculas químicas desencadeiam respostas olfativas e, em parceria com IA, mapeamos e criamos projeções de novos cheiros. A ideia é que, em um futuro próximo, possamos ter ambientes virtuais capazes de replicar a experiência olfativa”, explicou.
O “Sofia” integra-se ao AKCIT, o Centro de Competência em Tecnologias Imersivas da UFG, que Carolina também coordena em Goiás. “O projeto Sofia é um exemplo de como a ciência de dados e a química podem colaborar para desenvolver uma IA mais sensível e abrangente, e esse tipo de avanço certamente terá impacto no entretenimento, mas também em tratamentos de saúde, ajudando pessoas com traumas a reviver experiências sensoriais de forma segura”, complementou.
Além disso, Carolina conta sobre outro projeto criado no LabMol, o Pred-hERG 5.0, que leva informação para pessoas do mundo todo. Seu laboratório criou o programa de forma que qualquer pessoa possa acessar pela internet para avaliar a toxicidade de compostos. “Essas ferramentas são usadas globalmente por cientistas, indústrias e até mesmo em aulas, o que reforça a importância de trazer recursos computacionais também para a educação”.
Uma rotina que mistura docência, pesquisa e inovação
A rotina de Carolina Horta Andrade é intensa. Além de ministrar aulas na graduação e pós-graduação, ela orienta estudantes de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. “Tenho duas pós-doutorandas que fizeram mestrado e doutorado comigo, além de outros pesquisadores. Somos um time de 12 pessoas ao todo”, explica. Além disso, Carolina é vice-coordenadora do programa de pós-graduação em Ciências Farmacêuticas da UFG. “Se não estou em sala de aula ou no laboratório, estou em reuniões administrativas”, diz.
Ela também participa de congressos e palestras, onde compartilha suas descobertas científicas. “Geralmente, dou palestras sobre minhas pesquisas. Às vezes, abordo questões de gênero e o papel das mulheres na ciência, mas o foco principal são as doenças negligenciadas e outras áreas em que atuo”, explica.
A química medicinal no Brasil
Ao falar sobre a realidade da pesquisa em química medicinal no Brasil, Carolina acredita que o país avançou consideravelmente, mas ainda há muito a ser feito. “Comparado com a época em que fiz graduação, o cenário no Brasil mudou muito”, diz ela. No entanto, ainda existem obstáculos a serem superados, especialmente quando se trata de inovação farmacêutica. No Brasil, a maioria das indústrias farmacêuticas se concentra na produção de genéricos, enquanto a inovação e o desenvolvimento de novas moléculas acontecem majoritariamente no exterior.
Carolina enfatiza a necessidade de políticas públicas para estimular o investimento em pesquisa e desenvolvimento pela iniciativa privada. “Precisamos de um financiamento mais robusto. Desenvolver um medicamento pode custar entre um e treze bilhões de dólares. Nós, nas universidades, não temos esses recursos”, observa. Ela enfatiza a importância de parcerias com a indústria farmacêutica, ainda que essa cooperação enfrente barreiras. “Já desenvolvemos vários candidatos a fármacos, mas, sem o apoio financeiro necessário, as pesquisas acabam parando na fase inicial, o que limita a possibilidade de um medicamento ser aprovado e chegar às prateleiras.”
Além de seu papel acadêmico, Carolina tem se destacado em parcerias público-privadas, chamadas de PPPs, em colaboração com empresas e ONGs. “Há uma mudança gradual no interesse das empresas, principalmente após o impacto da pandemia de COVID-19, que evidenciou a necessidade de se investir em viroses e outras doenças infecciosas”, finaliza.