Rede de saúde mental sofre com preconceito e abandono histórico, mas resiste com cuidado humanizado

26 julho 2025 às 21h00

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Por trás das paredes desgastadas e do silêncio das salas de espera nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Goiânia, uma rede complexa de cuidados em saúde mental tenta resistir à precariedade e o baixo investimento. Faltam profissionais, insumos básicos, medicamentos essenciais e até computadores para o registro e o repasse de dados ao Ministério da Saúde. O que sobra é a luta cotidiana de usuários, trabalhadores e especialistas para garantir um atendimento mais humano, acolhedor e digno.

Segundo especialistas, a capital enfrenta uma crise estrutural na política de saúde mental, marcada pelo subfinanciamento, má gestão e descaso político que se ampliou na última administração municipal.
O psicólogo sanitarista Marco Aurélio Lima, especialista em saúde coletiva e presidente da Comissão de Saúde Hospitalar do Conselho de Psicologia de Goiás, contextualiza o papel dos CAPS dentro da Reforma Psiquiátrica. “É uma política baseada no cuidado com liberdade, que rompe com a lógica dos hospitais psiquiátricos e propõe acolhimento territorial, em equipe multiprofissional, com projeto terapêutico singular.”
Goiânia, segundo ele, ainda tem uma estrutura insuficiente diante da demanda. “Faltam CAPS, faltam profissionais. A pandemia escancarou isso. Além de psicólogo e psiquiatra, é preciso educador físico, pedagogo, terapeuta ocupacional, assistente social. E o CAPS tem que estar perto de onde o paciente vive, porque isso faz diferença no vínculo e na adesão ao tratamento.”

Para Lima, a ideia de saúde mental precisa ser desconectada do estigma da “loucura”. “Não é frescura. A população passou a buscar atendimento depois da pandemia. Mas, se ao chegar vê que falta tudo, se desilude e só volta na emergência — que é mais caro e menos eficaz.”
Ele reforça que as comunidades terapêuticas, muitas vezes financiadas com dinheiro público, são ambientes de violação de direitos. “Há denúncias de cárcere privado, trabalho forçado (laborterapia), localização em áreas rurais isoladas, sem profissionais qualificados. Ao contrário dos CAPS, que trabalham pela reinserção social, essas instituições promovem o isolamento e o apagamento do sujeito.”
Estigmas
Lima lembra que atendimento em saúde mental ainda enfrenta estigmas sociais. “Não é frescura. As pessoas começaram a buscar atendimento psicológico depois da pandemia, perceberam que não é só para ‘louco’. Mas quando chegam no serviço e veem que não tem profissional, que falta medicamento, o descrédito se instala”, explica

Entre as soluções apontadas, estão o aumento do número de CAPs, a capacitação contínua das equipes, valorização profissional com planos de carreira, articulação com a atenção básica e criação de projetos terapêuticos personalizados. Marco Aurélio defende que o cuidado seja integrado à política de assistência social e à geração de renda, pois o empoderamento do paciente é fundamental para o sucesso terapêutico.
“O atendimento deve ser próximo da casa do usuário, com vínculo, liberdade e dignidade. E não uma reclusão forçada em comunidades terapêuticas. A política de saúde mental precisa ser fortalecida com base na escuta, acolhimento e humanidade. Não podemos retroceder”.
Memes e ataques velados nas redes sociais
Outra preocupação destacada tanto pelo gerente de saúde mental de Goiânia, Roberto Vaz, quanto pelo psicólogo Marco Aurélio Lima, é o crescente número de memes e piadas disseminadas nas redes sociais que fazem referência ao CAPS de forma estigmatizante.
Expressões como “vou te mandar pro CAPS”, “o fulano fugiu do CAPS” ou “parece que esqueceu de tomar o remedinho” são usadas de maneira pejorativa para ridicularizar comportamentos considerados excêntricos ou fora da norma. Embora muitas dessas frases sejam tratadas como brincadeiras inocentes, elas reforçam estigmas profundamente arraigados sobre o sofrimento psíquico e os espaços de cuidado em saúde mental, além de contribuírem para o afastamento da população desses serviços, por medo de julgamento, vergonha ou desinformação.
Essas manifestações humorísticas estão enraizadas em um imaginário social construído ao longo de décadas de internações compulsórias em hospitais psiquiátricos, muitas vezes marcadas por violência, isolamento e violação de direitos. Por outro lado, campanhas e movimentos buscam reforçar a importância do serviço e lutam por uma sociedade que compreenda que sofrimento psíquico não é sinônimo de anormalidade ou desvio, mas uma condição humana que requer escuta, cuidado e respeito.
CAPS residência no Novo Mundo
Apesar das dificuldades enfrentadas pela rede pública, há exemplos de dedicação e práticas inovadoras que resistem ao colapso. No CAPS III Novo Mundo, que conta com residência terapêutica, a proposta é garantir um espaço de acolhimento contínuo, inserido no território e voltado para a autonomia do usuário. O local conta com uma pequena biblioteca, que precisa de doações de livros, área de convivência e oficinas, além de uma área externa fresca e agradável cercada por árvores e sombra.

A gerente da unidade, Consuelo Guilardi, que atua no serviço há 25 anos, explica que o atendimento é multiprofissional e inclui psiquiatras, psicólogos, técnicos e terapeutas. “A prioridade dessa unidade é a criação do vínculo do usuário com os técnicos, com o médico e os profissionais que atendem aqui”, relata.
Consuelo detalha que, por ser um CAPS III, o local funciona em horário comercial, mas conta com acolhimento noturno de até 15 dias para pessoas em crise, com possibilidade de extensão em casos específicos. “O objetivo é evitar a crise ou a internação hospitalar. O usuário pode permanecer conosco nesse período, com suporte técnico, até se estabilizar”, explica.

Além disso, a residência terapêutica associada ao CAPS permite que alguns usuários morem no local por tempo indeterminado, com supervisão contínua, como parte do processo de transição para a vida autônoma. “A residência não é para isolar. Eles precisam vivenciar outros espaços, frequentar clubes, ir ao cinema, ao museu. Isso contribui muito para o tratamento”, afirma.
Para Consuelo, a convivência e a inserção comunitária são tão terapêuticas quanto a medicação. “Temos pacientes que vêm todos os dias, mesmo sem demanda clínica, só para conviver, socializar. Isso mostra a carência de outros dispositivos no território capazes de acolher suas limitações. Precisamos expandir os centros de convivência. O ideal seria ter ao menos um em cada distrito sanitário de Goiânia”, defende.
Demanda crescente e infraestrutura insuficiente
O prédio do CAPS Vassily Chuc, uma das unidades mais importantes da capital, está deteriorado. Segundo Roberto Vaz, gerente de Saúde Mental de Goiânia, o imóvel é alugado e chegou a ser desapropriado e leiloado, mas o processo parou. “Como era alugado, a responsabilidade pela manutenção era do proprietário”, explica. Ainda assim, a unidade segue com capacidade de atendimento de até 30 pacientes por turno.

O problema, contudo, não é só físico. O crescimento da demanda, impulsionado por múltiplos fatores como a pandemia de Covid-19, o aumento no uso de álcool, cigarro, drogas lícitas e ilícitas, o vício em jogos de azar e os impactos das novas tecnologias, tem pressionado o sistema. “A prevenção, o tratamento justo e o acolhimento têm um custo imensurável, tanto humano quanto financeiro”, afirma Roberto.
Além da precariedade visível, há entraves invisíveis: a subnotificação de atendimentos devido à falta de computadores para registro e envio de dados ao Ministério da Saúde, o que compromete o repasse de recursos federais. Segundo ele, a regulação do sistema também foi afetada negativamente desde que a gestão de algumas unidades passou para o Estado.

Ainda assim, o atual modelo de gestão apresenta mudanças. Roberto destaca que a nomeação das gerências de saúde mental, antes atreladas a indicações políticas sem critérios técnicos, passou a ocorrer com mais cuidado a partir de sua chegada ao cargo. Uma das diretrizes da nova gestão, segundo ele, é reforçar o acolhimento nos casos de recaída, evitando rupturas nos vínculos terapêuticos.
Habilitação junto ao Ministério da Saúde
Com a retomada da Coordenação Nacional de Saúde Mental pelo Ministério da Saúde, sob a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia trabalha para habilitar oficialmente diversas unidades da rede psicossocial, o que permitiria ampliar o financiamento federal e fortalecer os serviços existentes. De acordo com o gerente de saúde mental do município, Roberto Vaz, a cidade pretende regularizar a situação de cinco CAPS que ainda não têm habilitação formal junto à União: CAPSP, CAPS Cativar, CAPS Liberdade, CAPS Noroeste e CAPS AD Oeste.

Roberto explica que a habilitação depende da conformidade com normas técnicas e da publicação de novas portarias federais. “A gente teve reunião com a Natália, que é gerente estadual de saúde mental, e ela explicou que ainda não saiu a portaria que define os procedimentos do centro de convivência, como registrar os profissionais, o que pode ser considerado atividade. Sem isso, não dá pra habilitar o ‘Cuca Fresca’, por exemplo”, afirma.
Segundo ele, além das exigências formais, há também questões estruturais. “O centro de convivência não pode ser anexo a outro serviço. Ele tem que estar em um espaço independente. No caso do Cuca Fresca, ele fica ao lado do ambulatório de psiquiatria, então hoje ele não pode ser habilitado.”
A habilitação das unidades não é apenas um trâmite burocrático — ela impacta diretamente o financiamento, a contratação de profissionais, a estabilidade da rede e o reconhecimento da política de saúde mental em âmbito federal. Sem esse vínculo formal, as unidades seguem funcionando com recursos municipais, o que sobrecarrega o orçamento local e limita a expansão dos serviços.
Realidade de abandono
Apesar do modelo proposto, a realidade é outra. Vanete Resende, da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Aussum), relata que os serviços ficaram “abandonados” durante a gestão do ex-prefeito Rogério Cruz (SD) e permanecem desestruturados sob o atual governo. “Falta até o básico, como soro. Falta remédio, principalmente para quem está em tratamento contra dependência química”, denuncia.

Ela relata ainda a ausência de capacitação específica para os profissionais, o que compromete o atendimento em momentos críticos. “Muitas vezes uma pessoa tem um surto psicológico e os profissionais não sabem como agir, porque não foram treinados para isso”, afirma.
Além da falta de estrutura, há risco de despejo de algumas unidades por inadimplência do município com os proprietários dos imóveis alugados. A ameaça de fechamento de CAPS em decorrência de dívidas herdadas da gestão anterior gera insegurança e interrompe tratamentos.
“Esse abandono acaba empurrando as famílias para comunidades terapêuticas, que muitas vezes praticam abuso, tortura e castigo. Não têm médicos, só isolamento. É um manicômio disfarçado. Um retrocesso”, alerta Vanete.
As comunidades terapêuticas e a violação de direitos
A preocupação com o crescimento das comunidades terapêuticas também é compartilhada por Marco Aurélio. Segundo ele, o Conselho Regional de Psicologia de Goiás, em parceria com o Ministério Público e a Vigilância Sanitária, identificou uma série de irregularidades nesses espaços. Em 2025, por exemplo, 28 dessas instituições foram fechadas no município de Anápolis.
“As denúncias vão de cárcere privado a trabalho forçado, a chamada laborterapia. Essas comunidades estão em áreas rurais, isoladas, e os pacientes ficam anos sem contato com o mundo exterior. Isso é o oposto do que propõe o CAPS, que trabalha com autonomia e protagonismo”, enfatiza.
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