Pesquisadora discriminada pelo CNPq por ‘gestações’ modifica financiamento da Ciência

14 janeiro 2024 às 00h01

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No dia 26 de dezembro de 2023, Maria Caramez Carlotto, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), utilizou as redes sociais para denunciar discriminação de gênero em parecer do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A pesquisadora teve seu pedido de bolsa de produtividade recusado sob a justificativa de que “provavelmente suas gestações atrapalharam” a realização de pós-doutorado fora do país, “o que poderá ser compensado no futuro”.
A denúncia incentivou novos relatos de pareceres do CNPq que discriminam mulheres cientistas. Em outro caso, a professora Cibele Russo, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP São Carlos), teve sua bolsa recusada por baixa produtividade. O documento justifica a decisão apontando “pequeno número de alunos formados” orientados pela professora no período em que Cibele Russo foi mãe.
Em ainda mais um caso, a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto de Bioética Anis, utilizou suas redes sociais para dar voz a uma orientanda que sofreu a mesma discriminação. A orientanda de Débora Diniz teria tido sua bolsa produtividade cortada pelo atraso na entrega de relatórios. O fato teria ocorrido durante a pandemia e a pesquisadora teria indicado no resumo de seu projeto de pesquisa, bem como no texto de currículo. Ao recorrer da decisão via recurso, entretanto, o parecerista do CNPq teria alegado falta de “excelência” e “competitividade” da pesquisadora.
Estes são apenas três dos relatos que se acumulam. Uma breve busca nas redes sociais revela dezenas de casos similares, com documentos oficiais emitidos pelo próprio CNPq comprovando o viés da instituição de recusar bolsas para cientistas que tornam-se mães.
Em resposta à onda de denúncias, o CNPq publicou no dia 6 uma decisão que muda os critérios para avaliar pesquisadoras que se tornaram mães no processo de concessão de bolsas de produtividade. A partir de agora, o CNPq determina que o período de avaliação da produtividade científica de pesquisadoras que se tornaram mães seja estendido por dois anos para cada parto ou adoção.
Em resposta ao caso de Maria Caramez Carlotto, o Conselho admitiu o erro e disse que ter realizado pós-doutorado no exterior não é requisito para concorrer ao edital, e que usar a gravidez como justificativa para a reprovação é “expressar juízo de valor preconceituoso. Não é, portanto, compatível com os princípios que regem as políticas desta agência de fomento. A agência tem em suas normas, inclusive extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade”, se lê na nota informativa.
Isso quer dizer que se antes, num edital, a agência avaliava uma dessas pesquisadoras com base na sua produção por dois anos, por exemplo, ela agora as avaliará com base no trabalho feito no dobro do tempo. A agência afirmou: “Assim, ficam reduzidos os efeitos dessas responsabilidades [da maternidade] na análise comparativa entre outras propostas submetidas na mesma área”.
Como funciona o CNPq
A chamada bolsa de produtividade em pesquisa (ou Bolsa PQ) é uma forma de incentivo para os acadêmicos que são mais engajados na pesquisa científica e na publicação de artigos em periódicos de alta relevância. O sistema existe há mais de 30 anos e, oferecendo valores que vão de R$ 1 mil à R$ 1,5 mil reais, proporcionam um complemento de renda para pesquisadores e professores dedicados à orientação de pesquisa no país.
José Alexandre Felizola Diniz Filho é professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), onde foi Pró-Reitor de Pós-Graduação. Ele explica que, para julgar quais pesquisadores receberão bolsas, o CNPq envia currículos e projetos de pesquisa para avaliadores independentes (chamados de consultores ad hoc). “Neste ponto, o conselho pode perder um pouco do controle — são milhares de solicitações de bolsas e de pareceristas.”
O professor lembra ainda que áreas do conhecimento distintas valorizam elementos diferentes em projetos de pesquisa e currículos. É difícil atribuir um valor objetivo que funcione nas diversas áreas, por isso, cada comitê desenvolveu seus próprios padrões de julgamento dos candidatos. Uma das consequências deste fator é a falta de políticas afirmativas que protejam cientistas que se tornam mães em todas as áreas.
“O que aconteceu foi que um consultor ad hoc emitiu um parecer inaceitável”, diz José Alexandre Diniz. “O comitê não filtrou; deixou passar o comentário infeliz. A pessoa criticada, com razão, vazou o comentário para a imprensa. Agora, um grande debate sobre como mitigar esse prejuízo está acontecendo na comunidade. Pelo que tudo indica, o CNPq vai oficializar uma política que já existe em todo o mundo.”
Soluções
Segundo José Alexandre Diniz, universidades de todo o mundo já consideram as diferentes responsabilidades da maternidade para julgar solicitações de bolsas. Mas existem outras práticas que podem equilibrar a análise comparativa dos currículos e projetos de pesquisa. Uma outra agência de fomento da pesquisa científica no Brasil tem menos casos de discriminação em seu histórico. Trata-se da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O CNPq pode ser comparado em função à Capes, pois ambos órgãos têm o propósito de financiar a pesquisa científica no país com verba pública — sendo que o CNPq está subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e a Capes ao Ministério da Educação.
José Alexandre Diniz explica que, enquanto a Capes possui um comitê pequeno que envia solicitações para serem apreciadas por consultores independentes, a Capes possui comitês maiores que centralizam as avaliações em processos mais uniformes. Em vez de confiar a consultores independentes a tarefa de avaliar o pesquisador, a Capes avalia o próprio curso de pós-graduação em um procedimento padronizado.
O método da Capes não é isento de críticas, pois pode penalizar bons pesquisadores que estão instituições inferiores, mas permite a implementação de políticas de forma mais rápida e abrangente. As mães cientistas que são bolsistas da Capes já têm direito à prorrogação da vigência de suas bolsas desde 2019.