“Que bobagem!”: de pesquisadora, Pasternak se torna militante da causa científica

13 agosto 2023 às 00h01

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O casal pode até negar, mas, ao lançar Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério (Contexto, 2023, 400 p.), a microbiologista Natalia Pasternak e o jornalista Carlos Orsi assumiram o risco de “causar” diante de setores da comunidade científica. Como, é preciso dizer, haviam feito – de forma até bem sucedida, mas nem tanto como agora – em livros anteriores. Mais do que criticar práticas como homeopatia, acupuntura e psicanálise, eles a desprezaram – e, segundo acusaram alguns, sem o devido estofo para tal.
Orsi, de 52 anos, é formado pela tradicional Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), dedicou a carreira ao jornalismo científico e já havia escrito diversas obras dedicadas a uma divulgação engajada da ciência, como Pura Picaretagem (Leya, 2013, 176 p.), na qual aborda o charlatanismo quântico, em parceria com o físico Daniel Bezerra; Livro da Astrologia – Um Guia para Céticos, Curiosos e Indecisos (Amazon, 2015, 133 p.); O Livro dos Milagres: O Que de Fato Sabemos Sobre os Fenômenos Espantosos da Religião (Unesp, 2022, 201 p.); Ciência no cotidiano: Viva a razão. Abaixo a ignorância! (Contexto, 2020, 94 p.); e Contra a realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências (Papirus, 2021, 204 p.). Os dois últimos também foram em coautoria com sua mulher Natalia Pasternak, sendo que Ciência no Cotidiano ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura em sua categoria.
O jornalista também teve passagem importante pelo Grupo Estado e assinou na revista Galileu, de divulgação científica, a coluna Olhar Cético, em que tratava de pseudociências e outros temas polêmicos. Repare-se que Orsi não é um cientista, mas um experiente divulgador científico. São lugares próximos, mas claramente distintos.
Pasternak está completando o processo de transição de um papel para o outro. Doutora em microbiologia pela USP, ela também é colunista do jornal O Globo e da revista The Skeptic, do Reino Unido, entre outras publicações. Com o marido, fundou o Instituto Questão de Ciência, o qual preside e, segundo ela, é o primeiro no Brasil a se dedicar à promoção de “pensamento crítico e racional” e “políticas públicas baseadas em evidências científicas”.
Na apresentação de seu perfil na Plataforma Lattes, o cadastro oficial de todos os pesquisadores que atuam no Brasil, ela diz que “foca em comunicação científica e combate ao negacionismo e desinformação, trazendo o pensamento científico para o centro do debate público e ajudando a criar uma colaboração internacional para políticas globais baseadas em ciência”. Em 2006, havia obtido o grau de doutora em Microbiologia pela USP, com a tese “A regulação da Fosfatase Alcalina pelo fator sigma S da RNA polimerase de Escherichia coli”. Em suma, o que coloca ao público para identificá-la em seu perfil no Lattes nada mais tem a ver com sua pesquisa original.
Defensora taxativa das medidas tomadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na pandemia Pasternak foi uma das figuras de ponta do País durante os embates contra o negacionismo oficial. Chamada para entrevistas em praticamente todos os grandes veículos de comunicação, também participou do estúdio de vários programas. Em dezembro de 2020, quando o Brasil iniciava o que seria seu período mais crítico na crise da Covid-19, a microbiologista se tornou conhecida nacionalmente após perder a paciência ao vivo na bancada do Jornal da Cultura, da TV Cultura. Acabava de ser reproduzida no programa uma matéria sobre pessoas levarem com mais “leveza” o fato de outras se recusarem a usar máscaras, então item de proteção essencial para evitar a disseminação do coronavírus. Questionada sobre o que achara da reportagem, ela deu a resposta que a tornaria uma celebridade daqueles tempos: “Eu tô um pouco passada com o que eu escutei agora, porque eu escutei ‘humor’, ‘leveza’ e ‘evitar o estresse’. Então eu não posso falar pro outro fazer a coisa certa porque eu posso ficar estressado? Porque ele pode se ofender e porque eu tenho que tratar isso com leveza? Tem gente morrendo!”, desabafou.
Um ano depois, a arte imitaria a vida na comédia-catástrofe Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up (EUA, 2021), dirigida por Adam McKay e uma cena do filme, também em uma bancada de telejornal, com uma cientista indignada com a passividade diante do caos, remeteria exatamente àquele momento.
Com Que Bobagem!, Orsi e Pasternak conseguiram despertar a ira e notas de repúdio de várias categorias – inclusive, é preciso pontuar, de alguns conselhos profissionais que, adversários” defenderam a prescrição do tratamento precoce contra a Covid-19. Desde que o livro ganhou repercussão, por atacar – e a palavra é essa mesmo – áreas como homeopatia, acupuntura e (especialmente) psicanálise, por considerá-las pseudociências, a polêmica se instalou e foram vários os artigos e discussões levantadas nas mais diversas mídias.
Pseudociência é apenas outra forma de chamar algo que se pretende ciência, mas que não é. Portanto, é algo que beira o charlatanismo e chega até ele caso seja praticado com má-fé. No livro, além das três já citadas, estão outros nove temas que, segundo os autores, não passariam pelo crivo da ciência: astrologia, curas naturais, curas energéticas, modismos de dieta, paranormalidade, discos voadores, pseudoarqueologia, antroposofia e poder quântico.
Aqui está o ponto inicial de discordância e que levou à irritabilidade boa parte dos profissionais que têm como seu ofício atividades como a homeopatia, a acupuntura e a psicanálise: o livro colocou-os no mesmo balaio, por exemplo, de quem é adepto da ufologia (discos voadores).
Por mais que Orsi não seja um cientista propriamente dito, ela e Natalia têm, sem dúvida, “horas de voo” e autoridade para discutir as questões que propõem. Dessa forma, a TV Unicamp promoveu um debate para discutir o livro – e principalmente sua abordagem negativa da psicanálise –, promoveu um debate entre Carlos Orsi e o professor Mário Eduardo Costa Pereira, titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
“O debate entre a psicanálise e seus críticos mais densos ainda não aconteceu no Brasil e espero que o livro desperte isso”, disse o jornalista, ao que foi respondido por Mário Eduardo. “Na Unicamp, temos uma tradição de mais de 30 anos a respeito do debate sobre os fundamentos epistemológicos da psicanálise. Então, não é que haja um novo debate, mas um debate que está tendo outra perspectiva”.

Isso foi logo no início da conversa. A partir de então, o professor “encostou na parede” seu oponente Orsi, a partir dos princípios que são postos no livro. Basicamente, ele apresentou dados que “refutam a refutação” dos autores do livro: a de que não há trabalhos publicados nas grandes revistas científicas com conceitos modelizados de acordo com uma ciência empírico-experimental. E, em seguida, ele apresentou o resumo de um artigo publicado na renomada Science, o qual mostra com dados e imagens a aplicação da psicanálise em relação ao inconsciente psicodinâmico. Orsi admitiu desconhecer o estudo publicado. Mário Eduardo, então, se dirigiu diretamente ao oponente: “Será que vocês fizeram um trabalho adequado para fazer esse tipo de crítica?”. Em vários outros momentos do debate, o professor foi enfático na abordagem e apresentou outros trabalhos científicos que entravam no campo da psicanálise, um deles que chegou a ser capa de outra publicação do mais alto nível da ciência, a revista Nature.. Orsi tentava defender seu trabalho, mas era como um pugilista amador lutando contra um profissional. “Quantos artigos tem de trazer para vocês chegarem à conclusão de que a hipótese de que a psicanálise não pode se submeter a uma formalização controlável pela ciência está errada?”, questionou.
Mais do que isso, Mário Eduardo traz outra questão incômoda: é essa a única forma de fazer ciência? “Eles [Orsi e Pasternak] se colocam em uma espécie de Olimpo epistemológico: [para eles] há uma só ciência, no singular, um só método de verificação com o qual toda a comunidade científica toda está de acordo”, diz. “Do alto desse Olimpo, ‘aquilo’ é bobagem, ‘aquilo’ é pseudociência. Como se não houvesse um conflito nesse próprio ponto (…) é importante ter uma ciência em aberto, que viva dos fatos da vida. Por exemplo, tanto a neurociência foi influenciada pela psicanálise como vice-versa”.
Por fim, o “golpe final” do professor em Orsi, em uma alfinetada: “O que é uma verdadeira crítica da ciência e o que é uma pseudocrítica da ciência, que vem debater a respeito da repressão em psicanálise e desconhece que está publicado um modelo na Science, por exemplo.

Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) e doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Filicio Mulinari também não poupou críticas em seu canal A Filosofia Explica, com mais de 110 mil inscritos no YouTube. “Há um problema de erro categorial, colocando coisas muito diferentes sob o mesmo pretexto, muitas que nem pretendem ser ciência e, portanto, não podem ser consideradas pseudociências”, argumenta. É o que chama de “problema da demarcação”. “No século 20, o método das ciências naturais começa a ser questionado por não se adaptar a outras áreas, como as ciências humanas”, explica.
Então, Murinari empilha vários autores que discutiram a epistemologia da ciência em suas obras: Gaston Bachelard, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Karl Popper. Tudo para dizer que o ponto de Pasternak e Orsi está errado no princípio: ao discutir o que é ciência, a dupla “pisa na bola” na epistemologia da ciência. “Quando ela chama de ‘bobagem’, por exemplo, a psicanálise, não está sendo apenas arrogante, mas também ignorante”. Para ele, há uma visão extremamente positiva da ciência e uma pobreza em termos de filosofia da ciência.
Em última análise, o que fica é que, embora Natalia Pasternak contribua positivamente para a disseminação científica, ela parece se colocar de forma atabalhoada ao querer classificar o que é ou não é ciência. A complexidade é muito maior do que o livro Que Bobagem! quer rotular em uma abordagem polêmica e simplificadora. No fim, o risco é minar a integridade do campo científico e prejudicar o objetivo principal da comunicação na área: informar e educar com precisão e imparcialidade.