Profissionais da área mostram que caminho é longo e com muito trabalho a ser feito, mas há um cenário audiovisual local e chance de crescimento em escala nacional

Yago Rodrigues Alvim

O curta “Julie, Agosto, Setembro” é exemplo do recente caminho por onde segue a produção cinematográfica goiana. Foto: Arquivo pessoal
O curta “Julie, Agosto, Setembro” é exemplo do recente caminho por onde segue a produção cinematográfica goiana. Foto: Arquivo pessoal

Se perguntar o que é o cinema em Goiás, talvez a resposta se desenrole no que foi feito, no que se tem feito e nas oportunidades para o amanhã. Erasmo Alcântara é cineasta. Pela Fractal Filmes, faz cinema no Estado. É ele quem diz sobre a “linha, não só estética, mas o como se desenvolve um fluxo de produção no local, que gera tradição e, depois de algum tempo, encontra qual seu perfil, qual o tipo de cinema que a região tem para produzir” e, tal fala, percorre uma resposta à pergunta que se enunciou.

A produção audiovisual vem de um processo de desenvolvimento. Precisa de um investimento sistemático, constante, para que as coisas encontrem um equilíbrio, um “azeitamento”, em palavreado de Alcântara, para se desenvolver: “A qualidade dos filmes depende de um fluxo de produção e do amadurecimento da cena”. É preciso profissionais, para trabalhar, e financiamento. “Em lugar nenhum cinema existe sem fomento”, pontua.

Erasmo diz que, em Goiás, se vive a lógica das leis de incentivo, mecanismo paliativo. Todo local precisa de um mecanismo de incentivo efetivo.

Sobre a presença das produções goianas no circuito comercial, mercadológico, ele primeiro dá um passo atrás: “É complicado almejar entrar na cena comercial, como se esse fosse o parâmetro. Pois, não se pode compreender o cinema comercial como o que legitima o cinema local”. Depois, avança: “Deixar que o cinema, a produção local, encontre sua linguagem, suas características e as desenvolva”. Isso demanda tem­po e um mecanismo de fomento estável: o Estado de Goiás sempre esbarrou nessa problemática. “Como não havia um sistema de fomento e apenas um mecanismo improvisado, irregular, sem estabilidade, por muito tempo não conseguimos desenvolver essa cena de fluxo de produção.”

Nesse parágrafo, brevemente, se entende o cinema em Goiás, pois, relembra a década de 1980. Foram os primeiros passos, as primeiras ações. Cineclubes, festivais, mostras. Essas pessoas ainda estão presentes, produzindo. Com o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica) e o Goiânia Mostra Curtas, novas pessoas apareceram com o “querer fazer” um filme. Isso gerou demanda para o Estado. O surgimento do curso de Audiovisual na UEG faz os móveis mudarem de lugar no cenário. É uma geração de pessoas atraídas para o mercado audiovisual local por meio de uma formação, graduação.

Porém, diz Erasmo, dentro de um processo muito precário. O curso da Estadual precisou e precisa de investimento, de se estruturar melhor, para que a concentração da produção se dilua. “Hoje, temos um grupo de pessoas muito boas surgindo, fazendo trabalhos interessantes, e a tendência é estarmos em um divisor de águas. Finalmente, surge o Fundo Estadual de Cultura (FEC), um mecanismo de financiamento adequado para demanda.”

Investimento

Tem um gargalo reprimido. Tem pessoas querendo fazer, sem um fomento real. Para o moço, sempre o fomento foi muito simbólico. A Secretaria de Cultura (Secult) de Goiás abriu um edital, mas com pouco investimento. O FEC não tinha regulamentação no início do século, e não possibilitava um fomento sistemático.

Erasmo voltou à esse início dos anos 2000, quando a Secult criou a Lei de Incentivo à Cultura, e também o fundo, mas não o regulamentou. “O FEC sempre ficou para fazer os eventos da Secult. Goiás teve essa lacuna.” O fundo, aprovado em 2006, só entrou em funcionamento recentemente e, nessa pausa, só tinha a Lei Goyazes. Quando foi criada, propunha renúncia fiscal de Imposto sobre Operações Rela­tivas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Trans­porte Interestadual, Intermu­nicipal e de Comunicação (ICMS). Porém, só se abatia 50% do imposto das empresas, que, pela circunstância, não patrocinavam as produções. Os projetos eram aprovados, mas não conseguiam captar. “Durante anos, a Lei Goyazes ficou assim.”

Depois de 2008, uma mudança. Com renúncia fiscal de 100%, as empresas apoiaram. “O investimento está sendo feito agora. Daqui para frente, conseguiremos atender a demanda. A quantidade de projetos que existem sairá da gaveta. Isso dará mais fôlego para experimentar, produzir, errar e acertar.” Mas Erasmo pondera: “Aprovamos dez curtas por ano, cerca de um por mês e ainda têm longas e séries de TV”.

O FEC dará fôlego para mais diversidade de produção, mais fluxo e mais espaço, não apenas para o desenvolvimento dos projetos que estão aí, mas também para as pessoas que produzem e que consigam sobreviver disso. “Que consigam desenvolver, produzir e comercializar. O fundo está sendo regulamentado, porém, em outra lógica. A lógica da Agência Nacional de Cinema (Ancine)”, pontua Erasmo.

Para entender por onde segue o caminho, é necessário entender o contexto atual do Brasil, da produção audiovisual brasileira. Erasmo explica: “Estamos na mesma barca. Teremos que navegar no mesmo rumo. Apesar de não termos uma tradição de produção audiovisual comercial, teremos uma demanda, uma pressão para que as pessoas passem a desenvolver projetos com esse perfil”, disse. Seguindo a maré de Erasmo, as pessoas que sempre produziram cur­tas, produziram, pois, não ti­nham perspectivas. Elas compreendiam que não captariam re­cur­so para produzirem um longa, não captariam para fazer série de TV.

A venda para TV não existia e, por isso, os curtas. Erasmo justificou a divisão de águas: “Agora, existe demanda para longa, para série de TV, que é pela Lei 12.485, uma nova regulamentação do mercado de TV por assinatura”. Há muito mais conteúdo brasileiro nos canais fechados, em relação a antes, pois a lei determina que os canais comprem conteúdo brasileiro. “Antigamente, não tinha nada de conteúdo brasileiro. Hoje, tem uma cota de três horas e meia, em cada semana, por canal, e a lei determina uma cota de produção regional”, afirmou. Os canais e a Ancine, para investir nessa produção, disponibilizam um terço dos recursos para produção regional. É uma produção que foge do eixo Rio-São Paulo, região Sudeste e Sul. Ou seja, recurso para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Fatia

A conquista é que “nós entramos nessa história”. O cineasta ressalta a oportunidade do Estado de Goiás: “Há os canais por assinatura, que querem comprar conteúdo regional, há o Fundo Setorial do Audio­visual (FSA), que é um fundo bilionário para investir nessa produção e precisamos entrar com os projetos para captar esses recursos.” O FSA é uma categoria do Fundo Nacional da Cultura e prevê complemento ao recurso local. “O Fundo Estadual disponibilizava R$ 2 milhões para a área de audiovisual e isso sempre foi muito para o audiovisual, em Goiás. Com o segundo edital, que já foi elaborado e sairá esse ano, o valor passará para R$ 4 milhões para a área.”

Erasmo simplificou o benefício: “O FSA, com a Lei da Ancine, da TV por assinatura, pretende, para cada real que o Estado investir em produção de conteúdo audiovisual, aportar mais dois.” A oportunidade é de aumentar consideravelmente os recursos para produção audiovisual local. O “porém” aparece na história, pois, “a Ancine não investe em qualquer tipo de projeto. Tem de ser um projeto comercializável, que passará em televisão, que consiga um contrato de distribuição”, explicou o cineasta. Os projetos selecionados pelo FEC, que estejam dentro do perfil da FSA, vão receber essa complementação de recurso. Portanto, os R$ 4 milhões para o audiovisual podem virar R$ 6 milhões.

A perspectiva na área audiovisual se amplia. Um grupo de realizadores e produtores que tinham vontade de desenvolver projetos maiores, como séries de TV, poderá desenvolvê-los. Com isso, há mudanças no processo de formação. Nos festivais de cinema existiam oficinas rápidas, superficiais. “Temos investido, hoje, em outro formato, que é o de laboratório. Ao contrário de abrir uma oficina de direção de cinema para 30 pessoas, por exemplo, pegamos cinco projetos mais amadurecidos, chamamos um profissional para fazer uma consultoria, mais direcionada, e qualificar essas pessoas, dentro da perspectiva nacional.”

A possibilidade de se produzir novos tipos de conteúdo propicia uma cena audiovisual atual bastante dinâmica. Erasmo tem certa dificuldade em enxergar uma uniformidade na atual produção. Há a entrada de novos realizadores. Por exemplo, com o último edital do Fundo Estadual, foram cinco projetos de curta. Entre eles, o primeiro ou o segundo curta do realizador. “A tendência é aumentar as oportunidades e aparece muita gente nova” e, por isso, a crença em uma diluição na linguagem, nos produtos. “Ficará muito claro que é um processo.”

Além disso, há a formação de novos realizadores com um sistema educacional mais consolidado. De acordo com Erasmo, o Instituto Federal de Goiás abrirá um curso técnico no Estado e, no próximo ano, uma graduação. Muitos produtores que estavam com trabalhos fora do Estado estão voltando. Vai dar uma “bagunçada”, diz Erasmo. E, de qualquer forma, as gerações que construíram esse tipo de cinema, essa linguagem cinematográfica goiana, na década de 1980, continuarão produzindo. Sempre haverá espaço para esse tipo de cinema. Talvez não tão predominante como sempre foi, ponderou.

Em riso, Erasmo comemora essa “bagunça”. Para ele, quando as produtoras têm a oportunidade de produzir mais, buscar novos conteúdos e investir em formação, as coisas podem mudar. “A imagem que se tem, hoje, da produção goiana audiovisual, é fruto do fato de termos vivido dez anos em que não houve renovação e foram as mesmas pessoas que continuaram produzindo. Isso reflete no contexto.”

Crescimento

A conclusão é um status de “em andamento”. Nunca se avançou tão rápido, nunca se avançou tanto. O processo de transição é muito nítido. O cinema é indústria. Tem essa característica de indústria. É interessante observar que é uma das indústrias que mais crescem no mundo. “A economia do século XXI está apontando menos para a produção braçal e mais para o ser humano, mais para criatividade, para mente humana”, constata o cineasta. O entretenimento tem um espaço de crescimento gigantesco. A indústria do entretenimento explodirá. É o que acredita Erasmo.

Com base na cena nacional, Erasmo Alcântara constata um momento próspero para  a produção audiovisual: “De uma era gigantesca de precariedades para uma era  gigantesca de oportunidades”. Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Com base na cena nacional, Erasmo Alcântara constata um momento próspero para a produção audiovisual: “De uma era gigantesca de precariedades para uma era gigantesca de oportunidades”. Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

O consumo de lazer crescerá exponencialmente. “A indústria do entretenimento é muito lucrativa, com muitas oportunidades e o audiovisual está ali”, aponta. Erasmo nota que o audiovisual é a ponta de lança da história toda e — em termos de oportunidade, potencial econômico — está lá em cima. Porém, é um espaço fechado. Existe um nível de competitividade muito alto. Não se produz conteúdo só para o seu vizinho, se produz conteúdo para o mundo inteiro. O conteúdo audiovisual circula hoje, imediatamente, no planeta todo.

O público-alvo das produções, com a tecnologia, se expande exponencialmente. Para sobreviver, é necessário entender que a história de produção para o local não existe mais. “Não existe mostrar para o vizinho, para o parente”, ressalva. Em todo lugar, se encontra um mercado profissional desenvolvido e um cenário amador gigantesco. Sempre terá como parte do jogo. “É como jogador de futebol. Todo mundo sonha em jogar a Copa do Mundo, mas a maioria está na segunda divisão, jogando no interior de um Estado”, compara. É isso.

A perspectiva é boa, e árdua. “Quem quiser ganhar dinheiro no audiovisual, pode ganhar muito dinheiro, pode crescer demais, e isso depende do caminho que vai percorrer ali dentro. O cinema é indústria. O cinema é grana. O jogo que está sendo jogado é grande, muito pesado e exige um alto nível de profissionalização, de investimento muito forte, mas está aí.”

“Cada player do jogo aposta seus milhões e procura ocupar um espaço que é estratégico. O mercado de TV por assinatura está puxando o desenvolvimento do audiovisual e o está expandindo. A base de consumidores de TV por assinatura está chegando e o jogo está começando a crescer no Brasil”, alerta Erasmo. Para ele, quem chegar nessa hora, ocupará um lugar estratégico na economia brasileira no futuro. O nível de embate, na disputa pelo recurso, pelo espaço de veiculação é muito complexo. Ele mostra que é um momento muito fértil para a produção audiovisual nacional e envolve o local. “É o pré-sal. Houve um crescimento constante no mercado audiovisual brasileiro. Com a Lei n° 12.485, da TV paga, há uma explosão. Estamos nesse processo. As coisas estão se reajustando.” O cinema é uma indústria de larga escala, que movimenta o mundo inteiro. É uma economia muito integradora, porém, um jogo pesado. “Você tem de saber onde se colocar.”

Conteúdo

Se perguntar qual o diferencial, a resposta é se salvar en­quan­to artista. Isso está nas escolhas. A tecnologia se desenvolve e democratiza os mecanismos de produção. E ela também escraviza. Portanto, a questão recai so­bre o conteúdo. “Muitas pessoas não conseguem alcançar o público ou o público não alcança a produção. É a produtora tentando encontrar uma maneira para contar suas histórias, os donos de canais querendo comprar conteúdo que comunique com o maior público possível e esse público querendo encontrar coisas novas. Portanto, está tudo instável, em transformação”, analisou.

Há gargalos na produção cinematográfica brasileira. Um deles é o dos roteiristas — a pes­soa que pensa e constrói as his­tórias. Hoje, há roteiristas sendo bastante disputados e são poucos os que vivem de escrever ro­teiro, por mais que haja uma demanda gigantesca. Seguinte Erasmo, não se consegue contratar um roteirista da noite para o dia. O roteiro é uma questão es­tratégica, que todos estão ob­servando. E quais histórias contar? Como formar novos roteiristas? Afinal, a falta desses profissionais emperra o processo.

“Há uma grana gigantesca parada por falta de projeto ou por falta de condições de escoar, abrir editais, fazer a coisa andar. Com o tempo, as coisas vão se depurando. Surgirá muita cópia de tudo, muita invenção, muita experimentação, o tempo todo, e aos poucos surgirá conteúdos interessantes”, afirmou.

O pensamento de Erasmo se encontra com o de Jarleo. Ele dá como exemplo, o curta “Viagem na Chuva”, de Wesley Rodrigues, que será exibido no Fica, deste ano. “É um filme muito interessante, muito criativo, muito inventivo, que foge do que é produzido em Goiás.” Ele ainda cita o curta “Julie, Agosto, Setembro”, de Jarleo Barbosa, cujo conteúdo extrapola a média, se destaca e rapidamente é consumido e se torna parâmetro para outras produções. “A questão da qualidade do conteúdo recai no cativar o público. Quem consegue se destacar pela qualidade não para de trabalhar mais”, destaca.

É uma questão do olhar para essas narrativas, que pedem para serem contadas. Além disso, o público está mudando. Do ponto de vista do criador, uma brecha para investir. Investir em informação com qualificação e entender o que se produz e para quem se vende esse conteúdo. Exemplificou: “Como eu produzirei uma série de TV, aqui em Goiás, e quero que se destaque, uma vez que as séries americanas são referências para o mundo? Você quer uma série com pegada goiana, com pegada brasileira ou americana? E quais condições você tem para fazer isso?”.

É necessário vender a ideia e captar recursos para a primeira temporada e, depois, garantir a segunda temporada. O público tem de assistir a segunda temporada. “Você nem consegue vender a primeira temporada se não tiver a certeza de que terá a segunda.” A pressão que se cria é muito grande. Disso, para quem lê e aninha ideias de curtas, longas e outras, um aprendizado: saber lidar com a Ancine, com o FSA, com os canais de televisão, o modelo de venda de conteúdo, com as férias de aquisição de conteúdo, as rodadas de negociação, como mostrar a ideia, o produto, como vender o projeto em poucas palavras. “Um trabalho de vendedor, mesmo. É complexo”, ri.

Na cena audiovisual goiano, o que vai acontecer é que um grupo de realizadores continuará produzindo curtas, longas, e agora, com uma proposta mais autoral, não pensará em televisão. Mas, vai ter um grupo a investir na televisão. Vai se estruturar, produtoras estão se associando. Parcerias estão sendo feitas. As coproduções acelerarão o processo E terá um grupo que fará de tudo. Publicidade, cinema, televisão.

Em resumo ou conclusão: um momento de transição. Uma era gigantesca de precariedades para uma era gigantesca de oportunidades. Porém, extremamente difíceis, quase inacessíveis. “O cenário é positivo, com mais fomento, mais mercado, com demanda de conteúdo, porém, para entrar nele, tem de entrar no jogo e não dá para brincar.” O nível de qualificação e o tipo de relação que se estabelecerá para entrar nesse mercado, mais comercial, segue o modelo industrial; uma produção audiovisual no modelo de indústria. Assim, a segmentação ficará mais clara, no mercado audiovisual goiano, que hoje é como uma nuvem. “Uma coisa confusa, mais uma única nuvem. Realmente vai ter uma consolidação de núcleos criativos diferentes.”

É preciso superar o “estereótipo de goiano”, diz criador de curta premiado

“Foi um pouco por acaso”, assim co­meçou. Jarleo in­gressou na Uni­ver­sidade Estadual de Goiás (UEG), no antigo curso de Rádio e TV. Não contemplava cinema. Por tal “acaso”, a grade mudou, acrescentando muitas disciplinas sobre a área. O curso se renomeou “Cinema e Audio­visual”. Talvez exista uma explicação mais profunda ou até psicanalítica, como ele brinca.

Os pais de Jarleo Barbosa abriram uma videolocadora em sua cidade natal, Anápolis. Era um hábito comum assistirem filmes em sua casa, não com um recorte cinéfilo, mas, sim, como entretenimento. Entretanto, tinham o hábito de saber quem assinava a direção de tal e tal filme. Era algo “incrustado” no cotidiano. Essa fora a interpretação mais profunda. A psicanalítica foi narrada com alguns risos: “Eu querer fazer filmes, talvez tenha a ver, no fim das contas, com querer uma atenção que meu pai e minha mãe dedicavam aos filmes”.

Tem um quê de incredulidade na origem: “Nunca pensei em fazer cinema, pois eu não sabia que filmes eram feitos em Goiás, muito menos em Anápolis”. No meio do curso, trabalhou na área. Não parou. Com a experiência, Jarleo, aos poucos, foi narrando suas receitas de como fazer filmes em Goiás. Primeiro, as ideias surgem, se criam de um dimensionamento pelo que se vive. E foi no curso que ele ganhou tal dimensionamento. “Fomos muito cobaias. O curso não sabia direito o que ele mesmo era. Nós não sabíamos direito o que fazíamos ali.” Não havia nenhum livro na biblioteca, nenhuma maquinaria, equipamento. Daí, acredita, surgiu sua força e a dos colegas de classe.

Pilares

Jarleo acredita também na diversidade. Diversidade como um fator de entropia, de combustão. Pergunta­vam-se: “como será fazer um filme?”; e repetiam: “Como se faz? Como se faz? Como se…”. E quando foram para o mercado, decidiram: “Ah, vamos tentar fa­zer”. Com isso, nasceu a Pana­ceia Filmes. Começa­ram assessorados pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-GO). Surgiram junto à antiga Fábrica Cultura Coletiva, em 2010. Entre a publicidade e “outra coisa desconhecida”, não sabiam bem o que eram na­quela salinha na Fábrica. De­pois, entenderam: “Somos uma produtora audiovisual ancorada em três pilares: reflexão, produção e formação”. E assim seguem com projetos que norteiam esses pilares.

O criador de “Julie, Agosto, Setembro”, Jarleo Barbosa, atua no cinema goiano com reflexão, produção e formação. Foto: Arquivo Pessoal
O criador de “Julie, Agosto, Setembro”, Jarleo Barbosa, atua no cinema goiano com reflexão, produção e formação. Foto: Arquivo Pessoal

Não queriam clientes, tampouco publicidade. Portanto, a dúvida: como gerar renda constante para produtora? Com editais. Entre­cru­za­mento de editais. Editais em vá­rias esferas: municipal, estadual e fe­deral. Hoje, têm uma pequena es­trutura e até funcionários, o se­gundo passo para se fazer cinema.

Trabalhou, enquanto estudava, na área de som. Fazia microfone. Por isso, saiu da faculdade entendendo como a roda girava. O mercado da época o ensinava. Tal conhecimento se desenrolou sobre o cinema. “Precisamos en­ten­der o cinema de maneira ampla e transversal.” Cinema não são filmes. Eles são a ponta e, ao mes­mo tempo, a base. Onde começa e termina. No todo, existe uma gama de serviços, que é cinema. Por exemplo, o festival.

Janelas

“Quando eu saí da faculdade, era muito comum escutar ‘não é possível viver de cinema em Goiás’, porém, é um jeito estreito de pensar.” Como exemplo, Jarleo citou o Instituto de Cultura e Meio Ambiente (Icumam), que realiza há 15 anos o importante festival Goiânia Mostra Curtas. “Fazer filme é uma coisa do cinema e em qualquer negócio você tem de pensar de uma forma plural.” Para Jarleo, o audiovisual precisa se diversificar em negócios. Como dizem consultores e empresários, “não invista todo seu dinheiro em um só negócio”.

Ele ensina que não dá para pensar que se vive de cinema só fazendo filmes. A Panaceia percebe e traz o cinema em várias frentes. Tem um revista com o nome “]Janela[”. O Cinema na Calçada, com exibição de curtas-metragens em lugares históricos da capital. E, o mais novo, Se­mi­nário Audiovisual para Produtoras e Produtores Independentes, o 1º Sappi. Nisso, o cinema como um emaranhado de coisas.

Ainda sobre festivais, são um catalisador, uma importante janela de exibição. Leis de incentivo, cursos superiores e técnicos, também. Hoje, a internet. O filme de Jarleo, “Julie, Agosto, Setembro”, foi selecionado em cerca de 50 festivais. Foi licenciado para TV. Por fim, foi disponibilizado no portal Porta Curtas, patrocinado pela Petrobras, onde foi o filme mais visto em 2013. Ao contrário dos festivais, onde só quem está presente assiste, pelo Portal foi visto por pessoas do mundo todo.

Quando indagado sobre arte e indústria, Jarleo simplifica: “Nesse sentindo não tem novidade nenhuma”. Para ele, “a ideia de mecenato é quase tão antiga quanto a ideia de arte”. Sempre houve essa ligação, meio nebulosa, entre arte e patrocinador. Arte e negócio. Há a gestão de um negócio: existe uma finalidade estética e pensada com modus operandi gerencial. As pessoas serem pagas para criar pode ou não interferir no resultado, que é estético.

Jaleo exemplificou: “O que faz Hollywood ter esse tipo de narrativa não é pelo jeito que se faz, mas a finalidade com que se faz. Não é porque faz sobre um modelo econômico que tem um resultado estético. Não, a finalidade dele é econômico. Existe esses dois prismas. Você quer tornar seu produto artístico um modo de sobrevivência. Não acredito que seja dicotômico. ‘Ou você é artista ou você sobrevive disso’? Acredito que são possibilidades integradas”.

E como integrar? O moço ampliou as perspectivas, afinal, “a questão central da arte, e da vida também, é escolha”. Todo momento é uma decisão. Como quem viaja com uma câmera, criou: “Nós dois conversando aqui, eu tenho 360 jeitos de filmar isso, 360 jeitos e alguns funcionam, outros não. E, dentro dessas minhas possibilidades, algumas coisas vão ser limitadoras”.

Criou em perspectivas circunscritas. Orçamento, patrocinador e “não sei o quê” são fatores que limitam. Entretanto, há limitações que são intrínsecas de cada pessoa. “São limitações de pudor, limitações que me coloco, limitações do meu conhecimento. Quero dizer que vai haver limitações. Se tiver R$ 10 milhões, faça o filme que você quiser, ainda vai haver limitações. Sempre haverá parâmetros. A arte não é sobre liberdade total. É pegar o que você tem e fazer alguma coisa.”

Passos

Receitando, sua prescrição é como letra de médico: livre. Foi assim que nasceu “Julie”. Muito não profissional. O curta veio por caminho improvisado. Jarleo explica em narrativa: “Está­va­mos nos preparando para fazer meu outro filme, ‘Faltam Duas Quadras’. O fotógrafo tinha acabado de comprar uma câmera e queria fazer um teste e disse “ah, escreve um roteirinho”. Falou isso em uma quinta-feira. Eu escrevi sábado e domingo. Na terça-feira, nós estávamos gravando, com meus amigos.”

Ninguém tinha função muito certa no set e todos se ajudaram. “Depois, arrumei um amigo para editar e outro para fazer a trilha. Nós vimos e ‘ah, vamos fazer um lançamento?’. Quando jogamos o teaser na internet, boom!, ‘opa, é um filme!’. Até, então, eu não sabia. Era um filminho. ‘Ah, precisamos de uma pessoa. Ah, tem aquela menina na faculdade e ela tem a cara assim, assim, chama ela para fazer.’ Mas, deu muito certo!” O então sem-saber-cineasta pressentiu que “tinha uma coisa de fresca no ‘Julie’”. Porém, não sabe muito bem, até hoje, dizer o que era. O curta gerou dinheiro e proporcionou experiências outras para Jarleo.

Como médico que digita as receitas, ele pontuou etapas mais claras para fazer um filme em Goiás, o que não se diferencia de outros Estados. Não em receita. “Você tem um roteiro. Você submete o roteiro a um edital ou lei municipal, estadual, fundo de cultura ou algo assim. Eles te analisam, falam ‘ok’. Te dão o dinheiro ou o recurso de captar com as empresas e você, com esse dinheiro, procura um circuito de profissionais. Em Goiás, temos locadoras. Umas três locadoras de equipamento. Têm atores que conhecem um, conhecem outro. Tem a Faculdade de Artes Visuais (FAV) da Universidade Federal de Goiás (UFG), sempre é um lugar para se buscar atores. Você reúne essas pessoas, têm esses profissionais e roda o filme. Na pós-produção, têm profissionais. Só não, por exemplo, se for transformar o filme em película.”

Sobre a formação e a profissionalização no Estado, a receita já demonstra falta de ingredientes. Profissionais presentes nas diversas áreas é algo pequeno, incipiente. Ele constata que há profissionais em filmes sendo rodados paralelamente. Isso é possível. Sobre a direção, todo mundo é diretor. Porém, em áreas específicas, mostra Jarleo, é mais difícil. São poucos profissionais. O bom está nas entrelinhas: “É um mercado incipiente, e também emergente. Um mercado pequeno, e também em expansão. Muito diferente de quando entrei na faculdade.”

Oportunidades

Diz que, onde há vão, há oportunidade, clareia: a falta de profissionais não é algo negativo. É oportunidade, pois, “têm coisas para fazer, tem lugar para se ocupar, tem uma história para ser contada”. É por esse caminho que trilha a Panaceia. “Nós estamos cansados de crescer massacrados por um estereótipo de goiano, de que Goiás é essa terra, que é esse lugar. E, morando em São Paulo, quando falam, vejo essa imagem e quero preencher esse local, esse imaginário com histórias nossas” e ele mostra o vão.

Jarleo é de Goiás. Só foi à fazenda cinco vezes, em toda sua existência. Não gosta, não tem nada disso. E provoca: afinal, o que é esse goiano urbano? Século XXI, que está conectado com o mundo, que fala línguas e que gosta daqui, mora aqui? Faltam essas histórias, pois, o vão foi preenchido por estereótipos. Para o moço, “está na hora de preencher com a nossa voz”. Talvez seja isso a coisa da “Julie”. Pela narrativa visual, se vê, talvez pela primeira vez, um coreto totalmente diferente — e que é o mesmo presente na Praça Cívica.

A Panaceia surgiu desse vão gasto e preenchido de histórias diferentes das que passam pelos olhos dos goianos, do hoje. A Panaceia começou por Jarleo não se sentir representado por nada do que era feito. Os passos de Jarleo — o curso em Audiovisual; o primeiro curta “Julie”; São Paulo e a pós-graduação (que cursou sob o céu paulista) em Roteiro; o segundo filme, “Faltam Duas Quadras”, em 2011; o terceiro, “Atrás da História (ou no Coração do Filme)”, feito com a correria enquanto vivia noutro Estado; a experiência na Globosat, na direção da primeira temporada do programa “Arquite­tu­ra Verde” — trouxeram-no para seu próximo filme, que será gravado em novembro. Título: “A Dis­tância”. É um filme que se passará em Goiânia e Buenos Aires. Sobre um relacionamento à distância.

Os ganhos de sair daqui, ir para outro local, Estado, quiçá outro país (para quem lê), contribui. Para Jarleo, quanto mais viveu em São Paulo, mais vivo ficou Goiás, em si. Nunca pensou fazer filmes em São Paulo. Quer contar as histórias daqui, as histórias de um cara que anda no Centro. Não a história de um cara que desce a Augusta. “Minha pulsão criativa sempre foi voltada para cá. Eu estava lá tirando proveito do que a cidade tinha para me dar. Fazendo meus cursos, trabalhando. Agora, é o momento de retorno” disse. O que reverbera do retorno ainda é incerto. Ele acredita na trilogia “Julie”, “Atrás da História” e, agora, “A Distância”. A pessoa, a cidade. A relação do personagem com o local.

Produção audiovisual do Estado ainda é carente de técnicos

No Estado e em Goiânia, há vá­rios anos, a ideia de fazer trabalho sobre meio ambiente prevaleceu. A sorte de ter o filme contemplado em um festival consagrou essa característica. As ideias surgiam em favor do festival que existia e por um tempo a produção cinematográfica se voltou para o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica). Depois de um tempo, os cineastas começaram a pensar outros temas, permitindo qua­lidades diferentes de filmes. “Ter uma ideia é uma coisa, pois as pessoas têm ideias, mas colocá-la em ima­gens e construir uma narrativa visual não é tão simples assim”, afirmou a cineasta Rosa Berardo.

Apesar das tecnologias terem barateado o custo das produções, a necessidade de qualificação é visível. Surgiu com elas. “As pessoas são cinéfilas ou precisam ter uma formação”, aponta. Ela percebe e mostra que, se não houvesse um espaço para produção cinematográfica, não teria sido incentivado o aprimoramento da técnica em Goiás. “E, hoje, temos excelentes trabalhos de cineastas que mostram tais produções no Brasil e no exterior.”

A Mostra da Associação Brasi­leira de Documentaristas e Curtametragistas (ABD), seccional do Estado, que ocorre paralela ao Fica, foi importante por ser mais uma oportunidade para as pessoas produzirem filmes que não fossem de temática ambiental e serem mostrados em Goiás. Depois de algum tempo, cerca de cinco anos de existência do Fica, os cineastas começaram a trabalhar outros temas. “Isso foi excelente por enxergar a riquezas de temas que tem Goiás, o que fez crescer”, disse Rosa.

As produções atuais não objetivam apenas o Fica. Há janelas para concorrer aqui, no Estado, e fora, pois a qualidade dos filmes já permite isso. “Há vários anos meus filmes são aceitos em festivais nacionais”. Rosa conta sobre sua última produção, uma animação sobre a infância de Cora Coralina: “Foi aceito em 15 festivais nacionais. Ganhou o prêmio em Pernambuco, como melhor filme brasileiro de animação. Além disso, foi para dois países, Itália e Portugal”.

Há um complexo de “ser cineasta de Goiás”. As pessoas acreditavam que não existia uma produção cinematográfica aqui e existe. Já é respeitada. As mostras, os festivais, permitiram isso. Permitiram que Rosa e vários colegas fizessem seus filmes. Além disso, diz, “é bom poder mostrar na nossa casa”. O FestiCine, do Estado de Goiás, por exemplo, que retorna suas atividades esse ano, assim como o Goiânia Mostra Curtas, foi uma janela muito importante para o Estado.

As ideias estão livres. Rosa tem gos­to pelas adaptações literárias. “O ci­nema é um sonho. Você sonha e tem de ser muito persistente, pois, nós sabemos da dificuldade dos re­cursos. Facilitou muito a Lei de In­centivo à Cultura e o Fundo de Cul­tura foi uma conquista muito grande para os artistas de todas as áreas e, principalmente, para os do audiovisual”, disse. Ela ainda ressalva: há recursos para pessoas iniciantes.

Início

Todos começam, um dia. As escolas de formação e qualificação são muito importantes. Rosa falou so­bre o Ateliê da Casa de Cinema, que foge às graduações. São cursos rápidos. O “Realize Um Curta” tem duração de seis meses e ensina como se faz um curta-metragem. “Nós já fi­zemos cinco filmes. O roteiro é es­crito pelos alunos e dirigido por eles” e ainda destaca: “Os cursos são muito importantes. Depois, você continua sozinho, pois a arte é uma paixão”.

“O cinema é um sonho. Você sonha  e tem de ser muito persistente”, diz a cineasta Rosa Berardo, que pontua as dificuldades  da pré-produção ao fim do processo. Foto: Arquivo Pessoal
“O cinema é um sonho. Você sonha
e tem de ser muito persistente”, diz a cineasta Rosa Berardo, que pontua as dificuldades
da pré-produção ao fim do processo. Foto: Arquivo Pessoal

Relembrando a ideia de receita, produzir segue passos e Rosa concorda com Jarleo e Erasmo: “A coisa básica é saber escrever um bom roteiro”. Ela conta que os editais permitem que alguém compre um roteiro e se apresente como diretor. É pelo roteiro que o júri avalia se a pessoa sabe contar, literariamente, uma história. “É analisado se o roteiro é original, se a forma de contar a história é interessante, e isso com base em vários critérios.” Há livros sobre roteiro, a exemplo do de Hugo Moss. Quem se interessa pode ser autodidata. Em Goiânia, ainda não há um curso sobre o assunto. Às vezes, surgem cursos rápidos de escrita. O problema é que esses cursos não comportam todos os interessados.

É preciso estar atento aos editais e saber formatar essa ideia no papel. Depois, apresentar uma equipe que seja experiente, pois a comissão percebe que a pessoa está cercada de pessoas experientes, o que o ajudará. A documentação é muito importante. Preencher o edital não é fácil. Há profissionais que fazem consultoria e verificam se há todos os documentos necessários, todas as assinaturas. “É bom revisar, pois às vezes, acaba esquecendo um papel. Não pode se intimidar.”

A forma de se fazer usa de muita abertura, pois são filmes independentes. Ela volta à discussão de Erasmo e encontra as ideias do cineasta: “Curta-metragem não são pro­dutos de mercado”, disse. Há al­guns canais de televisão que mostram alguns curtas. Os jurados são pessoas bem abertas e permitem ro­teiros originais, que fogem do clássico. Muitos roteiros saem desse formato. O investimento em longa é re­cente. O primeiro valor alto vem com o Fundo de Cultura, de R$ 800 mil para Goiás. Antes, se oferecia 180 mil reais, e ninguém consegue produzir um longa com esse dinheiro.

Ela ressalva a importância do júri, que analisa os projetos. “Os roteiros anteriores, aprovados, foram trabalhos bastante originais, bem ousados e foram contemplados. Tudo depende do júri de seleção. Se forem mais abertos, ele vai entender que tem de dar espaço para novas formas de narrativas, que não seja apenas a clássica. Do contrário, não criará a identidade desse cinema regional.”

Inovação e mercado

Rosa percorre a ideia de identidade do cinema goiano. “Qual a ma­nei­ra como os goianos contam a história?” Os novos olhares, novas narrativas contribuem para essa construção. “Quando falo sobre estudo, um caminho é pelo clássico. É assim em todas as áreas. Depois, você procura sua identidade, suas ideias. Você, depois, transgride. O expressionismo-alemão, o neorrealismo italiano, a nouvelle vague, o Cinema Novo brasileiro, todos foram movimentos que discordaram do clássico.”

O cinema independente, feito com essa pouca verba, é um espaço para inovação. O Brasil não é como Hollywood, onde tem um produtor com muito dinheiro, que obriga o cineasta a fazer um filme de mercado. A cineasta exemplifica o filme nacional independente “Dois Coelhos”, escrito e dirigido por Afonso Poyart, que quase faliu, pelo investimento no longa, e fez um filme muito inovador.

A Globo Filmes tem um padrão de linguagem. “A Rede Globo não vai apoiar uma linguagem em que não veja retorno comercial. Há toda uma pesquisa se aquilo ganhará audiência.” Portanto, para fazer algo diferente, ainda é necessário o cinema independente. O formato, em Goiás, se constitui com uma maioria de 95%, de curta-metragem. Poucos cineastas conseguiram fazer um longa. Muitas vezes, os que conseguiram contaram com alguma lei, procuraram apoio com empresas privadas e até investiram o próprio dinheiro”, explicou a cineasta sobre a descoberta da linguagem de cada um, ao longo do tempo.

Esses 95% de curtas não é para mercado. “Ninguém passa seu curta em cinema. Nem o de média-metragem tem esse espaço. O curta-metragem já nasce fadado a não dar lucro. O curta-metragem é uma escola, onde o diretor está aprendendo a contar a história por imagens”, explicou. Além disso, para conseguir fomento para um longa, requer três curtas no currículo. “Não é fácil produzir um longa.”

“Em Goiás, a produção de curta-metragem foi uma escola, mas já passou da hora de termos mais verbas para começarmos os longas e esses, sim, entrarão no mercado”, afirmou Rosa. O fomento de R$ 180 mil, do governo, não é apoio para um longa. “Eu não considero. O de R$ 800 mil é um apoio. Com esse valor você pode começar a pensar. É muito caro. Para quem não tinha nada, já é ótimo. Assim, o cinema dá os primeiros passos para entrar no cinema comercial. Por enquanto, estamos apenas no cinema de arte”, disse a cineasta.

Quando o filme vai para uma distribuidora, cobram um valor muito alto para distribuí-lo. De toda forma, um filme de baixo orçamento ainda não dá lucro para o diretor. “Eu digo entrar no mercado no sentido de ocupar espaços, de mostrar o cinema goiano, nosso ponto de vista. Nós que moramos no Centro-Oeste temos um olhar diferente das pessoas que moram em São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul, que criaram uma excelente política de apoio ao audiovisual. Goiás nem chega a ocupar espaço nacional. Quem ganhar a verba precisa fazer um bom trabalho para acreditarem nas ideias daqui e mais pessoas começarem a fazer filmes”, explicou Rosa.

Profissionais

Sobre o campo profissional, Rosa acredita que a caminhada do cinema goiano já apresenta ótimas equipes técnicas. “Preparadores de ator, de teatro, para câmera. Portanto, podemos trabalhar apenas com atores goianos. Eu mesmo nunca trabalhei com ninguém de fora. Temos maquinistas, diretores de arte, por exemplo.”

Como a produção aumentou, geralmente, têm dois ou três filmes sendo gravados e a produção depende desses profissionais. A cineasta ressalva o perfil emocional e o intelectual que devem andar junto, pois um erro atrapalha todo o processo, que é intenso.

Por isso, a formação é importante. Para ela, faltam em Goiás cursos de formação técnica específica para essas áreas, como maquiagem para filmes, como maquinista, só de direção de fotografia, com uma boa carga horária, captação de som. Esses cursos são poucos e precisam, também, da ajuda financeira do governo. Na área de pós-produção, a mesma problemática: faltam bons profissionais no som, mixagem e, também, na pós-produção da imagem. “São poucos os que dominam, por exemplo, a colorimetria, o equilibrar das cores. Falta quem domina bem os programas para esse trabalho”, disse.

Há falta de mão de obra especializada. “A pessoa que sair de Goiânia e for para São Paulo, Rio de Janeiro e voltar, conseguirá bom espaço aqui. Os jovens que quiserem fazer isso não precisam ter medo. Não vai faltar trabalho. A pessoa deve investir.” A área de direção é abarrotada. A necessidade se estatela na área técnica. “Há bons profissionais na pós-produção. De cores, efeitos especiais, animação, áreas importantes para pós-produção. Porém, esses profissionais não conseguem atender a demanda de trabalho que existe” e, com isso, se caracterizam como profissionais sobrecarregados. “Eu fiz três filmes no ano passado e tive dificuldade para encontrar esses profissionais. O que é um bom sinal para Goiânia. Precisamos de mais gente”, disse.

Filmes em Goiás só avançarão com investimento na cultura cinematográfica

O professor da UEG Ro­drigo Cássio explica o início da produção cinematográfica em Goiás. A relação entre o teatro e cinema e o cineclubismo é marcante. O Cineclube Antônio das Mortes, por exemplo, é importante para história da exibição. O cenário nacional destacava a área cultural. Assim como dava importante lugar para os festivais. “Goiás não fica fora disso.”

A circunstância local foi das leis de incentivo. Isso produz certa alteração na lógica comercial do cinema. Tal lógica, como nos anos 50, da época dos estúdios, desobrigou o filme a concorrer no mercado e permitiu que o diretor continuasse a fazer filmes.

Um dos efeitos foi criar um circuito paralelo ao comercial, onde esses filmes são exibidos, onde boa parte dos filmes, que tem menos condições de ter sucesso comercialmente, acabam tendo a oportunidade de alcançar o público. Nisso, o Goiânia Mostra Curtas e o Fica –– janelas onde a produção cultural goiana encontra espaço. “Não temos filmes que consigam chegar ao meio comercial. Não há uma produção de curtas e, em termos econômicos, essas produções vão se sustentando por meio de leis e, também, por iniciativas de grupos que se articulam para lidar com essas circunstâncias. Temos os coletivos que produzem. Produzem bons filmes, maus filmes. Ainda não é uma produção sólida, consistente, é uma produção incipiente, em crescimento”, afirmou.

Em termos de linguagem, Rodrigo destaca a presença grande da linguagem televisiva, em boa parte da produção. Isso se relaciona com as condições econômicas locais: uma TV que é mais forte que o cinema. E, por mais curioso que seja, acaba formando pessoas do audiovisual. O mercado publicitário também forma pessoas do audiovisual. A característica própria da linguagem publicitária vai contaminando os filmes, se infiltrando.

Por outro lado, há cineastas realizadores que buscam referências em produções diferentes e com uma consciência maior do cinema. Nesse sentido, o curso de Cinema da UEG tem um impacto positivo, pois, o curso interfere como formador na cultura cinematográfica local. Ele injeta essas referências da história de cinema, de uma linguagem cinematográfica, propriamente, nos realizadores que saem do curso e vão fazer seus filmes.

Jarleo Barbosa foi um fenômeno com “Julie, Agosto, Setembro” e a indústria vê ali uma ruptura com a ideia de um cinema feito com base na linguagem televisiva. Há um mercado publicitário televisivo mais forte, que foi formatando a linguagem dos filmes. Há uma tendência, mais recente, de fugir disso, que é esse cinema “incipiente” e, aos poucos, vai se consolidando.

Uma coisa que compromete não só o cinema goiano, menos até, pois vive uma situação particular, mas o cinema brasileiro como um todo, é o fato de que muito dos cineastas que fazem filmes fora do circuito comercial, às vezes, se preocupam pouco em chegar ao mercado, em fazer filmes com certas lógicas publicitárias para atrair um público maior. Então, o filme corre esse circuito paralelo. São dois meios onde o público encontra os filmes: cinema comercial e nos festivais. Em Goiás, essa liberdade existe, mas não é só isso que determina o que os artistas fazem. “Eles fazem a partir da situação econômica e das referências estéticas que têm, de uma cultura cinematografia”, afirmou.

“Gosto dessa ideia de que existe uma cultura cinematográfica e ela tem de ir se formando. O cineclube Antônio das Mortes fazia isso, nos anos 80. O cineclube Cascavel fazia isso no início dos anos 2000, foi um cineclube organizado pela Associação Brasileira de Docu­men­tarista (ABD), que tem uma mostra paralela no Fica, e há três anos deixou de funcionar. Têm vários ou­tros cineclubes. Lá na UEG te­mos o Cineclube Laran­jeiras. É onde essa cultura cinematográfica vai se formando”, disse o professor.

Rodrigo Cássio, da UEG, destaca a necessidade de cultura cinematográfica, além de investimentos na produção. Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Rodrigo Cássio, da UEG, destaca a necessidade de cultura cinematográfica, além de investimentos na produção. Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Espaços

É necessário, destacou, um investimento nos espaços. “Nós poderíamos ter uma cinemateca em Goiás. O Museu da Imagem e do Som está sem um papel formativo, de fato. Seria um investimento muito interessante, do ponto de vista de fomentar essa cultura audiovisual, essa cultura cinematográfica”, explica Rodrigo.

Sobre a qualificação, ele esclarece o cinema como uma arte coletiva, um tipo de produção que envolve habilidades muito diversas e é necessária essa formação específica. “O diretor tem um papel muito diferente do maquinista, muito diferente da pessoa que pensa a fotografia, ou seja, envolve uma formação muito diversa e não que seja um problema da UEG, especifico, mas da universidade, no todo, em conseguir formar, em um curso de audiovisual, profissionais tão distintos. É difícil encaixar em ementas, em grade. Sem dúvida, precisamos melhorar nesse aspecto”, destaca.

Há profissionais que estão em falta no mercado do cinema goiano. Há profissionais que dominam o mercado e, muitas vezes, são os que se habilitam em determinada área e, praticamente, fazem todas as obras. Rodrigo, porém, diz: “Não é necessariamente ruim, mas seria muito melhor se tivéssemos uma diversidade, um mercado mais completo, com vários profissionais. Isso não depende apenas da universidade, mas também do cinema crescer e de pessoas fazerem que o cinema seja importante, de novo, para uma boa parte do público que se interessa por esse cinema feito no Brasil e em Goiás.” Não é só mais incentivo para realização, mas também para exibição, para essa cultura cinematográfica se fortalecer. É um todo. Vários pontos que precisam melhorar.

Na UEG não há uma formação tão especializada, como maquinista ou continuísta. Há diferentes habilidades que são formadas. Os estudantes se formam nelas durante o curso e seguem um caminho. Pensando, também, que a formação não está só na universidade. Isso é considerável. “O papel do Icumam, por exemplo, é interessante. São cursos mais técnicos. A universidade não tem, necessariamente, um papel que converge com esse. Não estou falando que os cursos técnicos não são importantes — pelo contrário, são essenciais. Deveriam ter mais cursos técnicos e a universidade cumprindo seu papel, pesquisa, extensão, ensino”, complementa. Afinal, não adianta dominar colorimetria sem ter formado um olhar para os filmes, o próprio gosto para arte e a universidade está voltada para isso, sem excluir a técnica. “É uma construção.”

Mudanças

O status de Goiânia é em andamento. “O cinema, o que é? É uma forma de expressão artística extremamente moderna. Surgiu no século XX e ganhou muita força nas cidades que cresceram em urbanização e tiveram uma cultura urbana muito decisiva.” O começo da história do cinema está muito ligado às novas condições de trabalho, na França, onde tinha certa diversão de massas feita com a câmera de filmar. As coisas foram mudando. A televisão impactou, negativamente, no sentido de que o cinema deixou de ser uma experiência que chamava muita atenção.

“Goiânia não é um centro urbano, não é uma metrópole. Goiânia pode estar em vias de se tornar isso”, disse Rodrigo. A cidade não está na condição de um grande centro urbano, onde há uma cultura urbana, com um cinema, que é uma expressão urbana, forte e consolidada. “Acredito nisso, que estamos em andamento mesmo. E temos que saber lidar com isso. O crescimento da cidade deve propor melhorias para quem deseja trabalhar com cinema.” Ele concluiu: “Nós queremos ser modernos, na verdade. Isso é um fato, constatamos isso. Mas, se somos, é outra história”.

Sobre as novas mídias, comenta Rodrigo sobre um filme no Fica, deste ano, chamado “Dergo”, de Ricardo Alves, aluno da UEG. Foi filmado com câmera de celular, na região do Dergo, onde Ricardo trabalhava. Depois, ele editou as imagens. São vários debates que vêm a partir daí, como: “Não vai substituir a ideia do cinema feito com aparato todo pesado, cinema de estúdio?”. Outro filme é “Pacific”. Também foi gravado com câmeras portáteis digitais, que os próprios personagens usaram no filme. Esses são pactos para linguagem cinematográfica.

Há quem diga que a ausência da encenação no “Pacific” compromete o cinema, a ponto de não saber mais se é cinema. Essa linguagem surge com as novas mídias e há uma série de rupturas. Uma delas é a ideia de encenação como um componente do cinema. Isso não tem impacto direto em Goiânia. Tem esse filme e têm outros. “A Pedra”, da Adriana Rodri­gues, que também está no Fica, é um filme todo encenado. Todo pensado na ideia anterior ao que surge com “Dergo”, com “Pacific”.

“Para nós, o cinema é uma coisa nova. Mas, de fato, para si mesmo, o cinema já é uma coisa velha”, diz. Há teóricos que falam de um pós-cinema, justamente pelo aparecimento das mídias digitais, da superação de um aparato que predominou e, inclusive, da relativização das salas de cinema. O fato de que os filmes circulam por outros meios. Internet, por exemplo.

“Tenho alunos que assistem filmes sempre no computador. Não usam mais nem a televisão e isso modifica a maneira em que se recebe a obra audiovisual, o cinema. Então, o cinema são muitas coisas.” O cinema em Goiás é algo que está caminhando. O destino depende da recepção e da criação dos artistas. “Não isento a falta de incentivo. É necessário que a produção tenha uma constância, que o realizador faça um filme e, depois, faça outro, para um crescimento, evolução de uma carreira e a segurança de que se pode melhorar com o tempo”, afirma. Há mais coisas além da necessidade de leis e de dinheiro, como uma cultura cinematográfica. Por fim, indaga: “Por que não somos ainda mais do que somos e o que nos falta para sermos mais do que somos?”