No País das Maravilhas: o Brasil seguiu o coelho e caiu num episódio dos Simpsons

09 dezembro 2017 às 09h58

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Em 2018, pode haver uma virada à esquerda ou uma guinada para a direita. Para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve

— Por favor, o senhor poderia me dizer por qual caminho eu devo seguir para sair daqui?
— Claro, mas depende de aonde você quer ir.
— Isso não importa muito, tanto faz!
— Então tanto faz qualquer caminho que você vai tomar.
O texto é uma tradução livre de um dos trechos mais conhecidos de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll. É o momento em que a garota, perdida, encontra um gato misterioso e lhe pede orientação.
Corta para a vida real.
Fim de tarde. Na avenida do caminho de casa, depois de sair do serviço, vê-se um pequeno aglomerado de pessoas. É uma espécie de manifestação no semáforo e, nela, a faixa que estraga o happy hour: “BUZINE se você é a favor da INTERVENÇÃO MILITAR”. É uma meia dúzia de gatos pingados, mas são meia dúzia de gatos pingados. Talvez tenham encontrado o outro felino, o Gato Risonho da história de Alice, e tenham decidido o caminho do “tanto faz”. Tanto faz, democracia ou ditadura.
Já em casa, o lanche rápido ao assistir ao telejornal local vai embrulhar o estômago: um menino de 14 anos mata o colega na escola com uma pistola automática. Disparou várias vezes, feriu outros adolescentes. Por quê? Porque ficou com raiva de o considerarem malcheiroso e decidiu se vingar. No intervalo comercial, uma propaganda política mostra um vídeo de um comerciante matando um assaltante e, a seguir, uma deputada defendendo a liberação geral da venda de armas para a população. Coincidência burlesca, ou seguimos o coelho e entramos no buraco com Alice caindo dentro de um episódio dos Simpsons ?
Acaba o noticiário e vem a novela das sete, que parece trazer um clima mais real à atmosfera. Mesmo que dentro do padrão Globo de qualidade, parece ser a arte agora a imitar a vida, de modo que se instaure um pouco de sanidade paradoxal – “apenas” as cenas de brigas, traições e pastelões de sempre. Dura pouco. O Jornal Nacional e sua assepsia trazem notícias da realidade paralela. Estrelando: Michel Temer e a reforma da Previdência. O presidente conta os votos para aprovar e o Mercado fica à espreita para ver como está tudo. É preciso atestar a segurança na votação, se todos os parlamentares estão sendo devidamente “convencidos”. A naturalidade com que a repórter fala das negociações para angariar votos deixa dúvidas sobre a necessidade das aspas na palavra do período anterior. Ninguém de nenhum dos lados da tela da TV parece se comover com o claro cenário de toma lá dá cá entre os poderes Executivo e Legislativo. Nos condomínios ao redor, é hora do jantar e as panelas agora só servem às refeições. Tudo normal.
No bloco seguinte, a bomba é de gás: empresas petrolíferas ganharam dos deputados uma isenção fiscal que pode chegar a R$ 1 trilhão em 22 anos. A proposta original era de o benefício durar “só” até 2022, mas um deles teve a ideia de ampliar o prazo até 2040. Mais ou menos a diferença que muitos trabalhadores terão de acréscimo para ter direito à aposentadoria integral pela reforma. É um privilégio ter falta de noção à mão como inspiração ao realismo fantástico, mas tanto assim chega a tirar a graça da ficção, diria Gabriel García Márquez.
O esgoto que sai da tela esgota a resiliência. Não dá para querer lucidez nas redes sociais, mas melhor acessar a loucura idiossincrática da internet, onde o bizarro é ser normal. Pelo menos lá ninguém está desavisado de que, se publicar uma pesquisa revelando que a meia dúzia dos sujeitos mais ricos do País acumula o mesmo montante dos 100 milhões mais pobres, alguém pode questionar a falta do Lulinha na turma. E dá-lhe fora Dilma, fora Lula, fora PT.
Enquanto passa a raiva pelo contrassenso de uma burrice conveniente à fuga do cerne da questão, chega um amigo para conversar “inbox”. Não dá tempo de cumprimentar antes de ele enviar o link da mais nova atração do portal de um importante jornal: o Monitor da Doutrinação. É uma espécie de disque-denúncia virtual para oferecer um novo serviço: o Monitor “recebe, verifica e reúne casos de doutrinação ideológica e política nas escolas e universidades do país”, diz o texto, sem meias palavras. Esqueça de que “doutrinação ideológica” é uma expressão vaga, além de redundante, e resigne-se com a norma não escrita de que a internet por natureza aninha o grotesco. Mas é que o veículo em questão é o mais lido de seu Estado. Talvez seja a tal “pós-verdade” oficializada como jornalismo.
O Brasil sempre suscitou sobre si olhares de quem gosta de ver o exótico. Basta dizer que a primeira imagem popularizada pelo mundo sobre o que é “ser brasileiro” foi a de uma mulher bonita e jovem com um chapéu cheio de frutas na cabeça. Ah, e ela era portuguesa – Carmen Miranda certamente não ficaria deslocada se tivesse tido uma participação especial no livro de Carroll.
Não deve haver outro lugar onde tenham inventado micaretas coreografadas para exigir a saída de uma governante e o fim da roubalheira, puxando um cortejo de patriotas de ocasião, vestidos com a camisa de uma entidade cujo presidente será preso por corrupção se sair do País. E, no meio daquela turba, políticos com extensa ficha corrida para chancelar o evento.
Não deve haver outra Nação em que um presidente biônico chega ao poder guindado pela oposição, tem a menor aprovação da história, compra apoio para não ser levado ao tribunal acusado de corrupção e, ainda assim, se acha no direito de fazer mudanças estruturais para toda a população. Afinal, o que é falta de popularidade e de legitimidade diante de cargos, de verba para emendas e do humor do Mercado?
O Brasil é a Alice diante do gato. Quer sair de onde está, mas não sabe para onde vai. A população, anestesiada, balança a cabeça, dá de ombros, resignada. Não mais reage. Tanto faz. Em 2018, pode virar à esquerda, pode dar uma guinada para a direita. De um lado, um Chapeleiro; do outro, a Lebre de Março. “Ambos são loucos”, avisa o Gato. Não importa. Porque, para quem não sabe para onde ir, qualquer caminho serve. Até o descaminho.