Pandemia de HIV/AIDS ensina a combater a varíola dos macacos

24 julho 2022 às 00h00

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A varíola dos macacos é uma doença endêmica em 12 países da África Central e Ocidental. Mas em maio, autoridades de saúde pública em Londres relataram seis casos em pessoas que não viajaram para países endêmicos. O número de casos internacionalmente aumentou nas semanas seguintes, chegando agora a mais de 16.000 em mais de 75 países da Europa, América do Norte e do Sul, Oriente Médio, novas partes da África, sul da Ásia e Austrália. Os Estados Unidos registraram quase 2.900 casos.
A Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO) comunicou que existem 12 casos confirmados da varíola dos macacos (monkeypox) no estado. O boletim divulgado pela pasta contabiliza ainda mais uma situação considerada “provável” e 16 outros casos suspeitos. Todos os casos confirmados são de homens entre 26 e 43 anos. Ao todo, no Brasil foram confirmados 607 casos da varíola do macaco, enquanto o mundo chegou à marca de quase 16 mil ocorrências da doença.
Estigma gay
Marcelo Daher é médico infectologista, responsável pelo programa municipal de DST/AIDS e hepatites virais em Anápolis. O médico lembra das lições aprendidas com a pandemia de HIV, e afirma que não podemos cometer os mesmos erros novamente. Como as infecções estão acontecendo principalmente na comunidade LGBTQIA +, em especial entre homens que se relacionam sexualmente com outros homens, há o medo da estigmatização que ocorreu durante a epidemia de AIDS.
Entretanto, Marcelo Daher comenta que essa comunidade tem o direito de saber os riscos que corre, e que alertar para os cuidados necessários não significa reforçar a discriminação. O fato é que, no Reino Unido, primeiro país não africano a confirmar casos da varíola dos macacos, de 152 pacientes que responderam questionários a pedido da Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido (UKHSA), 151 responderam que eram homens homossexuais ou bissexuais.
Este padrão tem se repetido também em outros países. Os estudos articulados por universidades britânicas chegaram à hipótese de que o vírus adentrou em redes sexuais altamente interconectadas da comunidade gay, o que poderia explicar o avanço da doença nesse grupo e não na população em geral. A disseminação, portanto, ocorreria por uma questão circunstancial – o que significa que outros indivíduos fora desse grupo mais afetado em um primeiro momento são igualmente suscetíveis a contrair a doença, uma vez que sua contaminação não está relacionada à forma como o sexo é praticado.

Monkeypox não é uma infecção sexualmente transmitida (IST) e pode contaminar pessoas de qualquer gênero ou sexualidade. Se as cadeias de transmissão da doença não forem quebradas, eventualmente a doença se espalhará também para outros segmentos da população. Para evitar o contágio generalizado, é imprescindível comunicar os cuidados para a população LGBT, afirma Marcelo Daher. Ele cita como bom exemplo, o da Secretaria de Saúde de São Paulo, que tem emitido alertas por meio do programa IST/AIDS, e diz que outros estados também precisam adotar rapidamente as estratégias de comunicação aprendidas no combate ao HIV.
“Após a parada gay de São Paulo, em 19 de junho, houve aumento expressivo de casos. Por isso, precisamos destacar que pessoas que tiveram relações sexuais com pessoas pouco conhecidas e perceberam surgimento de lesões pelo corpo – com ou sem febre – essas pessoas devem procurar ateção médica. Quanto mais precocemente diagnosticarmos a doença, maior será nossa chance de controlá-la.”
Sobre os diagnósticos, Marcelo Daher diz acreditar na subnotificação dos casos pela demora na realização dos testes laboratoriais em alta demanda. Atualmente, em Anápolis, onde o médico atua, a média de tempo para o resultado de exames diagnósticos é de dez dias. “É improvável que o paciente se mantenha isolado por todo esse tempo”, comenta.
Marcelo Daher afirma já ter atendido um paciente diagnosticado com a varíola dos macacos, e relata a dificuldade associada à estigmatização da doença. “O paciente não permitiu que eu examinasse as lesões. Existe uma minimização da doença, bem como receio de ser associado a ela. A conscientização é crucial neste momento porque, diferentemente do que aconteceu com a AIDS, podemos agir rapidamente para minimizar a varíola.”
Vacinas
Através de um programa global de vacinação, a varíola foi erradicada no ano de 1980. Isso significa que o vírus deixou de circular e, por isso, pessoas com menos de 42 anos não precisaram receber o imunizante. Como a vacina contra a varíola humana tem eficácia de 80% contra a varíola dos macacos, toda população nesta faixa etária está vulnerável contra a monkeypox. Também por essa razão, estoques de vacinas contra varíola humana são baixos.
“A vacina antiga é reatogênica – ela não dura muito tempo em estoque”, comenta Marcelo Daher. “O imunizante recomendado não é aquele usado em 1980, uma vacina nova, de terceira geração, que está sendo usada por Portugal e outros países europeus. Mas a demanda é alta e a produção ainda é pequena. Pelo lado bom, a vacina já existe e é comprovadamente segura – não precisaremos passar por todas as etapas que foram necessárias na produção da vacina contra a Covid-19.”

O governo do estado de São Paulo estuda a compra de vacinas contra a doença, segundo declarou nesta quinta-feira, 21, o secretário de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde, David Uip. Mas, até o momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não recebeu solicitação de registro para vacinas ou medicamentos específicos para monkeypox. A Anvisa recebeu pedido da empresa Biomédica para registro de teste específico para detecção da doença e o pedido ainda está em análise.
Cenário mundial
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou neste sábado, 23, que o surto de varíola que espalhou pelo mundo é uma emergência de saúde pública. Essa decisão capacitará a agência a tomar medidas adicionais para tentar conter a propagação do vírus.
A OMS divulgou uma longa lista de recomendações no sábado, divididas em quatro grupos: recomendações para países que ainda não detectaram um caso de varíola; aqueles para países com transmissão contínua de humano para humano; aqueles para países onde o vírus é endêmico por natureza; e aqueles para países com capacidade para produzir vacinas e terapêuticas contra a varíola dos macacos. Os países sem casos, por exemplo, foram instados a fortalecer sua vigilância e estar preparados para lidar com infecções caso ocorram. Os países com capacidade de produção de medicamentos e vacinas foram instados a aumentar e compartilhar a produção.
Josie Golding, chefe de epidemias e epidemiologia do Wellcome Trust da Grã-Bretanha, disse que este surto deve ser um alerta para os líderes mundiais reforçarem a capacidade do globo de lidar com surtos de doenças infecciosas.
“Com os casos de varíola dos macacos continuando a aumentar e se espalhar para mais países, agora enfrentamos um desafio duplo: uma doença endêmica na África que foi negligenciada por décadas e um novo surto que afeta comunidades marginalizadas. Os governos devem levar isso mais a sério e trabalhar juntos internacionalmente para controlar esse surto”, disse Golding em comunicado. “Não podemos ficar esperando que as doenças se proliferem antes de intervir.”