Tratamento de saúde mental em Goiás trava em meio a debate ideológico

15 agosto 2023 às 08h09

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De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES GO), o governo de Goiás vai lançar um edital de chamamento para seleção de Comunidades Terapêuticas (CT). O alto investimento nas comunidades, no entanto, tem gerado conflito entre os representantes da saúde mental no Estado, que afirmam que essas unidades não prestam serviço de saúde. Em tese, elas prestam serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas (SPA) que funcionam em regime de residência, e o regime terapêutico seria a convivência entre os pares e espiritualidade. Contudo, na prática, elas se transformaram em cenários de violações de direitos humanos e funcionam sem acompanhamento ou fiscalização. Para complicar, existem visões antagônicas para o tratamento de dependentes químicos no País: aqueles que defendem tratamento humanizado e em convivência social e os defendem internação.
“Há uma necessidade enorme em rever os investimentos que são feitos nas comunidades terapêuticas, hoje completamente jogadas ao léu, sem estrutura nenhuma. Precisamos investir menos em estruturas como comunidades e Credeqs, e mais em Caps”, explica a presidente do Sindsaúde, Néia Vieira. O Sindicato dos Trabalhadores do Sistema Único de Saúde no Estado (Sindsaúde), juntamente com a Gerência de Saúde Mental, são os principais representantes da luta antimanicominal em Goiás.
De acordo com o Sindicato, é preciso enxergar a desospitalização dos pacientes como uma necessidade da garantia de direitos desses usuários à saúde mental. Para a Associação Psiquiátrica de Goiás, o embate ideológico e o fechamentos de leitos de psiquiatria têm gerado falha na assistência a quem precisa de atendimento.
Apesar de destinar recursos para às comunidades, o governo de Goiás reconhece que as unidades não prestam o atendimento adequado aos pacientes com transtornos mentais. A superintendente de Políticas e Atenção Integral à Saúde de Goiás, Paula dos Santos Pereira, reitera que as residências terapêuticas não são unidades de saúde e não possuem Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES).
“O valor repassado às comunidades vem do tesouro nacional e é pequeno. Há cinco anos foi feita essa licitação em relação às comunidades e temos que manter esse processo. Aquelas que têm convênio com a SES são monitoradas para que façam minimamente o que deve ser feito pra assistência ao paciente. Nesse novo chamamento, estamos tendo o cuidado de ter mais critérios e que esse monitoramento seja mais rigoroso”, assinala Paula dos Santos.
A superintendente informa que o Estado de Goiás passa por uma “situação muito complexa” na saúde mental. Além do adoecimento mental cada vez maior, a população tem sofrido com falta de infraestrutura, insumos, medicamentos e com uma rede primária sucateada.
Rede de Atenção Psicossocial precisa ser fortalecida
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) corresponde a um conjunto articulado de diferentes pontos de atenção à saúde, instituída para acolher pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Os principais atendimentos da Rede são realizados nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e as Unidades de Acolhimento (UA).
“Precisamos resolver e organizar a assistência à saúde mental na atenção primária. Porque muitas vezes alguns casos que chegam no Caps poderiam ter sido direcionados à atenção primária. É necessário reestruturar essas unidades porque algumas têm estruturas físicas pequenas ou não têm equipe suficiente”, explicou a superintendente de Políticas e Atenção Integral à Saúde.
Em Goiânia, existem 12 CAPS em funcionamento, segundo a prefeitura do município. Já Aparecida de Goiânia conta com 4 unidades. As cidades do interior de Goiás sofrem ainda mais porque, de acordo com a portaria para a implementação dos Caps, a implantação depende de um quantitativo de população. Muitas vezes, os municípios não conseguem nem fazer a implantação de um Caps I, que é o mais básico dos Centros de Atenção Psicossocial.
Dessa forma, as cidades acabam criando um Caps regional — e a unidade de um município atende várias cidades em volta. “Essa situação está longe do ideal porque, além de lidar com transtornos mentais, os pacientes ainda enfrentam um desgaste muito grande de deslocamento até essas unidades”, diz Paula dos Santos.
O vice-presidente da Associação Psiquiátrica de Goiás, Tiago Batista, explica que o porquê das comunidades terapêuticas surgirem como alternativa. “Como as CT não são unidades públicas, o valor do repasse deve cobrir todos os gastos, inclusive a folha de pagamento. Já nos Caps esse custo de folha de pagamento de pessoal e outros (aluguel, água, energia, telefonia, etc.) ficam diluídos no gasto municipal, o que dificulta a análise do custo total da unidade.”
Comunidades terapêuticas são alvos de investigação
Na terça-feira, 1º de agosto, a Polícia Civil do Estado de Goiás deflagrou a Operação Falsos Profetas, responsável por desarticular o funcionamento de uma comunidade terapêutica em Abadia de Goiás. O local funcionava como uma clínica ilegal de internação forçada de dependentes químicos. Ao todo, o local abrigava 38 homens, que eram mantidos em cárcere privado, de acordo com a polícia.

No início do mês de julho, uma operação do Ministério Público de Goiás, juntamente às vigilâncias sanitárias estadual e municipal, inspecionou comunidades terapêuticas na cidade de Catalão, levando à interdição de duas unidades. Durante as visitas, o MP comprovou a realização de internações involuntárias e indícios da prática de delitos de sequestro, cárcere privado e lesão corporal.
“O processo de desospitalização é uma necessidade para garantir os direitos desses usuários da saúde mental. Se não houver investimentos nos Caps e no cuidado em liberdade dos pacientes psíquicos, sejam dependentes químicos ou pacientes com transtornos, não se tem como avançar no tratamento. O investimento feito é uma inversão da política da luta antimanicomial”, posiciona-se a presidente do Sindsaúde, Néia Vieira.
Para ela, há uma falta de decisão política de garantir que a assistência em saúde mental seja feita conforme a Reforma Psiquiátrica propõe. A Reforma, ocorrida no final dos anos 70, foi feita para que as pessoas com transtornos mentais e os usuários de álcool e drogas tivessem seus direitos resguardados. Ela teve como marca registrada o fechamento gradual de manicômios e hospícios no país e, mesmo depois de 20 anos, ainda divide opiniões.
“Precisamos de espaços livres em que a pessoa possa ressocializar, possa conviver e produzir. Hoje as pessoas estão sendo depositadas em espaços onde não há a menor garantia que serão tratadas com dignidade. Não há sequer um tratamento técnico”, sublinha Néia Vieira.
Uma articulação do Ministério Público levou o município de Goiânia a estruturar e oferecer uma página na internet — com link direto disponível também no site do MP — para reunir informações atualizadas referentes às comunidades de atendimento terapêutico na capital (clique para acessar a página).
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