Não fosse ele, tudo teria sido diferente em 1950. O capitão uruguaio era mais do que um jogador: era um ícone em campo — e isso fez toda a diferença
Elder Dias
“Enquanto existir uma camisa da Celeste correndo pelo mundo, nela estará presente Obdulio.” Apesar da frase de seu biógrafo, Manuel Paredes, hoje ele é uma figura praticamente desconhecida pelas novas gerações de fãs do futebol. Mas, é seu, talvez “ad eternum”, o título de maior carrasco do futebol nacional. Mais do que capitão, o uruguaio Obdulio Varela era o dono do time que derrotou o Brasil na final da Copa do Mundo de 50, a primeira organizada pelo País. O episódio entrou para a história conhecido como “Maracanazo”, em referência ao estádio construído para ser o palco do triunfo verde-amarelo.
Naquela tarde de domingo, o Maracanã recebeu o maior público já registrado em uma Copa do Mundo. Talvez, o maior da história em todos os tempos do futebol — oficialmente não há um registro preciso, ou melhor, há vários (há fichas com 172.772 pessoas, 199.854 e até 203.850). Antes de começar o jogo, o discurso majestático do prefeito do Rio de Janeiro, o general Ângelo Mendes de Morais, já sentenciava: “Brasileiros, vós que daqui a alguns minutos sereis sagrados campeões do mundo; vós que não tendes rivais em todo o planeta; vós que eu já saúdo como campeões do mundo, cumpri minha palavra construindo este estádio. Cumpram agora seu dever ganhando a Copa do Mundo.” As palavras reproduziam a certeza que pairava no ar: o Brasil já era campeão. O jogo, só um protocolo necessário.
Talvez o único presente ali a não acreditar nessa fatalidade era Obdulio Varela. E, se ele não acreditava, seus companheiros uruguaios também não. Todos reagiam à autoridade de “El Negro Jefe” — “Chefe Negro”, em espanhol —, como era conhecido o mulato Obdulio. Em 1950, com 32 anos, já era veterano. Mas a autoridade que possuía não se media pela idade, mas pela postura. Junto com o suor, Varela exalava o próprio exemplo de hombridade. Não foi à toa que dois anos antes ele tinha sido o número 1 do movimento grevista de jogadores que exigiam dignidade por parte dos dirigentes de futebol. “A mim, os dirigentes precisam tratar como ‘senhor’ e falar de comigo de igual para igual”, dizia ele, expondo no pós-guerra algo que, quase 70 anos depois, o movimento Bom Senso Futebol Clube tenta obter por aqui. Em uma “huelga” (greve) histórica, os dirigentes de futebol no Uruguai capitularam e cederam às condições que Obdulio e seus colegas de trabalho exigiam.
Em 1948, a um par de anos da Copa no país vizinho, a Celeste vivia seu pior momento no futebol. Os resultados não apareciam e compará-los aos dos anos 20, quando a seleção uruguaia conquistou o bicampeonato olímpico (1924 e 1928) e o primeiro Mundial (1930), era crueldade. Mais do que isso, Obdulio Varela, o grande líder, teimava em não ir ao Brasil. Ele se achava velho e injustiçado por não ter conseguido nada com o esporte em toda a carreira. Não atendia às convocações. Foi preciso a intervenção pessoal do presidente Luis Batlle Berres para convencê-lo a tomar parte na seleção. O veterano topou, mas com uma condição, aceita: queria um emprego público para lhe garantir o sustento pós-carreira.
E partiu o Uruguai para o Brasil, com Obdulio e muita desconfiança da população local. O modesta embarque no aeroporto de Montevidéu mostrava o ceticismo.
Do outro lado do Rio da Prata, só festa. O Brasil vivia em lua de mel consigo mesmo. Pela primeira vez na história sentia-se um país importante no contexto internacional. Queria dar ao mundo demonstrações de que era grande também — o que ficou exposto na megalomania de construir o maior estádio do mundo. Ao contrário das arenas da Copa de 2014, com longos seis anos para ser erguidas e das quais algumas chegam a semanas da Copa com estruturas em haver, o Maracanã teve suas obras iniciadas em 1948. Estava ali, um novo monumento carioca, o templo que correspondia então ao tamanho da paixão do brasileiro pelo futebol e da conquista que viria.
Enfim, a Copa. Eram 16 seleções, vieram 13 — Escócia, Turquia e Índia desistiram e não foram substituídas. Havia dois grupos com quatro integrantes, um com três e o último com apenas dois — exatamente o do Uruguai, mais a Bolívia.
“Aos trancos e barrancos”
A cada jogo, a confiança brasileira aumentava. A campanha na 1ª fase teve estreia com goleada sobre o México (4 a 0), um empate com a Suíça (2 a 2) e uma vitória sobre a Iugoslávia (2 a 0). Já no quadrangular final, os dois primeiros resultados foram ao mesmo tempo massacrantes e indutores do ufanismo: um 7 a 1 sobre a Suécia e um 6 a 1 sobre a poderosa Espanha — com direito ao público entoar a marchinha “Touradas em Madri”, sucesso de João de Barro, o Braguinha. Faltava só o epílogo da saga rumo ao título, que seria contra o Uruguai, uma seleção que tinha perdido, naquele ano, para o Brasil, mas outro, o clube de Pelotas (RS). Não parecia mesmo havia muito que temer de uma seleção feita “aos trancos e barrancos”, como dissera o atacante Ghiggia.
No Brasil, por onde a Celeste ficou hospedada, o assédio era quase nulo. Seus jogadores, com uma estrutura modesta, tiveram tempo e tranquilidade suficientes para estreitar laços. Enfrentaram a Bolívia apenas no dia 2 de julho, depois de o Brasil ter feito todos os três primeiros jogos. Ghiggia, Pérez, Míguez, Máspoli, Schiaffino e todos os demais formaram uma família, cujo tutor era El Jefe. No jogo único do Grupo 4, a maior goleada da Copa: 8 a 0 para o Uruguai. Na fase seguinte, porém, Obdulio teve trabalho para conduzir o time: empataram com a Espanha (2 a 2) — com golaço salvador do próprio capitão — e venceram de virada a Suécia (3 a 2). “Tínhamos de ‘pelear’ (lutar) para ganhar; o Brasil, não”, resumiu o meia Julio Pérez. Iriam os uruguaios à final precisando vencer.
Às vésperas do jogo, dois fatos que podem ter levado ao resultado final. Na concentração brasileira, a presença de políticos e celebridades tirando fotos e o foco dos jogadores. Os relatos de atletas apontam um “entra e sai” sem fim de pessoas, como definiu Bauer. Na concentração uruguaia, em meio à tranquilidade de jogos de mesa, um jornal arremessado contra a parede. Era Obdulio, irado com a capa de um jornal, “O Mundo”, cuja manchete era “Estes são os campeões do mundo”, um dia antes do jogo decisivo. De quebra, uma foto-pôster da seleção brasileira.

Maracanã lotado em 1950: o palco construído para a glória brasileira virou túmulo do futebol nacional
Entre o estraçalhar dos tímpanos e o silêncio sepulcral, a gana uruguaia
Dia 16 de julho, enfim. O documentário “Maracaná” — de 70 minutos, produzido pelos uruguaios Sebastián Bednarik e Andrés Varela e com imagens inéditas do Mundial —mostra que o Rio de Janeiro amanheceu cheio de trabalhos de umbanda pela vitória da seleção brasileira e que milhares estavam acampados ao redor do estádio da decisão. Outras cenas interessantes: debaixo das arquibancadas, a preparação dos fogos de artifício para a comemoração do título, que teria também escolas de samba desfilando para os campeões. O já-ganhou instalado.
No vestiário, os uruguaios estavam acuados. Ouviam um barulho de estraçalhar os tímpanos, sentiam as arquibancadas tremerem acima deles, pisadas por mais de 200 mil pessoas à espera de um título.
Na estratégia para o jogo, lá estava a imposição de Obdulio: nada de jogar na defesa, como queria o treinador Juan López, escolhido às vésperas do Mundial — e com bem menos autoridade de fato do que o capitão. Ele trocou a receita: inteligência, marcação da melhor jogada brasileira (a troca de passes no meio de campo) e evitar erros no ataque. Ninguém ousou discordar.
Ao subir para o gramado, a última ordem de Varela: não olhar para a arquibancada. “Joga quem está em campo e não fora dele.” Espertamente, entraram juntos com os brasileiros e pegaram carona nos aplausos. Talvez nem fosse preciso: afinal, eram só coadjuvantes — diante de tal superioridade do favorito, não mereceriam nem a hostilidade do torcedor por serem adversários.
A tática imposta por ele deu certo: o primeiro tempo terminou 0 a 0. Haviam estancado a máquina de fazer gols do Brasil, com 21 gols em 5 jogos. E Obdulio ainda deu um “tapinha” em Bigode após uma falta mais dura do brasileiro — o que, na lenda do jogo, virou uma bofetada. No primeiro minuto dos últimos 45, o gol de Friaça foi recebido com resiliência e malandragem pelo capitão uruguaio. Ele pôs a bola debaixo do braço e foi questionar o lance do gol com o bandeirinha e o árbitro inglês, George Reader. Em vez de correr para soltar a bola e buscar logo os dois gols de que sua equipe agora precisaria, investiu dois minutos no esfriamento do jogo. A torcida ficou com medo de o gol ser anulado e se aquietou, relativamente. O Brasil também, em campo. E o limitado Uruguai começou a se avolumar em campo. As jogadas começaram a sair pelo lado direito, onde, enfim, aos 21 minutos, com Schiaffino, que recebeu cruzamento de Ghiggia. Gol.
O empate era bom para o Brasil. Só que não parecia. Era como se o gol tivesse valido um e meio. A torcida sentiu o baque, mas os jogadores, muito mais. Treze minutos depois, Ghiggia avançou pela direita e teve a opção de repetir a jogada. Foi o que o goleiro Barbosa pensou que faria. O uruguaio chutou direto. Pegou Barbosa no contrapé e o goleiro pegou pena perpétua como vilão.
O jogo acabara ali. Não eram mais 200 mil pessoas, eram 200 mil almas. O silêncio sepulcral atordoava inclusive os próprios jogadores uruguaios. Bastou esperar o apito. Obdulio comemorou muito em campo. Nada fora dele: naquela noite, ele saiu do estádio, foi para a concentração e, de lá, saiu para beber. Encontrava choro e lágrimas aonde ia. Teve remorsos, vontade de entregar ao primeiro brasileiro a taça que pegou do desconcertado Jules Rimet, presidente da Fifa, que confessou não estar preparado para algo que não fosse a vitória do Brasil.
Em um dos bares que visitou, Obdulio foi reconhecido como o autor da tragédia. Temeu ser linchado. Mas os brasileiros o absolveram e ele terminou a noite abraçado a suas vítimas. Assim como Barbosa, ficou marcado por 1950. El Maracanazo, o canto do cisne da Celeste, fez o Brasil deitar a estima ao fundo do poço. Em vez de dono do mundo, era o vira-latas da história, da qual Pelé comandaria a redenção. E tanto quanto a seleção brasileira, o Uruguai vive até hoje o fantasma da Copa de 50. Obdulio Varela morreu em 1996, aos 78, como ex-funcionário do Cassino de Montevidéu. Pobre e digno.
O herói que, por acaso, calçava chuteiras
A atração da vítima por seu algoz é chamada de síndrome de Estocolmo. O torcedor brasileiro pode até ver com certa admiração Zidane, Paolo Rossi ou Maradona. Mas a personificação do vilão apaixonante é Obdulio Varela. Como não odiar e admirar aquele sujeito saído de um país pequeno, cuja população total era apenas pouco maior do que a da cidade que sediava a final de Copa?
Antes de qualquer coisa, é preciso estabelecer a questão temporal: Obdulio é de outra época. Onze Obdulios juntos não ganhariam a remuneração do titular mais mal pago do Uruguai de hoje. Mas, se mesmo em tempos capitalistas, de marketing, mercado e do jogador-cota de empresários, a Celeste mantém a chama de uma seleção que joga com o coração na ponta da chuteira, isso se deve em muito ao mito que ele personificou vestindo aquela camisa azul.
À lenda que diz que ele não jogaria a Copa de 50 porque queria um emprego público se contrapõe outra, pela qual ele se achava incapaz de servir a seleção, por estar em idade avançada. Tinha 32 anos e não se julgava mais com um futebol digno de representar seu país.
Convenceram o “Chefe Negro” e ele veio ao Brasil. Foi campeão, como conta este artigo, e ainda teve fôlego para ajudar o Uruguai na Copa seguinte, aos 36 anos. Machucou-se nas quartas-de-final, mas conseguiu levar o time à classificação se arrastando em campo — na época não havia substituição. Deu seu sangue até o fim pela seleção e terminou invicto sua participação em Copas.
Muitas outras histórias têm a personalidade fascinante de Obdulio como protagonista. Duas delas: na primeira, seu clube, o Peñarol, acabava de introduzir publicidade nas camisas. Por questão de princípios, o capitão se negou a vestir o uniforme. Então todas as demais camisas tiveram a estampa do patrocinador. Menos a dele. A segunda história é de uma premiação especial que ele receberia por uma vitória sobre o River Plate: 500 pesos, o dobro dos demais atletas. Ele respondeu: “Joguei como todos os outros; se acham que mereço 500, são 500 para todos; se eles mereceram 250, eu também.” E os dirigentes deram os 500 pesos para cada um.
É controversa a discussão do que seja um herói. Muito mais ainda, é altamente contestável estabelecer um esportista como herói. Como arquétipo, tal figura precisa ir além do próprio talento — há de ter inequivocamente também um brilho moral. Obdulio Varela pode ser considerado como um herói justamente por ter ido muito além do que caracterizaria um jogador de futebol. Jogou e lutou como um super-homem, mas viveu e sentiu como o mais comum dos mortais. Daria, no mínimo, um bom personagem da Marvel: Obdulio, o Caudilho de Nervos de Aço. E que amarrava a chuteira com as veias, como escreveu então Nelson Rodrigues.
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