Uberização cria condições precárias de trabalho
18 agosto 2019 às 00h00
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A guerra entre tecnologia e trabalhadores é antiga, mas de seus conflitos surgiram os confortos modernos
Recentemente, motoristas de aplicativo foram autorizados a contribuir com a Previdência, registrando-se como microempreendedores individuais (MEI). Motoristas nos Estados Unidos, Grã-bretanha, Canadá, Brasil, Itália, Bélgica, França e outros países vêm protestando por melhores condições, remunerações e garantias trabalhistas. A tentativa do governo Brasileiro de abarcar a nova categoria de profissionais criada pelas startups é uma resposta a uma mudança, permitida pela tecnologia que acelera exponencialmente.
Segundo o estudo Síntese dos Indicadores Sociais, do IBGE, 40,8% da população brasileira se mantém com trabalhos informais, e a taxa representa um aumento na categoria equivalente a 1,2 milhões de pessoas desde a última pesquisa, em 2014. A incorporação de bicos possibilitados por aplicativos pelo mercado de trabalho ganharam um apelido: “uberização”, que geralmente vem associada à falta de regulamentação, prestação de serviços e neoliberalismo levado ao extremo.
Uma reportagem do britânico The Guardian mostrou como motoristas americanos são forçados a trabalhar o dia todo e viver dentro de seus carros, já que a concorrência em grandes cidades é extrema. O processo começa em outras áreas: aplicativos para ensino de idiomas, serviços de reparos em domicílio, e outros. Em reportagens, o Jornal Opção mostrou como os criadores das startups Mindify e Atestify automatizam trabalhos na área médica e eliminam a necessidade de diversos técnicos.
Altair Camargo, consultor do Centro de Empreendedorismo e Incubação da UFG e professor de marketing e mídias sociais, explica porque, mesmo com milhões de usuários, aplicativos como Uber têm dificuldade de financiamento. “Custo de desenvolvimento de plataforma, custo de servidores, muito custo com marketing. Redes sociais podem vender dados com fins de segmentar publicidade, mas outros aplicativos têm dificuldade de se manter”, ele afirma. “Muitas vezes, as startups têm de criar uma base grande de usuários, se consolidar, ganhar respeito e aí sim angariar dinheiro”.
Segundo a americana CNBC, a avaliação do Uber nos mercados públicos neste ano foi de US$ 75 bilhões. Entretanto, a empresa está longe de ganhar dinheiro, tendo tido perdas operacionais de US$ 3 bilhões em 2018 – e isso segue uma perda de US$ 4 bilhões em 2017. Ainda assim, analistas prevêem que o Uber eventualmente terá lucro. Provavelmente, em 2022, quando a empresa pretende ter 75 mil veículos autônomos em 13 cidades, começando assim a eliminar uma das categorias que mais emprega pessoas no mundo, a de motorista.
Como revelam os dados da Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD), ao longo das décadas, a quantidade de pessoas necessária para gerar riqueza caiu em um abismo aberto pela tecnologia. O dilema de regulamentar ou não a tecnologia para preservar postos de trabalho é antigo. O historiador Ademir Luiz lembra do movimento ludita, ocorrido na Inglaterra entre os anos de 1811 e 1812. O movimento pregava que os operários das indústrias quebrassem as novas máquinas a vapor da primeira revolução industrial, que lhes roubavam os empregos. Ademir Luiz afirma:
“José Saramago fala que se os luditas tivessem vencido, se criaria uma tradição de combater a tecnologia. Não haveria penicilina, o processo de fixação de nitrogênio que criou fertilizantes, mas que também fez dinamite. Não dá para controlar a tecnologia; a inovação é da própria natureza humana. As cidades têm um aspecto dual: muita gente violenta, suja, mas é onde se prospera, criam soluções pela troca de ideias”.
O economista Jeferson de Castro Vieira afirma que, embora o termo “uberização” seja recente, sempre existiram processos semelhantes. “Décadas atrás, antes do computador, a parte bruta do trabalho de contabilidade era terceirizada para a Índia. Por questão do fuso horário, escritórios mandavam cálculos para lá de noite e recebiam dados processados de manhã. Aconteceu o mesmo entre Japão e China. Arquitetos de grandes obras japonesas enviavam o grosso dos cálculos para trabalhadores chineses”.
Segundo Jeferson de Castro Vieira, o progresso é inevitável. O que tem de haver, já que o avanço da tecnologia é acompanhado por aumento do PIB, são políticas de garantias do Estado. “A Compensação pelo suprimento dos empregos por máquinas é a redução da jornada de trabalho, dedicação humana a atividades criativas. E a compensação pela falta de salários é a renda mínima”.
A renda mínima (também conhecida como U.B.I., universal basic income), pode ser entendida como distribuição de renda levada ao extremo. A ideia, trabalhada pelo economista Milton Friedman – um capitalista autodeclarado – no livro “Capitalismo e Liberdade” faz alusão ao plano como um imposto de renda negativo, que garante renda universal, a todos os cidadãos de uma sociedade sem necessidade de compensação por meio de trabalho.
Seus argumentos incluem: reduzir burocracia governamental com projetos de bem estar social; dar às pessoas vulneráveis a liberdade de decidir como gastar seu dinheiro ao invés de ter seus gastos apontados a elas pelo Estado; facilitar a saída dessas pessoas de programas sociais; e estimular o trabalho. O último ponto parece paradoxal, mas Milton Friedman argumenta que muitas pessoas não trabalham porque não têm o básico para buscar emprego, e além disso, que ninguém se contenta com o mínimo e é da natureza humana buscar melhorar sua própria condição ao invés de acomodar-se.
Jeferson de Castro Vieira afirma que algo semelhante começou a acontecer com o programa Bolsa Família, mas ainda não é abrangente para incorporar o impacto tecnológica no mercado de trabalho. O economista enumera a Alemanha, Canadá e países escandinavos como experiências nesse sentido que deram certo.
O historiador Ademir Luiz reflete, em tom otimista, sobre as alternativas deixadas com o avanço da tecnologia. Primeiro, caso seja criado um mecanismo que distribua a riqueza produzida em maior quantidade com a tecnologia, se economiza tempo que pode ser destinado ao ócio produtivo. Em segundo lugar, “Os luditas descendiam das corporações de ofícios medievais. Pense só: a Europa saiu do modelo de uma produção artesanal e entrou na era industrial. O ludita não necessariamente foi substituído pela máquina; alguns se especializaram e passaram a produzir artigos manufaturados de luxo”.