Esta é a segunda reportagem de uma série especial intitulada “Mês Orgulho LGBT+”, que celebra as conquistas, a diversidade e os direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queer e demais identidades, orientações sexuais e de gênero.

A inércia e omissão do Congresso Nacional brasileiro em relação aos direitos da população LGBTQIAPN+ faz com que a conquista das garantias dessa comunidade no País ocorra apenas por meio do Poder Judiciário. Foi assim, por exemplo, com o reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e o reconhecimento dos atos de homofobia e transfobia no rol de crimes de injúria racial.

Para estabelecer que essas agressões eram de fato crime, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2023, julgou duas ações: ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e outra ADO (Ação Direta por Omissão). Por 9 votos a 1, a Corte reconheceu que o Congresso Nacional foi omisso em incriminar atos atentatórios aos direitos fundamentais dessa comunidade.

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A tese, consolidada em três pontos, prevê que até que o Congresso Nacional edite Lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/2018 e, no caso de homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe.

Além disso, a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio. Por fim, a tese estabeleceu que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.

Posição do Supremo é atípica, mas fundamental para garantia de direitos

O advogado e ativista Alex Costa lembra que essa foi uma importante medida para assegurar o direito da comunidade LGBT, mas lamenta que a conquista destes direitos sejam limitadas ao Judiciário devido ao conservadorismo do parlamento. “O Brasil é o país que há 15 anos mais mata pessoas LGBTs no mundo e o Judiciário tomou essa posição atípica de legislar pois se trata de um princípio à vida”, comenta.

Ele lembra que muitos dispositivos legais já foram apresentados como propostas de Lei no Poder Legislativo brasileiro, no entanto, a maioria é rejeitada antes de chegar ao Plenário. “Esse fundamentalismo acaba por deixar a vida dessas pessoas em risco e mesmo quando a população conquista a afirmação desses direitos no judiciário ainda aparecem juízes que querem manifestar sua ideologia e seu posicionamento negando o acesso a essas garantias já estabelecidas”, relata.

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Apesar da atuação, Alex também integra as estatísticas de pessoas que foram vítimas de homofobia. Ele lembra um episódio em que estava com o marido e um casal hétero no clube da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Anápolis, quando ouviu a reclamação de uma mulher. “A gente estava abraçado, tanto eu e meu marido conversando com um casal de amigos, quando essa mulher começou a dizer que aquilo era uma pouca vergonha, que era imoral e que tinha crianças perto. Eu me identifiquei como advogado e perguntei qual era o problema, se era comigo ou com o casal de amigos que estava com a gente e ela disse que não queria papo. Levamos o caso na Justiça e ela foi condenada”, afirma.

Advogado Alex Costa explica que perfil conservador do parlamento impede aprovação de direitos | Foto: Arquivo pessoal

Atuante no município de Anápolis, a 60 km da capital, ele revela que a após a criação da Delegacia Estadual de Atendimento à Vítima de Crimes Raciais e de Intolerância de Goiás (Deacri), a cidade perdeu a unidade do Grupo Especializado. “Com a reorganização, acabou que tirou ela, mas qualquer delegacia é obrigada a aplicar a Lei de acordo com o que determina a Constituição”, comenta.

Ele analisa que a criação da Deacri é importante para o registro do número de casos e para um atendimento mais humano às pessoas vítimas de violência. “A partir desses registros de casos de lgbtfobia é possível a criação de políticas públicas de combate a esses crimes”, avalia.

Deacri promoverá capacitação para profissionais

Titular da Deacri, o delegado Joaquim Adorno explica que apesar da destituição do Geacri de Anápolis, isso não deve afetar o atendimento das vítimas da cidade. Além disso, ele explica que tem elaborado capacitação para todas as delegacias do Estado. “Goiás é um dos poucos Estados brasileiros com uma delegacia especializada para o atendimento de casos de homofobia, racismo e intolerância religiosa. Não dá para dizer que é um Estado seguro para essa população, mas certamente a gente sai na frente com um atendimento humanizado e que acolhe”, pontua.

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Adorno explica que não há ainda a previsão de expansão da Deacri para outros municípios, mas garante que a qualificação dos profissionais de todas as delegacias já garante que esses casos sejam registrados e apurados com o rigor da Lei. “A gente precisa entender, que a conduta discriminatória, muitas vezes, é difícil de identificar e também de ser provada. É o que chamamos de crimes transeuntes, já que eles não deixam rastros. Então, é preciso que quem esteja sofrendo essas agressões aponte testemunhas, grave as agressões para que isso possa ser utilizado”, explica.

Delegado Joaquim Adorno conduz trabalhos na Deacri | Foto: Ton Paulo/Jornal Opção

Adorno explica ainda que o entendimento do Supremo Tribunal Federal não criou uma tipificação penal, mas fez uma análise sociológica para incluir na Lei 7.716/2018, que trata do racismo. “A gente chama esse tipo de comportamento de desvio de conduta, que é quando uma pessoa muda o tratamento com determinados grupos. O que o STF fez, foi entender que esses preconceitos também ocorrem contra pessoas LBGTs fundamentados na identidade sexual e de gênero. Não se discrimina o indivíduo, mas sim toda aquela comunidade e grupo que é tratado como uma raça diferente”, aponta.

Levantamento sobre a comunidade LGT+ em Goiás

Levantamento sobre a situação da população LBTQIA+ em Goiás, produzido pelo Instituto Mauro Borges, em parceria com as Secretarias de Estado da Saúde e Desenvolvimento Social e o Comitê Estadual de Enfrentamento a LGBTFobia em Goiás (COMEELG), revela que 79,3% do grupo pesquisado já sofreu preconceito devido a sua orientação sexual e que, na maior parte dos casos, esses ataques vieram de desconhecidos. O levantamento, no entanto, revela que há uma incidência muito grande de preconceito vindo dos próprios amigos e familiares, ou seja, de pessoas que na prática deveriam apoiar e garantir conforto para eles.

O estudo revela ainda que grande parte das violências sofridas pela comunidade LBGT+ são físicas, sexuais e financeiras. Outro dado alarmantes é a condição mental dessa população. Grande parte dos pesquisados revelou que já tentou ou já pensou em suicídio.

Violência contra LGBT+ cresceu em Goiás

A violência contra pessoas LGBTQIAPN+ registrou um salto em todos os indicadores, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022. Goiás teve a segunda maior variação de registro de violência contra a comunidade em 2021, com um crescimento de 311,3%, perdendo apenas para o Rio Grande do Sul, que cresceu quase 4.000%.

19 pessoas foram assassinadas e outras 368 foram vítima de agressões físicas no Estado. As variações para estes tipos de crimes chegam a 161% e 375%, respectivamente. No País, foram registrados 488 casos de homofobia ou transfobia. A taxa nacional por 100 mil habitantes em 2022 ficou em 0,44 – 53,6% superior ao ano anterior. Os estados com as maiores taxas foram: Distrito Federal (2,4), Rio Grande do Sul (1,1), e Goiás (0,9).

Nicolas Augusto é um homem trans morador da Cidade de Goiás, a 130 km de Goiânia. Ele foi uma vítima de transfobia e intolerância religiosa na porta de casa. “Estava com a minha esposa na porta de casa fazendo uma defumação quando uma vizinha chegou dizendo que a gente estava fazendo macumba e que eu não era homem de verdade”, desabafa.

Esse não foi o primeiro episódio de transfobia que Nicolas sofreu na cidade. Ele lembra que muitas vezes quando anda pela cidade, as pessoas fazem comentários escusos sobre ele e a esposa. “Xingam de longe, fazem piadas e se sentem no direito de fazer comentários sobre aparência dos outros. São pessoas que não tem respeito algum pelo ser humano, nós já procuramos a delegacia para registrar a ocorrência e vamos até o fim”, conta.

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