Talvez as pessoas não percebam, mas grande parte das escolhas que fazem hoje se dá por questões climáticas. Mas a tecnologia dará conta de nos resguardar das mudanças que vêm por aí até quando?

Fernando Leite/Jornal Opção
Fernando Leite/Jornal Opção

Elder Dias

William Bonner está ainda sorrindo, por causa do co­mentário feito com a colega de bancada, Sandra Annenberg, ao fim da notícia anterior — que tratava de uma senhora que admitia ser “pão dura” na economia da energia elétrica, a ponto de optar por desligar a ducha para tomar banho. Eis o que lhe diz seu teleprompter (equipamento acoplado à câmera pelo qual os apresentadores de TV leem seus textos):

— Cientistas reunidos na Fiocruz, no Rio de Janeiro, apresentaram os primeiros resultados de um estudo internacional que mostra o impacto das mudanças climáticas nas próximas décadas. O relatório completo será divulgado em dezembro, em Paris, na COP 21. É uma das principais conferências mundiais sobre o assunto.

Ao fim da nota seu semblante está mais sério, mas não tão grave. Entra, então, a matéria da repórter Mônica Teixeira, com seu “off” (uma locução ilustrada com imagens relativas ao texto):

“A previsão do tempo para as próximas décadas se resume a uma palavra: mudanças. Já pensou no nível do mar no Rio de Janeiro até 14 centímetros mais alto? Esse é o cenário que os cientistas projetam para daqui a pouco, em 2020. E São Paulo? A cidade vai enfrentar mais chuvas e também épocas de mais seca. São algumas das conclusões de um estudo feito pela Rede de Pesquisas, sobre mudanças climáticas urbanas, divulgadas hoje.”

Aparece na tela a repórter direto da cena da reportagem, fazendo o que se chama tecnicamente de “passagem”:

— Dê só uma olhada nesta praça: ela fica às margens da Baía de Guanabara. Agora, imagina se o nível do mar sobe demais, ou então se faz tanto calor que as pessoas não conseguem nem fazer um passeio assim, ao ar livre. Pois as mudanças climáticas podem afetar não só a estrutura das cidades, mas também o dia a dia das pessoas. É por isso que, quando se trata de clima, os cientistas querem prever o futuro, para que as pessoas e as cidades possam se planejar para as mudanças que vêm por aí.

E novamente vem o off:

“Por volta de 2080, o nível do mar pode se elevar em até 82 centímetros no Rio de Janeiro. E as cidades vão esquentar. Em 2080, a temperatura no Rio pode subir até 3,4 graus. Em São Paulo, quase 4 graus. E o calorão, segundo a pesquisadora americana Cynthia Rosenzweig, uma das responsáveis pelo estudo, traz desafios para a saúde pública. Pode causar estresse no organismo, principalmente nos mais velhos, que vão ter mais dificuldades de respirar.”

Por fim, uma fala breve e enfática de Martha Barata, pesquisadora da Fiocruz:
— Nós ainda não começamos a agir como deveríamos, temos de começar rápido!

E assim se encerra a pequena reportagem da terça-feira, 13, deixando um espectro surreal, seja pelo olhar da repórter ou por negligência da edição: encaram o fato de a temperatura nas principais cidades do Brasil subirem até 4 graus em 65 anos (de 2015 a 2080) como um transtorno a mais. Quase um fato corriqueiro, talvez um pouco mais desafiador. O mesmo se pode dizer do entendimento sobre uma elevação das águas na orla carioca de 14 centímetros até 2020, chegando a 82 centímetros em 2080.

Para uma cidade ao nível do mar, isso é uma tragédia. No mínimo, uma dinheirama será necessária para evitar que Copacabana, Ipanema, Leblon e outras praias sejam engolidas; os canais de água doce serão invadidos por água salgada, prejudicando o abastecimento; enfim, a população de uma megalópole teria de adaptar aos novos tempos apenas por esses dados básicos, sem contar efeitos colaterais (talvez muitos) ainda não previstos.

São Paulo, que já hoje precisaria de mais água, pode ficar até quatro graus mais quente e ainda mais seca. Medidas de mitigação terão de ser tomadas e sobrecarregarão os cofres públicos, mas mesmo assim ficam dúvidas: haverá solução a tempo de evitar o colapso do complexo descomunal de gente e cimento que se tornou Sampa, vivendo uma crise hídrica que varia do crônico ao agudo já há alguns dois anos?

Recorde tórrido em Goiânia

Trazendo o tema para mais perto: Goiânia teve nesta semana o dia mais quente de sua história. O termômetro, na quinta-feira, 15, bateu na casa de 39,6 graus — com a observação de que o recorde pode já ser outro quando você ler esta matéria. E como a marca anterior era do ano passado, com 39,4 graus, pela lógica em 2016, ela tende a ser novamente superada. Normal, isso?

Para todos os casos, o remédio (ou panaceia, como um termo mais adequado) recomendado tem sido o mesmo: a adaptação. Nem precisaria prescrição. É que, em escalas maiores ou menores, todos já estamos encaminhando soluções para as mudanças climáticas que vieram e virão: na guerra contra o calor aumenta, a cada ano e em grande porcentagem, a venda de ventiladores, umidificadores, aparelhos de ar condicionado; para proteger a pele do sol causticante, filtro solar e itens que contemplem saúde e estética.

Na construção ou reforma da casa, a telha de amianto, mais barata e muito mais calorenta, vai sendo renegada ou fica escondida acima de uma laje. Na negociação do carro usado, a pergunta “tem ar?” subiu bastante de posição no ranking das mais feitas por eventuais compradores. E já não é um luxo adquirir na concessionária um automóvel já com esse opcional.

Em meio à crise, abrir uma sorveteria é um dos poucos investimentos de retorno aparente — Creme Mel e a Frutos do Brasil, fábricas de sorvetes e picolés, estão entre as empresas de origem goiana que mais crescem. E, entre as primeiras preocupações de quem hoje adquire alguma propriedade, como sítio ou chácara, está perfurar um poço artesiano.

Nos três parágrafos anteriores, exemplos de adequações diversas ao clima. Dinâmicas novas impostas pela temperatura. Talvez as pessoas não percebam que grande parte das escolhas que fazem, hoje, se dá por questões climáticas. Quem pode se preparar já está se preparando; quem pode se prevenir já tem se prevenido. Não é preciso que o “Jornal Nacional” avise ninguém: basta o mínimo de sensibilidade (que deve ser entendida com o pragmatismo do termo “desconforto” e não com um viés empático) e algum recurso para investimento, para comprar um “Springer” ou construir uma represa. Cada um com o que dá conta, mas sempre buscando se resguardar “das mu­danças que vêm por aí”, como disse Mônica Teixeira.

De tudo o exposto até o momento, só fica uma certeza constatada: a crença cega no poder da tecnologia para salvar tudo e todos. Tudo e todos? Vamos por partes. Primeiro, pelo “todos”.

São “todos” os que podem pagar para se proteger das mudanças do clima? Em Londres, com a elevação do nível do Rio Tâmisa, que corta a cidade, já há estudos para uma espécie de “casa anfíbio”. Todos os londrinos poderão pagar por ela? Parece que não. Na África, continente explorado até meados do século passado pelos europeus e hoje em grande parte passando por processo de desertificação, quantos terão acesso a alguma tecnologia para se defender da seca e do sol? Como lidarão com a impossibilidade de cultivo, com suas culturas sendo esturricadas pela alta temperatura e pelo fim das águas? Para onde irão, se irão? Resposta óbvia: não, nem “todos” serão cobertos pelas asas da tecnologia.

Tudo o que você vê na imagem era coberto da água do Mar de Aral, que já foi o 4º maior lago do mundo: tragédia ambiental provocada pelos soviéticos
Tudo o que você vê na imagem era coberto da água do Mar de Aral, que já foi o 4º maior lago do mundo: tragédia ambiental provocada pelos soviéticos

E “tudo” o que hoje ocorre pode ter uma solução por meio da tecnologia? Em última instância, se o mundo desse sinais de total falência nas próximas décadas o homem teria como ir para outro planeta? Não, já que a primeira viagem para Marte (sem garantia de chegada ou de sobrevivência) está prevista para 2023. A não ser que a Nasa tenha um plano infalível guardado a sete chaves, vamos ter de nos virar por aqui durante um bom tempo ainda.

Na verdade, é o contrário: no mundo atual, a tecnologia mais destrói do que salva. Mesmo a usada para adaptação ao clima. Um exemplo: com o aumento do calor, a quantidade de energia que passou a ser dispendida para o funcionamento dos aparelhos de ar-condicionado de carros, casas e complexos empresariais é responsável pelo crescimento da emissão de gases e pela necessidade de buscar mais fontes. Constroem-se novas hidrelétricas para atender ao consumo, em intervenções que geram mais poluição, mais destruição de rios e mais extinção de habitats. Ou seja, a demanda que causa o aumento da emissão de gases acaba por gerar… mais emissão de gases. Um círculo vicioso que, ao mesmo tempo em que se mostra letal, escancara a necessidade urgente de ceder ao clamor da professora da Fiocruz: “Nós ainda não começamos a agir como deveríamos, temos de começar rápido!”.

O fim do Mar de Aral

O que restou do Mar de Aral em menos de 50 anos: um crime ambiental que nenhuma tecnologia quer resolver e por qual nenhuma nação quer pagar
O que restou do Mar de Aral em menos de 50 anos: um crime ambiental que nenhuma tecnologia quer resolver e por qual nenhuma nação quer pagar

Pôr a tecnologia para reverter o desastre que outras tecnologias cometeram não é tarefa fácil. Um exemplo foi a lambança ambiental que a extinta União Soviética provocou ao desviar, para fins de agricultura, o curso dos rios que abasteciam o Mar de Aral, de água salgada, em terras do Uzbequistão e do Cazaquistão. A redução do volume fez com que a concentração de sal
disparasse e causasse mortandade dos peixes e de 80% da fauna. O cultivo ficou inviabilizado. O nível da água caiu a ponto de dividir o mar fechado em dois a partir de 1987 e deixar três míseras lagoas a partir de 2010.

Hoje o que era o quarto maior lago do mundo tem 10% do volume original e seu sal se espalha por correntes de ar que atingem do Japão à Suécia, além de provocar vários tipos de doença graves na região. Um dos maiores crimes ecológicos da humanidade, que a tecnologia só teria como reverter, se revertesse, com um custo altíssimo que nenhum governo quer pagar. Uma intervenção similar ocorre logo ali no Nordeste brasileiro, no Rio São Francisco. Quem se beneficiará da transposição? Até quando? A quantos se prejudicará? Qual a relação custo-benefício? Vale a pena pagar para ver? Talvez só essa última pergunta teria resposta agora.

O meio ambiente se releva, para a geoeconomia do mundo, como uma praça abandonada: é de todos e, por isso, não é de ninguém. Cuidar dele não dá dinheiro, ou dá menos dinheiro do que outra atividade que geralmente o explora em vez de preservá-lo. E é assim que o mundo chega perto de mais uma conferência mundial sobre o clima, a COP 21, em Paris, citada por William Bonner no início deste texto. É a reunião que ocorre para que os países alertem uns aos outros sobre as necessidades de mudar o rumo das coisas, mas onde todo mundo espera que o outro comece. No fim, fecham acordos e metas que ninguém está muito disposto a cumprir e marcam outro encontro para daqui um tempo.

O Brasil estabeleceu suas metas, bradadas com orgulho pelo governo, mas que se limitam à Amazônia. Sobre a proteção ao Cerrado, origem das águas da maioria dos grandes mananciais do País — inclusive o fragilizado Rio São Francisco —, o Planalto diz que faz o possível para salvar o que dá. Ou seja, entrega um bioma para que outro se mantenha. Uma estratégia burra, populista e, pior, suicida: o Cerrado, mais do que a Amazônia, é fundamental para que haja armazenamento de água em todo o Brasil, como alertam autoridades diversas — como já fez o professor Altair Sales Barbosa, especialista no ecossistema, em uma entrevista história a este jornal.

Assim como as pessoas pagam seu preço para fugir do calorão, cada um, mundo afora, vai fazendo o que pode para escapar das armadilhas do aquecimento global. Em setembro, a Nova Zelândia expulsou o primeiro solicitante oficial de asilo por motivos climáticos: um homem natural de Kiribati, um arquipélago do Pacífico ameaçado de ser engolido pelas águas com o aumento do nível do oceano. Os mares do mundo inteiro, como prevê a matéria do “Jornal Nacional”, poderão subir quase um metro até o fim do século. Kiribati, um país com mais de 100 mil habitantes, não vai mais existir em 2100.

O calorão goianiense é um desafio. Mas é menor para quem sai do climatizador do escritório para o ar-condicionado do carro e chega em casa para ficar com o umidificador de um lado e o ventilador do outro. Mas tem muita gente à beira dos córregos da capital, debaixo de lonas sem janelas nem portas. Variações climáticas, submetidas às contradições do sistema, geram efeitos colaterais não previstos. E que tal, então, pensarmos em crises diversas, da saúde à violência, como tragédias ambientais imediatas?