Pesquisador João Cezar alerta: “O bolsonarismo é pior do que o fascismo”
28 agosto 2022 às 00h00
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Professor titular de Literatura Comparada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e um dos grandes intelectuais do País, o pesquisador João Cezar de Castro Rocha não nega sua militância. Faz questão, porém, ao se situar na esquerda, de ressaltar: “Esquerda democrática”. E isso tem a ver menos com os diferentes matizes de esquerda do que com a necessidade de reforçar o adjetivo: os tempos são perigosos com o autoritarismo que se avizinha.
É nesse papel duplo, de acadêmico e militante, que João Cezar se tornou um dos pesquisadores mais procurados para participar de programas de canais progressistas nas redes sociais. Nos últimos anos, tornou-se referência em análises sobre a extrema-direita e o bolsonarismo, “sempre com honestidade intelectual”, como sempre enfatiza.
Com dois doutorados – um em Letras e outro em Literatura Comparada, este na Universidade de Stanford, onde teve aulas com o historiador francês René Girard – e vencedor de vários prêmios, ele se tornou especialista na obra de Machado de Assis e de William Shakespeare. Ele é autor do livro Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós-Político (Caminhos, 2001, 464 p.). Ele esteve em Goiânia na semana passada para participar do debate “Guerra cultural e defesa da democracia” na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), quando também foi lançada a coletânea “Desconstruir a Democracia — União de Amplas Forças Políticas e Sociais para a Luta Ideológica”, organizada pelo ex-deputado federal e mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) Aldo Arantes, com ensaios de vários autores. Antes, conversou com o Jornal Opção sobre como ele vê o momento atual da democracia no Brasil e no mundo. Os principais tópicos de sua fala estão reunidos aqui.
Extrema-direita internacionalista
Nas duas primeiras décadas do século 21, o grande fenômeno político foi o avanço transnacional da extrema-direita. Esse avanço tem duas características muito singulares. A primeira é, de fato, desconcertante – e a esquerda só agora começa a reagir a isso: é que a extrema-direita está chegando ao poder no mundo por meio de eleições livres e democráticas. Foi assim na Polônia, com Duda [Andrzej Duda, presidente reeleito do país]; na Hungria, com Viktor Orbán [presidente]; nas Filipinas, com Duterte [Rodrigo Duterte, presidente]; foi assim, também, na primeira eleição de Vladimir Putin [presidente da Rússia]. No primeiro mandato, seus governantes manietam as instituições democráticas e as corroem desde o seu interior, especialmente o Poder Judiciário. Uma vez que esse processo se completa, é dificílimo tirá-los do poder, porque acabam por aparelhar todo o sistema.
Resposta de [Viktor] Órban: se adequem ou desapareçam. Quem no Brasil adotou esse discurso desde a campanha de 2018 e o repete sempre que pode?
A “democracia” de Órban
Democracia é um regime político salvaguarda os direitos das minorias, a tal ponto que em todos os Parlamentos do mundo existe o instrumento da obstrução, para evitar que as maiorias acabem com qualquer possibilidade de oposição. Mas, para Viktor Órban, a vitória por 50% mais um voto isso autorizaria seu partido a impor seu projeto na totalidade. É o conceito de “democracia majoritária”, que poderia ser tomado como verdadeira metáfora de toda a extrema-direita, porque sua estratégia rumo ao poder é sempre baseada em paradoxos: despolitizam a “pólis” para chegar ao poder político; lá, tornam a democracia apenas uma fachada. Fica a pergunta: e os outros 49,9% que não votaram nesse projeto? Resposta de Órban: se adequem ou desapareçam. Quem no Brasil adotou esse discurso desde a campanha de 2018 e o repete sempre que pode?
Bolsonarismo versus fascismo
Faz-se muita comparação entre bolsonarismo e experiências totalitárias. Pois eu digo, do ponto de vista objetivo e não como alguém do campo da esquerda democrática: o bolsonarismo é pior do que o fascismo. Isso porque toda experiência totalitária do século 20, aí incluído o fascismo, tinha inicialmente a tentativa de converter o outro, de torná-lo membro do fascio (que significa “feixe”, em italiano). Já o bolsonarismo diz: ou as minorias se adequam – isto é, deixam de ser o que são para ser um “retrato de mim” – ou devem desaparecer. “Vamos fuzilar a petralhada do Acre” não é um jogo de linguagem, mas a expressão fiel de uma filosofia política que não aceita que nada que não seja espelho tenha direito à existência. Vou repetir: isso é pior do que o fascismo.
“A extrema-direita aprendeu a conquistar corações e mentes”
Retórica do ódio
É preciso dizer com honestidade intelectual: a grande novidade do século 21 é que a direita aprendeu a conquistar corações e mentes. Essa sedução pelo discurso, essa criação de uma utopia de sociedade ideal era, para alguém da minha geração, uma prerrogativa da esquerda. A extrema-direita conseguiu se tornar desejável, apesar de ter um discurso odioso, no sentido próprio do termo. A retórica do ódio é o motor de sua linguagem e, por essa expressão, entenda-se o discurso que vê no outro um inimigo a ser eliminado. Esse discurso hoje é desejável para uma porção nada pequena da população brasileira – Jair Bolsonaro mantém 20% de eleitorado cativo, que pode chegar a 30%. É uma realidade dolorosa, mas, como intelectuais, precisamos enfrentá-la como ela é.
Horror ao diferente
Há um dado que é anedótico e que é quase caricatural, mas nossa tarefa é transformar isso em caracterização desse projeto: um general, Luiz Eduardo Ramos [então ministro-chefe da Casa Civil, hoje secretário-geral da Presidência], se vacinou escondido. É inconcebível que um general faça isso para se esconder de um capitão. É uma absoluta ausência de hierarquia, de racionalidade e uma incapacidade completa de lidar com qualquer espécie de diferença. É isso que o bolsonarismo representa.
Carisma de Bolsonaro
Bolsonaro é um político com um carisma que nenhum de nós foi capaz de imaginar. Um medíocre do baixo clero, incapaz de reunir três frases com lógica, um homem com evidentes problemas cognitivos, claras limitações intelectuais… e, veja, eu o estou descrevendo de maneira objetiva. Pois este homem é capaz de despertar hoje, no País, paixões políticas de caráter messiânico. Nenhum de nós antecipou isso. Estávamos errados. No trabalho que eu faço, o mais importante para mim é não menosprezar ou caricaturar a extrema-direita, em nenhuma circunstância. Foi justamente esse impulso que permitiu a eleição de Bolsonaro.
“Midiosfera” bolsonarista
Repare no material de apoio a Bolsonaro que está nas redes sociais e em seus grupos de WhatsApp – eu participo de três, de forma secreta. A diagramação, o layout, os grafismos, é tudo tosco. Mas vamos esquecer tudo isso: o que está em jogo hoje é a criação sistemática de dissonância cognitiva coletiva em um plano inédito. É razoavelmente simples explicar: há um acordo entre os bolsonaristas de só se informar naquilo a que eu chamo de “midiosfera extremista”. Ela é formada por quatro elementos internos e um externo. Os quatro internos são: 1) as correntes multitudinárias de WhatApp – e todos sabemos o impacto que elas tiveram em 2018; 2) o universo das redes sociais; 3) um circuito integrado de canais de YouTube de bolsonaristas e extremistas de direita, que produz fake news e teorias conspiracionistas 24 horas por dia; por último, aplicativos que reúnem tudo sobre Jair Bolsonaro, como a Bolsonaro TV.
O efeito disso é a criação inédita de uma realidade paralela. Eles são pressionados a recusar qualquer fonte de informação que não seja de sua midiosfera
Para ter ideia, entre os dias 6 e 8 de setembro de 2021, precisei reiniciar meu telefone três vezes, tamanha era a quantidade de mensagens que recebi, naquele frenesi do golpe que não aconteceu. O quinto elemento, externo, é a mídia amiga, cujo maior exemplo é o grupo Jovem Pan, que dá voz a teorias conspiratórias absurdas, como sobre vacinas e urnas eletrônicas. Isso, quando veiculado com a ideia de “estamos apenas questionando”, retorna como um tsunami nos grupos bolsonaristas, por meio de cortes de 30 ou 40 segundos, espalhando as dúvidas. O circuito se fecha. O efeito disso é a criação inédita de uma realidade paralela. Eles são pressionados a recusar qualquer fonte de informação que não seja de sua midiosfera.