Um mesmo empregado terá de trabalhar em dobro (ou ganhar a metade) para gerar lucros, não mais para uma só empresa, mas para duas. Não existe almoço grátis

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Certamente haverá precarização da situação daqueles que, hoje empregados diretos, amanhã passarão a terceirizados

MARCELO ALCÂNTARA
Especial para o Jornal Opção

Este texto não tem a pretensão de esgotar o assunto e nem será uma exibição (chata) de polido “juridiquês”. Trata-se de uma opinião ainda às cegas, haja vista a análise do projeto de lei em comento pelo Senado da República, cuja Casa já o recebeu e seu presidente, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), promete deitar sobre ele suas atenções — literalmente, digo. Logo, trabalharemos com o que temos, o resto é especulação.

Em 26 de outubro de 2004, o deputado federal Sandro Mabel, da bancada goiana e então no PL, conhecido e bem-sucedido empresário brasileiro, apresentou à Câmara dos Deputados, em Brasília, o projeto de lei 4330/2004, cuja ementa esclarece que “dispõe sobre o contrato de prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes”.

Tal projeto já sofreu, pasmem, 240 emendas e, em seu texto, tentou-se agregar, ainda, o contido em outros sete projetos de lei diferentes, todos tratando do mesmo assunto, os quais, após a aprovação pela Câmara deste em comento, os demais restaram prejudicados.

Como o leitor certamente pode perceber, o terreno é pantanoso. Interesses dos empresários e dos trabalhadores digladiam em torno do assunto. De um lado, os defensores dos empregados alegando o fim da relação de emprego tal como hoje conhecemos. Um retrocesso, uma barbárie, a volta aos tempos de escuridão.

Do outro, os defensores do empresariado (salivante com as possibilidades que se abrirão para redução de seus custos) e, claro, os já terceirizados, defendendo a regulamentação do assunto (torcendo para que sua piscina fria fique cada vez mais cheia de gente).

Segundo esses dois últimos, o projeto traria a vantagem de resguardar os interesses sociais, seja diminuindo os custos das empresas e, por isso, protegendo os empregados aos livrarem de demissões que visem a enxugar a folha e a diminuir os custos (claro, para aumentar os lucros), seja protegendo quem já é terceirizado, ao lançar luz sobre a questão.

Uns e outros, todavia, não estão dizendo a verdade. Ao menos, não ela toda. Não se trata de voltarmos à escravidão. Não é isso. Pelo menos, não para todos, já que funcionários públicos e de estatais estão, por ora, fora da frigideira. Também não se trata de diminuir os custos empresariais tanto assim, já que existe um limite mínimo para o número de empregados necessários para viabilizar a atividade empresarial.

Igualmente presente, e bastante relevante para os tomadores dos serviços, é o risco de angariar um belo passivo trabalhista, um monstruoso esqueleto a minar a saúde e a viabilidade da empresa, pois quem fizer uso dessa força de trabalho responderá solidariamente (conforme ensinava o bom Tim Maia: “Eu e você, você e eu. Juntinhos! Você e eu, eu e você”) por seus custos, isto é, poderá arcar com a conta. Talvez, sozinha, a depender da saúde patrimonial da prestadora dos serviços e seus sócios. E se esses, por exemplo, forem propensos a uma marota fraude contra credores, não colocando bem algum no próprio nome, hein? Upa, lelê.

Outro ponto negativo é que o tomador também não terá controle efetivo sobre sua força de trabalho (um dos trunfos das empresas para retenção de talentos), já que o dono dela será o prestador de serviços que, ao sabor dos ventos de quem pague mais, poderá deslocar tal força, no todo ou em parte, para outras empresas.

Por fim, não se trata de apenas regrar as terceirizações já existentes. O que se pretende é terceirizar tudo! Todas as atividades realizadas em uma empresa — sejam para possibilitar alcançar seu objetivo principal (atividades meio, tais como limpeza, segurança, jardinagem etc.), seja o próprio objetivo principal (atividades fim, por exemplo, caixas de banco, professores, vendedores etc.), dada a redação aprovada pela Câmara, (a qual, repita-se, poderá ser modificada no Senado) — poderão ser terceirizadas.

Ok, mas o que isso, de fato, quer dizer? O que muda na vida do trabalhador empregado? A relação de emprego vai ou não vai acabar? E o meu tutu? Ora, significa que um mesmo empregado terá de trabalhar em dobro (ou ganhar a metade) para gerar lucros, não mais para uma só empresa, mas para duas. Na prática, é isso. Não existe almoço grátis, como ensina a economia.

Esse sujeito deixará de ser empregado da empresa para a qual dispende diretamente sua força de trabalho para ser empregado da empresa prestadora de serviços que fornecerá à primeira a mão de obra de que ela necessita. É fato, e já afirmamos acima, que há muito existem empregados nesta condição. Empregados da área de limpeza, segurança, portaria, dentre outros, já vivem essa realidade.

Para esses, a regulamentação é bem-vinda, ainda que, na prática, mude pouca coisa (vale notar: “pouco” não quer dizer “irrelevante”). Outra questão é a “pejotização”, de PJ mesmo. Enfrentamos, hoje, esse fenômeno esquisito como o nome. Empregados que são demitidos já com a orientação de criar uma empresa (pessoa jurídica, daí o PJ e a “pejotização”) para ele mesmo (por isso não é terceirização) prestar serviços a seu “ex”- empregador.

O Tribunal Superior do Tra­balho (TST), em sua Súmula 331, traz o resumo do entendimento do judiciário trabalhista acerca desses assuntos. Não é perfeita, mas tem protegido terceirizados e “pejotizados” há vários anos. Então, por qual motivo regulamentar o assunto, já que a última palavra é sempre do Judiciário?
É o seguinte: o Direito, dentre outras coisas, objetiva a pacificação social. Se as regras forem claras e as pessoas as cumprirem espontaneamente, não será necessário buscar o Poder Judiciário para solucionar o conflito de interesses, já que este não existirá. Simples assim.

Nesta senda, parece haver uma tentativa de esclarecimento do assunto, mesclada a uma proteção aos já terceirizados, acrescida da possibilidade de terceirizar (esta sim, uma terceirização nefasta) as atividades fim.

Não se trata, pois, do fim das relações de emprego, como alguns profetas do apocalipse têm alardeado, já que elas continuarão a existir. Entretanto, certamente haverá precarização da situação daqueles que, hoje empregados diretos, amanhã passarão a terceirizados.

Até aqui, mantivemos distância da tentação de julgar o valor, a motivação, as reais intenções que perpassam a alma do empresariado, fortemente engajado para a aprovação do projeto. Mas será mesmo que a sede por lucros, somada às brechas da legislação e aos obscuros vãos e desvãos das relações sociais, não será uma tentação forte demais para ser resistida? A conferir.

Tem o Senado a grande oportunidade de aquilatar os prós e os contras e apresentar à sociedade um texto mais equilibrado. Lembrando que, como se trata de um assunto de índole constitucional, nada impede que ele seja, posteriormente, objeto de apreciação por parte da maior corte de justiça de nosso País, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Fico pensando: veremos, novamente, o Judiciário se sobrepor ao legislador para conter seus excessos? A lei da terceirização agravará o fenômeno da “pejotização”? Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

Marcelo Alcântara é advogado, professor de “Aspectos Legais nas Rotinas de Departamento de Pessoal” no MBA Gestão de Pessoas por Competências, Indicadores e Resultados do Instituto de Pós-Graduação e Graduação (Ipog).