Revitalizada, a tradicional praça esportiva, que viveu o abandono após atingir o apogeu nos anos 80, ressurge dia 1º de junho como espaço de usufruto até para quem não gosta de motores

Presidente da Agetop, Jayme Rincón, apresentando o autódromo: “É um espaço de lazer completo, que vai virar ponto turístico” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Presidente da Agetop, Jayme Rincón, apresentando o autódromo: “É um espaço de lazer completo, que vai virar ponto turístico” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Elder Dias

Não é por acaso que os dois maiores ícones brasileiros sejam Pelé e Ayrton Senna. Para o bem ou para o mal, a autoestima do brasileiro está umbilicalmente ligada ao esporte. São arquétipos — diagnosticaria Carl Jung, como fundador da psicologia analítica — que servem para elevar a um grau vitorioso uma Nação ainda medíocre em termos de igualdade social, educação, cultura, memória e heróis de verdade.

Enquanto a redenção tupiniquim não vem pela valorização desses aspectos mais universais —processo que leva décadas, senão séculos —, é preciso, ao menos, dar o devido valor ao que parece ser o que se tem de melhor. Infelizmente, investir nisso também é uma oportunidade que vem sendo perdida, diante do desempenho pífio nas tarefas para a Copa do Mundo; também tem tudo para ser desperdiçada com os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. O País que põe o esporte como carro abre-alas de sua identidade não está conseguindo fazer-lhe a devida reverência: o cronograma a­trasado e o descumprimento da lista das grandes obras de infraestrutura previstas para os eventos esportivos puxam para baixo a expectativa de todo o povo. A aposta grande está sendo um fiasco.

Entre esses burburinhos (lamentos?) pela ocasião única que parece se esvair diante da Copa iminente, Goiás caminha em “low profile”, discretamente, até pelo fato de que o evento passou longe daqui: nem sequer para treinos alguma das 32 seleções do Mundial estará no Estado durante seu período em terras brasileiras. Um cenário que jogaria para baixo o orgulho goiano — afinal, o maior evento mundial de futebol sentou praça em Manaus, Natal e Cuiabá, centros bastante inferiores no ranking esportivo em relação a Goiânia.

Por ironia, o fato de não estar “dentro” da Copa de certo modo tira de Goiás o peso de um possível fiasco. Enquanto isso, o esporte por aqui vai correndo por outras raias. É nesse contexto que no dia 1º de junho será entregue a maior re­forma por que já passou o Au­tó­dromo Internacional de Goiânia. A julgar pelo discurso de seu principal garoto-propaganda, o presidente da Agência Goiana de Trans­por­te e Obras (Agetop), Jayme Rin­cón, é algo para se animar: depois de uma trajetória de decadência desde que deixou de sediar a etapa brasileira do Mundial de MotoGP, em 1989, e passar por intervenções que em nada contribuíram de fato para sua recuperação, o que há agora é um cenário promissor.

De fato, desde sua inauguração, há exatos 40 anos, nunca houve algo tão visível em termos de obras naquele espaço. Mesmo quem só passa pela GO-020, que margeia o circuito, pode observar a movimentação de operários, caminhões e maquinário em geral — o indefectível muro em forma de barras de concreto que escondia o cenário foi totalmente derrubado e possibilita o acompanhamento do trabalho contínuo, que não parou nem mesmo no feriado de 1º de maio.

Obras do autódromo em fase final: custo de R$ 52 milhões em 2 licitações
Obras do autódromo em fase final: custo de R$ 52 milhões em 2 licitações | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Porém, mais do que retomar a importância que Goiânia teve no cenário do automobilismo, a nova proposta para a praça prevê seu usufruto para além das corridas de esporte motor: a área será utilizada dia a dia pela população. É como se a cidade ganhasse um parque a mais. “É um espaço de lazer completo, para abrigar famílias. Vai virar ponto turístico, a qualquer hora, inclusive para ver o pôr do sol, que é lindo daqui”, disse o en­tu­siasmado Rincón, ao receber no local a im­prensa e uma delegação do autódromo de Brasília, interessada em ver as inovações para estudar sua a­plicação no circuito do Distrito Fe­deral, que também será reformado.

Assim, ao voltar das cinzas com a promessa de dias melhores, o nobre espaço — hoje mais nobre ainda, incrustado que ficou entre condomínios de luxo — contará com um pacote de atrações mesmo para quem detesta ronco de motor: a urbanização da área vai criar um parque de 55 mil metros quadrados, que ficará aberto à comunidade até às 23 horas. Nele, o cidadão terá acesso a pistas de caminhada e de ciclismo (com iluminação noturna), espaço para entretenimento, playground, kit de academia, teatro de arena, lanchonete e outros serviços. Em destaque, os espaços para a prática de patinação e de skate — estrutura construída de acordo com a orientação de consultoria gaúcha referência em design de pistas da modalidade. A administração contará com um sistema de monitoramento com 134 câmeras e haverá segurança em tempo integral. A proposta é de que não fique um único ponto cego em toda a área de mais de 800 mil metros quadrados do autódromo.

Um cenário que contrastará drástica e positivamente com o que houve nos últimos anos. Em 2009, o autódromo havia deixado o caderno de esportes dos impressos e era notícia nas páginas policiais, por conta do mato que tomava conta até das margens da pista, muros quebrados e lixo acumulado. Mais do que isso, havia lá até mesmo festas clandestinas, com até 2 mil pessoas e consumo de bebidas e drogas. Muito som automotivo e nenhuma fiscalização do poder público. O fundo do poço chegou com a interdição do local, obtida pelo Ministério Público no ano passado.

Central de monitoramento, ainda em instalação, terá 134 câmeras | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Central de monitoramento, ainda em instalação, terá 134 câmeras | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Duas décadas antes, o apogeu. De 1987 a 1989, Goiânia sediou o Campeonato Mundial de Moto­velocidade, hoje MotoGP, a categoria top do motociclismo. Recebeu ícones do esporte, como os campeões Eddie Lawson, Wayne Gardner e Kevin Schwantz e o acrobático Randy Mamola — que por aqui virou até nome de manobra com a moto e sofreu um acidente memorável no miolo do circuito. Naqueles anos, a capital vivia o pesadelo da tragédia com o césio 137 e o esporte se tornou um bom embaixador para curar as feridas da cidade. Entretanto, depois, o contrato não foi mais renovado. Goiás perdeu espaço no calendário da Federação Internacional de Mo­tociclismo (FIM) e o Brasil, também — este ano será mais um em que a principal categoria de moto do planeta não virá ao País.

Embora seja uma personalidade política — além de ocupar um posto de vulto, é também um dos principais articuladores do governador Marconi Perillo (PSDB) —, Jayme Rincón tem uma relação especial com o local: ele é ex-piloto e viveu na plenitude a fase áurea da pista, entre os anos 70 e 80. Diante de todas as obras de que cuida a Agetop, de hospitais a rodovias, é natural então que o autódromo lhe seja um espaço de entusiasmo. Ao falar, atua com o pragmatismo, mas não deixa de levar em conta o coração. “É algo para recolocar Goiânia no mapa do esporte mundial.”

Esse reposicionamento geopolítico da capital tem seu custo. O gasto final, segundo a Agetop, será de R$ 52 milhões, depois de duas licitações — a primeira no valor de R$ 27 milhões. “Faço questão de ressaltar de que não houve aditivo de preço, mas, sim, de serviços. Ou seja, acrescentamos muito mais obras no segundo edital, como o monitoramento por câmeras, a pista de skate, a urbanização e as novas áreas de escape, entre outras”, diz o presidente da agência. Por quê? Rincón admite que o primeiro projeto não solucionaria a revitalização do espaço de forma definitiva. Não seria muito mais do que um novo “remendo”. “Era um projeto bem mais acanhado. No meio do caminho, o governador autorizou um projeto maior, dado o clamor que suscitava a obra. Ao invés de passar um ‘batom’, fizemos um autódromo novo”, sintetiza. Entre uma maquiagem com um gasto alto e uma obra duradoura, ainda que com o custo dobrado, o governo optou pela segunda alternativa.

Um novo coração para um quarentão

O goiano Alencar Júnior na ponta em prova que venceria no Autódromo de Goiânia, em 1979 | Foto: Blog da Graxa
O goiano Alencar Júnior na ponta em prova que venceria no Autódromo de Goiânia, em 1979 | Foto: Blog da Graxa

A pista está para o autódromo assim como o gramado está para o estádio. É a pulsação, a razão de existir. Ocorre que, se o futebol é prejudicado por uma superfície não adequada, irregular, um asfalto ruim inviabiliza o circuito por um motivo mais sério ainda do que a questão da performance: é a própria vida dos participantes — e também da plateia e demais presentes — que é colocada em risco.

Desde que a MotoGP se foi de Goiânia, nunca mais a pista foi a mesma. Mais precisamente a partir da primeira reforma, no início da década de 90, o asfalto nunca se igualou ao original, o que prejudicava o desempenho de carros e, especialmente, de motos. O coração do autódromo estava doente e, possivelmente, isso colaborou bastante para que todo o restante entrasse em colapso. As sucessivas más administrações e o descaso dos governos foram apenas a cereja no bolo indigerível do autódromo. Muita promessa e mais abandono ainda.

Ao longo dos anos, os campeonatos foram excluindo a pista do calendário. A perda mais sentida foi o da Stock Car. A categoria maior do automobilismo nacional, que teve dois pilotos de Goiás como campeões — Alencar Júnior (1982) e Marcos Gracia (1986) —, fez sua última corrida na capital em 2001. Volta agora, 13 anos depois. E em alto estilo: em 3 de agosto, o circuito, já quarentão, saudoso dos carrões, será palco da Corrida do Milhão, a mais chamativa do ano, com transmissão ao vivo pela Rede Globo — o que deverá trazer bons dividendos políticos ao governo em plena campanha eleitoral.

Mas, fora a revitalização de toda a área, o que é bom para a população em geral, algo traz um grande otimismo para amantes das corridas. Não é nada difícil de explicar. É que, a cada intervenção, a dúvida era fatal: como ficará a pista? Voltará a ser “como antes”? E, com o fracasso reforma após reforma, vinha de novo o problema da autoestima abalada: o circuito de Goiânia não voltaria a ser aquela referência mundial em traçado que tinha agradado o mundo inteiro — como era o gramado do Estádio Serra Dourada, praça que também está na lista de reformas “além do batom” por parte do governo.

Jayme Rincón banca: desta vez, sim, a coisa foi para valer. “É algo para ficar, de primeiro mundo, pode correr qualquer carro aqui. Tanto que o calendário já está fechado, todo fim de semana, de junho a dezembro.” E os grandes acontecimentos, uma reedição da MotoGP ou mesmo uma Fórmula Indy? “Quando se tem uma praça desse porte, os eventos vêm naturalmente”, aposta Rincón. A parceria com Brasília pode facilitar: duas cidades próximas poderiam trazer corridas da Fórmula Indy, por exemplo, em fins de semana consecutivos, e os custos seriam reduzidos praticamente pela metade para ambas. “O autódromo não era capaz de segurar uma corrida regional. Agora a pista não tem uma emenda sequer. Ficou perfeita”, diz o vereador Zander Fábio (PSL), também piloto e pentacampeão de Fórmula 200.

“Reconstrução foi um trabalho de arte”

Fernando Campos: “Critério aplicado na pista foi excepcional” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Fernando Campos: “Critério aplicado na pista foi excepcional” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

O português Fernando Campos é o jornalista mais especializado em esporte motor no Estado de Goiás. Passou por grandes veículos de comunicação e ficou conhecido por apresentar o programa “Rodas e Mo­tores” na TV. Tem paixão pelo automobilismo e conhece o tema como poucos da área no Brasil. Acom­panhou as obras de reconstrução do Autódromo de Goiânia e é definitivo ao dar seu parecer: “Foi um trabalho de arte.”

Ele detalha o passo a passo da obra. “O critério aplicado para refazer a pista foi excepcional”, resume. Primeiramente, foi feita a retirada total da manta antiga de asfalto. Ficou somente a velha e boa base original. A seguir, os técnicos fizeram a pesquisa das fissuras existentes na base e as preencheram. Depois, uma estrutura em tela — que Fernando chama de “geogrelha” — foi implantada por cima. Sobre isso, uma primeira camada de asfalto, de três centímetros.

Um detalhe interessante que Fernando ressalta: a máquina que passou o asfalto, em três faixas, tem um sensor ótico programado para medir o nivelamento superior da massa, de forma que, mesmo com alguma ondulação abaixo, a parte superior esteja sempre do mesmo nível. “O sensor não permite que na superfície haja uma parte mais alta ou mais baixa de asfalto”, informa.

As três faixas de massa asfáltica são feitas a quente, uma logo de­pois da outra, para evitar o desnível. Na aplicação da última camada, é inserido um composto químico que vai reagir com a massa e gerar uma espécie de amálgama. “É co­mo uma cola Super Bonder”, simplifica Campos. Após isso, a pista deve ficar em “repouso absoluto” durante semanas, em um processo necessário de maturação. “Nesse período, não pode andar nem mosca nele”, brinca o jornalista.

O decano jornalista mostra-se satisfeito com o que foi feito, em relação principalmente ao que exigem os circuitos modernos e comparado ao que havia sido executado nas reformas “batom”. Em suma: no novo circuito houve a busca pelo cumprimento de todas as normas da Federação Internacional de Automobilismo (FIA). E Campos, que acompanhou todas as peripécias dos 40 anos do Autódromo Internacional de Goiânia, suas glórias e seus dramas, aposta agora todas as fichas. “É simples. A base que sustenta toda a pista é muito boa, semelhante à das autopistas alemãs. É o que possibilita não ter tanta dúvida de que, executado como ocorreu, terá tanta qualidade quanto a pista de Interlagos, por exemplo.” Aí, sim, a autoestima do goiano — que é brasileiro e precisa disso — vai começar a galgar degraus mais altos, de novo pelo esporte. Faltará então o também quase quarentão Serra Dourada voltar a ser o que um dia foi.