Área criminal não está pronta para lidar com crimes praticados com uso de IA na guerra, aponta estudo da UFG
04 agosto 2024 às 00h00
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Um estudo realizado por um estudante de direito da Universidade Federal de Goiás (UFG) apontou os desafios éticos e humanitários da área criminal no avanço e, consequentemente, no uso desenfreado da Inteligência Artificial (IA) em contextos de guerra. O tema tem ganhado destaque internacional devido às acusações de crimes de guerra nos conflitos armados entre a Rússia e Ucrânia e, mais recentemente, entre Israel e os grupos terroristas Hamas e Hezbollah, na Faixa de Gaza.
Publicado no primeiro semestre de 2024 como um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) após oito meses de construção, o artigo chama atenção para a dificuldade jurídica da responsabilização penal internacional por crimes de guerra envolvendo Armas Autônomas Letais (lethal autonomous weapons – LAWs), também conhecidas como robotic weapons ou killer robots.
As LAWs, que são definidas como sistemas de armamento capazes de selecionar e atacar alvos sem necessidade de intervenção humana contínua, como artilharias aéreas automáticas, representam um avanço tecnológico significativo. Combinada a IA, as LAWs possuem a capacidade de identificar, selecionar e engajar alvos com letalidade, desafiando os paradigmas tradicionais de controle e responsabilidade militar.
O fato, no entanto, impõem dificuldades sem precedentes ao Direito Internacional Humanitário (DIH), conforme o autor Victor Hugo Mendes Medeiros. O DIH é um conjunto de normas destinadas a limitar os efeitos dos conflitos armados, protegendo pessoas que não participam diretamente das hostilidades e restringindo os meios e métodos de combate – o que não é cumprido nos conflitos recentes, conforme divulgado e condenado por países de todo o mundo.
O artigo mostrou que o assunto possui lacunas jurídicas significantes, tanto na definição do que constitui uma arma autônoma letal, quanto na existência de um instrumento jurídico vinculante que regule o seu uso em conflitos armados. Ou seja, o uso desse tipo de arma em conflitos armados ainda é uma “terra sem lei”.
O autor Victor afirma que o primeiro registro documentado de um ataque perpetrado por uma Arma Autônoma Letal data de 2020. Segundo um documento do Painel de Peritos sobre a Líbia, do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), publicado em março de 2021, um drone Kargu-2, desenvolvido pela empresa turca STM e munido de explosivos, detectou e atacou forças leais a Khalifa Haftar na Líbia, utilizando IA e sem intervenção humana direta.
No cenário contemporâneo, além deste primeiro registro, observam-se diversos exemplos do uso de armas autônomas letais em sistemas de defesa antiaérea em navios, tanques ou bases terrestres, tanto fixas quanto móveis. Entre os mais notáveis, destacam-se o Iron Dome, de Israel, o S-400, da Rússia, e o THAAD, dos Estados Unidos.
Esses sistemas exemplificam a aplicação avançada de tecnologias autônomas em contextos militares, evidenciando a crescente integração da inteligência artificial na defesa estratégica global. Adicionalmente, a utilização de drones, com destaque para o turco Bayraktar TB-2, artilharia e direcionamento via satélite, como o Starlink, permitiu à Ucrânia resistir ao ataque de uma força blindada muito superior no início do conflito com a Rússia, demonstrando a eficácia dessas tecnologias modernas em cenários de guerra assimétrica.
Conforme o artigo, a integração das LAWs no arsenal militar de várias nações representa, portanto, uma mudança paradigmática na condução das operações bélicas. A promessa de maior eficiência e redução de baixas humanas é, entretanto, contrabalançada pelos desafios éticos e jurídicos, particularmente no que tange à responsabilização por ações autônomas que resultem em violações do direito internacional humanitário.
Evolução tecnológica
Usando como base referências bibliográficas sobre a formação do Direito Internacional Humanitário e do Direito Penal Internacional, além de documentos oficiais de organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Cruz Vermelha, bem como arquivos e posições de países importantes no contexto global, mormente o Brasil e os Estados Unidos, o estudo aponta que essas dificuldades da área penal estão ligadas diretamente à rápida evolução tecnológica nas últimas décadas.
O avanço tem provocado transformações profundas nas dinâmicas de conflito e segurança internacional, introduzindo novas complexidades ao DIH. Para a pesquisa, a ausência de uma definição consensual tem repercussões diretas na capacidade da comunidade global de regulamentar e controlar o uso das LAWs.
Sem um entendimento claro e comum, é difícil elaborar tratados e convenções que abranjam de forma eficaz as especificidades dessas armas. Isto resulta em um vácuo normativo que pode ser explorado por estados e outros atores, potencialmente levando a abusos e à erosão dos padrões estabelecidos pelo DIH, ocasionando em crimes de guerra.
Os crimes de guerra são violações graves que acarretam responsabilidade penal individual. Eles são definidos e codificados em instrumentos internacionais, como as Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais, bem como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI).
Eles incluem, mas não se limitam a: homicídio doloso, quando é causado intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde, a destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária, além de ataques intensionais à população civil em geral ou civis que não participem diretamente das hostilidades.
Dirigir intencionalmente ataques a bens civis, ou seja bens que não sejam objetivos militares, atacar intencionalmente instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária também fazem parte da lista de crimes, assim como atacar atacar ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que não sejam objetivos militares.
A responsabilização penal internacional por crimes de guerra é primariamente exercida por tribunais e cortes internacionais estabelecidos para julgar as mais graves violações do DIH. Destacam-se, neste contexto, o Tribunal Penal Internacional (TPI), estabelecido pelo Estatuto de Roma de 1998, e os tribunais ad hoc, como o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR).
Países condenam uso de LAWs
Segundo o estudo, desde 2018, o Secretário-Geral das Nações Unidas (SGNU), António Guterres, tem incitado veementemente os Estados a implementarem uma proibição sobre as LAWs. Em suas declarações, o Secretário-Geral têm sublinhado a necessidade urgente de estabelecer um marco regulatório robusto que previna a proliferação e o uso de destes armamento, enfatizando que a decisão de vida ou morte não deve ser deixada nas mãos de máquinas.
Em 2021, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) expressou preocupações éticas, jurídicas e humanitárias sobre o uso de armas autônomas letais, e pediu a negociação de um tratado internacional para o seu banimento parcial. A ação também é apoiada por países como o Brasil, que tem as posições ofuscadas pelas discussões acerca dos conflitos que o mundo vem presenciando, de acordo com o autor da pesquisa, Victor.
Em contrapartida, dez países têm se posicionado contra a regulamentação das LAW, destacando-se entre eles a Austrália, Estônia, Índia, Estados Unidos, Israel, Japão, Polônia, Coreia do Sul, Rússia e Reino Unido. Estes países argumentam que a implementação de uma regulamentação estrita ou de uma proibição total sobre as LAWs poderia limitar o desenvolvimento tecnológico e militar, prejudicando suas capacidades de defesa nacional e inovação tecnológica.
Os Estados Unidos e Israel, por exemplo, são líderes no desenvolvimento e implementação de tecnologias avançadas de defesa, incluindo sistemas de armas autônomas. Para estes países, a regulamentação das LAWs poderia inibir a sua vantagem estratégica e tecnológica, crucial para a manutenção de sua segurança nacional e para a dissuasão de ameaças externas.
Da mesma forma, a Rússia e a China, em busca de manter e expandir suas influências geopolíticas, têm investido significativamente em tecnologias militares avançadas, incluindo armas autônomas, vendo nelas uma oportunidade para equilibrar ou superar a hegemonia militar ocidental. A Austrália, Estônia, Índia, Japão, Polônia e Coreia do Sul, por sua vez, partilham preocupações similares sobre a regulamentação das LAWs.
Estes países enfatizam a importância da flexibilidade na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias militares para garantir que possam responder efetivamente às ameaças emergentes e se adaptar ao rápido avanço tecnológico no campo de batalha. Além disso, argumentam que a regulamentação prematura poderia colocar em desvantagem os países que respeitam as normas internacionais, enquanto os atores mal-intencionados poderiam ignorar tais restrições, criando um desequilíbrio no poder militar global.