Médicos têm “pé atrás” com a pílula do câncer
02 abril 2016 às 10h05
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Medicamento tem causado polêmica e poderá ser liberado, mas antes precisa ser sancionado pela presidente Dilma Rousseff
Yago Sales
E se você fosse diagnosticado com câncer? Sim, uma daquelas doenças que o torna uma pessoa emagrecida, debilitada, sensível ao ar-condicionado, ao sol, dependente de quimioterapia e radioterapia, cuja radiação faz o cabelo e os pelos do corpo caírem, o privando de tudo. Preso a uma cama ou a uma cadeira de rodas, rodeado de pessoas com pena de você.
Claro, nem todos os pacientes diagnosticados com câncer chegam ao estado descrito acima, mas a indagação faz sentido quando a discussão do câncer está tão em voga. Afinal, com a possibilidade de uma doença tão grave atingir grande parte de nós — algo que já acontece —, bate o desespero. Está aí um dos motivos de a temática ser debatida nesta reportagem, pois o desespero justifica a mobilização de pacientes em busca de outra alternativa para o tratamento do câncer, a fosfoetanolamina sintética.
Certos de que os remédios convencionais não estão funcionando, apenas privando-os de viver melhor, são encorajados a buscar a pílula que tem a promessa de curar o câncer.
Alguns relatos revelam que a coragem de consumir uma substância desconhecida, sem a devida comprovação, veio depois de perceberem a proximidade da morte nos corredores de hospitais, sob a olhadela definitiva de oncologistas acostumados a perder pacientes: “Não tem mais jeito. Só um milagre”. Para alguns, só a fosfoetanolamina sintética. Essa droga, mote para sucessivos debates, que até ano passado se limitavam aos bastidores da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, acabou alcançando o Senado Federal e, na semana passada, a mesa da presidente Dilma Rousseff . Caberá a ela sancionar, ou vetar, a distribuição do medicamento. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) chegou a recomendar à presidente que vetasse a fabricação, distribuição e o uso da fosfoetanolamina.
De um lado, a ciência, com seu ceticismo e ética, baseada em protocolos; do outro lado, decisões politiqueiras, motivadas pela emoção delirante e oportunista; no meio, a esperança de quem vive sob a promessa de vida por meio da pílula. O que se sabe é que milhares de pacientes, diagnosticados com algum dos inúmeros tipos de câncer, testemunham a cura ou dizem que a droga reduziu dores antes controladas apenas com morfina.
A reportagem percorreu hospitais conhecidos pelo tratamento do câncer em Goiânia e entrevistou especialistas. Em conversas permeadas pelo tom cético, alguns médicos foram categóricos: “Essa droga não funciona”. Um deles: “Parece que funciona”. Outro: “A gente respeita”. Todos, no entanto, são unânimes: é preciso bom senso. A substância tem que ser submetida aos crivos de pesquisa para ser creditada tanto pela ciência quanto pela indústria farmacêutica.
“Parecer bom”, mas…
O diretor clínico e neuro-oncologista Sandoval Inacio Carneiro, do Instituto de Neurologia de Goiânia, conta que, depois de decisão judicial, teve de assinar receita com pedido da fosfoetanolamina para um paciente. A médica oncologista do paciente não quis arriscar. No código de ética dos médicos é vedado ao médico no artigo 124: “ Usar experimentalmente qualquer tipo de terapêutica, ainda não liberada para uso no País, sem a devida autorização dos órgãos competentes”. O médico lembrou-se disso quando uma liminar judicial o obrigou a assinar a receita. “Como diretor clínico, tive de receitar, mas no prontuário escrevi que prescrevia sob mandado de Justiça, senão ia preso ou pagaria uma multa de 20 mil ao dia”. Sobre o paciente, o médico lembra que a expectativa de vida era mínima, mas demorou a falecer. “Efeito oncológico não vi nenhum, mas parece que funciona”.
Ele observa que a fosfoetanolamina está pulverizada, sendo usada para câncer de mama, câncer de pele, câncer de próstata. “Existe outro remédio que trata todos? Não. Ela é específica para quê? É para câncer de fígado?”. Sandoval critica o fato de a droga nunca ter sido testada em humanos e emenda: “Por que os grandes pesquisadores foram embora do Brasil? Nossa legislação é muito rígida. Temos protocolos muito burocráticos. Mas por outro lado evita exageros”. O médico gostaria que duas perguntas fossem respondidas: qual será o órgão que essa droga trata? Tem um real teste de eficácia? “Ela é usada como droga de primeira linha? Ela é usada como droga de resgate, ou seja, uma nova tentativa? É para fígado, pulmão, mama, próstata, osso? Com metástase ou sem metástase? A pílula está pulverizando. Parece que é bom. Parece”.
Prescrição
Renato Sampaio Tavares, chefe do serviço de hematologia e oncologia do Hospital das Clínicas (HC) e professor de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG) é categórico: “A liberação por parte da Justiça é um absurdo. Ela deu liminares favoráveis e ficamos sem entender como se chega à liberação de um medicamento assim”.
O oncologista conta que pacientes o procuram para entender como funciona e se a capsula é segura. Sem estudos, ele só sabe que não tem à disposição as pílulas. “Eu jamais vou prescrever este medicamento sem liberação, já que ele pode matar o paciente”. Ele ainda afirma que não existe uma droga para tratar o câncer, existem tratamentos para cânceres diferentes. O médico afirma que o remédio “pode ser o melhor medicamento do mundo, mas pode ser um veneno.” Para ele, a fosfoetanolamina é a mesma coisa de dizer ao paciente: “Você tem câncer em estado terminal, então comece a tomar água com açúcar três vezes ao dia”.
Oncologista do Hospital Araújo Jorge, Antônio Paulo Machado Gontijo não abre mão que a droga passe pelas fases de pesquisas para ter legitimidade. “A fosfo não tem nenhuma fase científica, como que se pode discutir isso? A gente respeita, como respeitamos o João de Deus e muitas coisas da natureza. Só podemos discutir sobre essa droga depois de pesquisas”, argumenta.
Será que Dilma se sensibiliza?
Na internet, em contraste com imagens de “Fora Dilma” e “Não vai ter golpe”, o pedido “Sanciona Dilma” se propaga, em páginas e perfis de pacientes com câncer e familiares, a favor da fosfoetanolamina.
Vídeos, como o de uma mulher com um lenço florido envolto na cabeça e olheiras ao redor de olhos amarelados, repercutem, com o intuito de sensibilizar a presidente, que também sofreu de câncer em 2009, quando era ministra-chefe da Casa Civil no governo Lula. O câncer atacou o sistema linfático de Dilma, o que a levou a sessões de quimioterapia em abril daquele ano. Ela viveu na pele o tratamento rigoroso ao ser internada no Hospital Sírio-Líbanês e, à época, precisou raspar o cabelo e usar peruca (veja foto).
A mulher ajeita os ombros diante da câmera trêmula. Ao fundo, um retrato dela antes de ter sido acometida pela doença. O vídeo, acredita, é o canal que a leva até a presidente. Uma respiração de três segundos e, “Dilma”, silencia. O vocativo sai milagroso e é sucedido por um sorriso forçado. “Dilma, me ajuda a viver”.
Caso aprovada em caráter de excepcionalidade, a substância será produzida, importada, prescrita e consumida sem depender do registro da Anvisa. Isso, até que os estudos fiquem prontos. Porém, a agência é enfática em uma nota divulgada no site: “Os desenvolvedores dessa substância nunca procuraram estabelecer um processo produtivo em fábrica legalmente estabelecida e certificada para operar com qualidade”.
Por que não desistiu?
Se o repórter conseguisse falar com Gilberto Chierice, de 72 anos, por pelo menos um minuto, faria a pergunta acima. Por quê? Aquele que é o precursor da fosfoetanolamina no Brasil, o químico aposentado do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da Universidade de São Paulo (USP), talvez tivesse reavaliado o que disse à edição especial da Revista Superinteressante número 100, há 20 anos: “É no Brasil que quero continuar a produzir. Gosto daqui e acho que não consigo trabalhar em outro país.”
A revista reuniu nomes que tinham sido responsáveis, até aquele ano, em 1996, por dar orgulho ao Brasil na ciência. Ele criou uma especie de plástico que revolucionou a fabricação de próteses, e até na recomposição de ossos.
O pesquisador, na semana passada, precisou comparecer à delegacia para prestar esclarecimentos, depois de uma representação criminal feita pela Procuradoria Geral da USP. O crime: charlatanismo.
O cientista, ao lado de curandeiros, é acusado de ser um impostor ao comercializar os medicamentos e enganar pessoas. “Como o médico indicava e o paciente estava melhorando, eu pensei: que mal haveria em dar”, disse ao jornal Folha de S. Paulo na edição do dia 3 de março deste ano.
Ele disse em entrevistas que o valor unitário da pílula não passa de 10 centavos. Pelo menos 16 mil pacientes tiveram contato com a fosfoetanolamina, de graça, durante duas décadas em um saquinho transparente, sem bula, data de validade, com 60 cápsulas nas cores azul e branca. A USP publicou, em 2014, uma portaria proibindo a distribuição das cápsulas que só podem ser entregues sob ordem judicial.
Pílula esbarra na ética e na moral
“É imoral privar do tratamento, mas é antiético usar medicamento que pode causar problemas”. A frase é do médico pesquisador do Instituto de Estudos e Ciências Farmacêuticas (ICF) e do Instituto de Neurologia de Goiânia (ING), Alessandro Stival, que estudou Medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Alfenas e concluiu especialização em pesquisa pela Faculdade de Medicina de Emory University, nos Estados Unidos e tem se debruçado para pesquisar obesidade e diabetes.
Em dois encontros com a reportagem, ele explicou ao Jornal Opção o passo a passo que obedece aos crivos da Anvisa, órgão regulador responsável por liberar medicamentos no Brasil.
De cara, reconhece que “o detalhe é o problema gigantesco que é o câncer e, de repente, surge uma pílula com expectativa de cura”.
Para ele, o maior problema é que a pílula e o tratamento nem um pouco convencional fogem ao trâmite correto, científico. “Só depois de realizar estudos necessários, será possível entender a eficácia”, diz.
Para a análise de um remédio novo, é preciso um estudo clínico de efeitos. A primeira é a pré-clínica — onde são aplicados testes em animais, depois de identificados em experimentação in vitro (simulações) como tendo potencial terapêutico. Dependendo do resultado, a substância não é aplicada nem em animais.
Segundo o pesquisador, 90% das substâncias estudadas na fase pré-clínica são eliminadas antes mesmo de serem testadas em humanos: ou porque não demonstram suficiente atividade farmacológico-terapêutica ou porque são excessivamente tóxicas a humanos.
Segurança
Caso o estudo avance desta etapa, na fase I, será realizada uma avaliação inicial em humanos, de 20 a 100 voluntários. Pessoas saudáveis são usadas nos testes porque, por exemplo, o organismo do paciente de câncer já está debilitado. Nessa etapa se escolhe indivíduos saudáveis para ver quais efeitos o composto dará. “Não se busca na fase I a cura do câncer, por exemplo, mas resultados que comprovem que a substância não faz mal à saúde. Na fase I, verifica-se a segurança do remédio, a maior dose tolerável, a menor dose efetiva”, explica. Nessa fase, é com um pequeno número de pessoas voluntárias e sadias, que se detecta os efeitos colaterais e a duração do efeito do remédio.
Na fase II, denominada “Estudo Terapêutico Piloto”, os primeiros estudos controlados em pacientes, para demonstrar efetividade potencial da medicação, exige uma participação de pelo menos 100 voluntários potencialmente doentes. Nesta etapa é possível, depois de indicação de eficácia, confirmar a segurança do medicamento e, ainda, comprovar a disponibilidade da substância no organismo do paciente. “Aqui é feito a biodiversidade para ver quanto da substância fica no sangue. Muitas vezes é metabolizado tão rápido que não fica nada biodisponível. Não é só ver se fica disponível, mas por quanto tempo”. É nessa hora que o remédio deve ser estabelecido; se o medicamento deverá ser ingerido de oito em oito horas, doze em doze horas, para garantir a biodisponibilidade. Ainda é importante saber se há bioequivalência, isto é, se o medicamento é compatível com outros medicamentos.
Efeito placebo
Na fase III é necessário fazer testes em países diferentes para tentar atingir todo tipo de paciente, visto que cada país possui suas particularidades. “Esta é uma fase muito avançada, com volume de pacientes muito maior. Geralmente são estudos internacionais, em larga escala. Nessa etapa, chegam a ser experimentados 10 mil pacientes”. Isso, para evitar parcialidades no estudo que pode gerar efeito positivo em alguns tipos de pacientes e em outros, não. O estudioso alerta que alguns estudos podem surtir efeito em grupos menores, onde há pacientes predispostos, ou não, em determinadas doenças, enquanto que em outros grupos isso é nulo. Nessa fase é definido também se a medicação será oral, injetada ou inalatória. “Outro aspecto importante são os resultados de risco/benefício. Às vezes, é bom para uma coisa, mas para outras é maléfico. Os efeitos colaterais, as contraindicações… Por isso existem os órgãos reguladores”. É nesta etapa que se encontra informações para compor a bula. Aqui o medicamento testado é comparado com outro medicamento ou o placebo, uma pílula sem efeito, sem químicos.
A substância passa por um verdadeiro funil, mas o resultado se amplia, delimitando, por exemplo, qual a idade que o remédio pode ter melhor resultado. Ao término dessa etapa, o remédio pode ser aprovado; ou não.