No livro “Os Aliciadores”, o autor Lourenço Dutra procura nos mostrar com uma narrativa irônica e sem lirismo as velhas práticas de aliciamento eleitoral

A cada quatro anos, a história e os discursos vãos dos políticos se repetem com as eleições | Imagem: divulgação

Geraldo Lima
Especial para o Jornal Opção

De quatro em quatro anos, durante as eleições para o Legislativo e o Executivo, somos bombardeados pelos discursos vãos dos políticos. Apresentando-se como políticos profissionais [dizem-se “experientes”] ou como não políticos [nova maneira de iludir o eleitor ao exibir uma pureza que não coaduna com o universo da política], todos têm como objetivo conquistar a confiança e a esperança do povo. Isso exige uma retórica mais condizente com os anseios da população, assim como a disposição para o corpo a corpo na caça ao voto e o uso de novos recursos tecnológicos, como a internet, para alcançar o eleitor com mais eficácia.

Em outros tempos, como bem o sabemos, o modo de aliciamento de eleitores dava-se de forma mais direta, sem a intermediação do discurso de convencimento. Para tanto, colocava-se em prática o conhecido e abominável “voto de cabresto”. Era dessa maneira que os temidos coronéis mantinham com pulso firme os seus currais eleitorais no interior do País.

Embora pensemos que esse modo nefasto de fazer política encontre-se completamente fora de uso no Brasil, ele continua a ser praticado, só que agora de modo mais velado, encoberto com nova roupagem. O jogo democrático, assim co­mo a modernização do processo elei­toral, com adoção de novos meios para coletar e aferir os votos, como é o caso da urna eletrônica, não inibem completamente as velhas práticas de aliciamento eleitoral. Pelo menos é isso que o livro “Os Alicia­dores”, de Lourenço Dutra [romance, Pulp BsB Edições, 2016, 174 páginas], procura nos mostrar com uma narrativa irônica e sem lirismo.

A história contada nesse romance de Lourenço Dutra nos é bem familiar, faz parte das entranhas podres do nosso sistema político, senão, vejamos: Dioclécio e Alberto são aliciadores de eleitores para a reeleição do governador Jorge Boriz, no Distrito Federal. E é de forma direta, sem disfarce, que os dois se aproximam dos possíveis candidatos. Tomemos como exemplo este diálogo que Alberto trava com um deles:

“– E o que eu preciso fazer?
– Nada de mais, somente transferir o seu título de eleitor pra lá.
Ele riu.
– Ah, eu entendi. É pra votar em quem?
– Pra votar na reeleição do governador Jorge Boriz.”

No momento, a missão dos dois é ir ao interior da Bahia, às margens do Rio São Francisco, para arrebanhar eleitores entre a gente pobre [sem-terra, desempregados, ciganos maltrapilhos, pequenos comerciantes sem perspectiva de futuro etc.] e levá-los para o DF, com a promessa de ganharem lotes e outros benefícios para votar no tal Jorge Boriz. Nesse ponto, Lourenço não é nem um pouco sutil, nem faz questão de sê-lo: para quem mora no Distrito Federal, é clara a referência a um conhecido político que governou o Distrito Federal durante um bom tempo exatamente com essa estratégia de doar lotes às pessoas pobres com o objetivo de obter delas o voto. Ou seja, a nefasta prática do “voto de cabresto”, neste caso, sob a embalagem do espírito de benfeitor ou de “pai dos pobres”. E as promessas são mesmo irrecusáveis:

“– Somos enviados do governador Jorge Boriz e viemos fazer um convite pra vocês. Que tal se mudarem para uma cidade em início, com garantia da escritura do lote, água, luz, saneamento básico, cesta básica e um botijão de gás mensal, de graça?”
Ou então esta:
“– Com Jorge Boriz não tem erro! O homem é bom, bom mes­mo, pai dos pobres de verdade!”
O romance “Os Aliciadores” filia-se a essa linhagem de obras de ficção que fazem da sátira sua marca maior, seu diferencial em meio ao comodismo e ao bom-mocismo. Seu deboche é corrosivo e provoca um rebaixamento no comportamento de tipos respeitáveis perante a sociedade, e aí entra o político, o homem de negócios, o gestor público, a esposa do prefeito, o filho do fazendeiro etc. É impiedoso no modo de lidar com essa gente, de caracterizá-la física e psicologicamente. “Nesse instante, a mulher que portava dentes de chiclete Adams soltou um grito histérico e se pôs a brigar com a mocinha que fazia os seus pés.” A figura retratada desse modo zombeteiro é a esposa do prefeito de Ibotirama do Leste, na Bahia, cidade onde Dioclécio e Alberto se encontram para executar o seu trabalho sujo.

Caracterização dos personagens e a estrutura do romance

Dioclécio e Alberto, protagonistas dessa história, são psicológica e mo­ralmente antagônicos. Embora atuem juntos, cumprindo a mesma missão de arrebanhar eleitores de mo­do fraudulento, não costumam apresentar o mesmo tipo de comportamento em relação ao seu trabalho. Vemos, às vezes, Alberto vacilar e questionar a sua atividade, enquanto Dioclécio, sem escrúpulo moral algum, segue adiante sem se questionar.

“– Oferecemos o que não é nosso e nem do Jorge Boriz. Oferecemos terra que não é nossa…
– Ô, Alberto! Sinceramente? Foda-se! Não me venha com esse papo de terra pública, com essa frescurada de preservar o meio ambiente (…).”

Se Alberto vive um drama familiar [está em vias de se separar da esposa, que o trai com o pastor da igreja], Dioclécio, pelo contrário, vive muito bem seu estilo macho-comedor e bom de porrada. Se mete em confusão, ora por conta de se envolver com mulher alheia, ora por topar com tipos arrogantes, como o jovem gaúcho que ele humilha em plena rua ao lhe aplicar uma tremenda surra. Mas algumas de suas atitudes podem surpreender, como da vez em que ele toma as dores de um jovem homossexual agredido por um grupo de filhinhos de papai [e aqui o quase vilão Dioclécio ganha ares de herói, desconstruindo a sua péssima imagem frente ao leitor].

Também parecem se diferenciar no aspecto físico, ainda que só as características físicas de Dioclécio estejam mais definidas, com seus traços negroides [“Virei-me de lado e olhei seu perfil com nariz achatado, cabelos pretos, boca carnuda”]. Alberto seria branco? Como narrador, ele fala pouco de si, focando mais na figura do companheiro de trabalho, visto por ele quase sempre de forma negativa: “No final da tarde me separei de Dioclécio. Esse sujeito, por muito tempo, me cansa. Grosseria, mau-caratismo e senso comum em excesso”.
O romance é dividido em partes, quatro ao todo, cada uma com um título, e em capítulos, cada um também com seu respectivo título [“Pesquisa de campo”, “Os donos da cidade”, “Rock às margens do Velho Chico” etc.], que já adianta ao leitor o que irá ser tratado aí. O narrador da história é Alberto, como já foi dito, e, através do seu olhar ainda humanizado, podemos ter um recorte crítico da realidade e das ações empreendidas pelos envolvidos na trama. Embora o autor procure conduzir sua narrativa com segurança e agilidade, há alguns diálogos que se estendem demais e poderiam ser descartados em nome de uma maior fluidez da narrativa.

Gente pobre e seu destino

A narrativa de “Os Aliciadores” vai nos conduzindo pelos meandros do poder no interior brasileiro e expondo todas as suas mazelas. O romance, nesse aspecto, ganha uma importância grande, pois trata de um assunto nem sempre valorizado pelos nossos autores, quase sempre focados em dramas vividos por tipos brancos e da classe-média nos grandes centros urbanos do País. No romance do brasiliense Lourenço Dutra, professor de História e graduado também em Jornalismo, é o povão desamparado que aparece na mira dos políticos aproveitadores, como Jorge Boriz. E o que se cobra dessas pessoas, prisioneiras das necessidades mais básicas, é que ajudem os poderosos a manterem sua hegemonia política. Em tempo de eleição, esta pode ser uma leitura bastante instigante. Fica então o convite para que o leitor [também eleitor] mergulhe na trama dessa obra que mistura ação, violência, sexo, amor, crítica social e sátira, para chegar, enfim, ao Brasil profundo, sinônimo de atraso e corrupção.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.