Marina pode ser um Collor de saias. E isso não é necessariamente um demérito
23 agosto 2014 às 10h12
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A candidata do PSB encarna um sentimento latente de intransigência. Seus eleitores veem nela a possibilidade de fazer com que tudo se reorganize de forma diferente — ainda que o País tenha de passar pelo caos
Elder Dias
Logo após a morte trágica de Eduardo Campos, além das muitas bobagens que circularam pelas redes sociais — que se encheram de especialistas em acidentes aéreos e teóricos da conspiração —, houve uma ressonância que faz algum sentido, embora não “feche” completamente: uma comparação de sua desventura com uma outra triste história da República, a morte de Tancredo Neves. Algo que vai depois desembocar em outra analogia: a trajetória de Fernando Collor e um caminho imaginado para Marina Silva.
Presidente eleito pelo colégio eleitoral em janeiro de 1985, depois da derrota da emenda das Diretas, Tancredo seria empossado em 15 de março daquele ano como o primeiro presidente civil desde 1964, mas foi internado às pressas na véspera e morreu em 21 de abril. Houve uma comoção nacional como em poucas vezes no Brasil. Mas o que há de comum entre Tancredo e Eduardo é mais do que a tragédia de morrerem na corrida para se tornarem presidentes — o mineiro, que foi contemporâneo político do avô de Campos (Miguel Arraes), já eleito; e o pernambucano, em campanha, disputando voto com o neto de Tancredo (Aécio Neves). O que une o avô de Aécio e o neto de Arraes é o discurso moderado, conciliador, sem ímpetos. Faziam política com cafezinho.
No lugar de Tancredo assumiu José Sarney. O que teria sido um governo Tancredo Neves virou suposição, e o País enfrentou tempos de congelamento de preços, Cruzado e outros planos mirabolantes para controlar uma inflação cada vez mais anabolizada. A coisa chegou a tal ponto de desgoverno que facilitou a chegada ao poder de Fernando Collor, eleito mais por ser um “caçador de marajás” do que por qualquer proposta que tivesse.
A eleição presidencial mais entusiasmante da história do Brasil — e também a mais recheada de candidatos — mostrou que o brasileiro queria algo totalmente diferente do stablishment político de então. Candidaturas dos políticos tradicionais — como Ulysses Guimarães (PMDB), Aureliano Chaves (PFL), Paulo Maluf (PDS), Mário Covas (PSDB) e Leonel Brizola (PDT) — ficaram para trás e o segundo turno foi disputado sob o discurso moralista de Collor e a verve revolucionária de Luiz Inácio Lula da Silva. De um lado um partido nanico (PRN), que nada mais foi do que um invólucro para a candidatura de Collor; do outro, o PT, então uma sigla de esquerda e uma temeridade depois de apenas quatro anos do fim de um regime militar iniciado com o objetivo de deter o comunismo no Brasil. No meio de tudo isso, a queda do Muro de Berlim, exatamente em novembro de 89.
Collor venceu, muito por estar ancorado no medo do brasileiro médio de ver suas economias serem tragadas pela ameaça vermelha que Lula e o PT representavam. Ironia (ou não): uma das primeiras medidas do novo presidente, um dia depois de tomar posse com a missão de salvador da pátria, foi confiscar a poupança. Ainda que, depois de mais de 20 anos de Plano Real, o julgamento sobre a medida tenha de ser amenizado (havia correntes de economistas e pesquisadores que à época avaliavam que seria algo necessário), sob o contexto da hiperinflação do governo Sarney, foi sem dúvida algo esdrúxulo.
Arroubos de alguém que apenas chegava aos 40 anos e pegava a faixa presidencial? O presidente era jovem, mas ainda mais exótico do que jovem. Collor gostava de se mostrar atlético, colocava dizeres nas camisas que vestia ao praticar exercícios. Por pouco, um playboy. Também continuava — como se ainda estivesse em campanha — com pouca paciência ao responder adversários ou mesmo ao ouvir aliados com críticas construtivas ou opiniões diferentes. Apesar de ter construído um grupo razoável na Câmara e no Senado, ligado principalmente a partidos como PFL, PTB, PL e o seu PRN, e sua base ter vencido as eleições de 1990 na maioria dos Estados, o presidente tinha uma relação muito difícil com o Congresso Nacional. Um adjetivo bem apropriado para Collor seria “arrogante”. A aura de moralista que o mantinha com alguma popularidade mesmo após seus planos econômicos ruiu após as denúncias de seu irmão Pedro Collor, que redundaram no caso PC Farias, o tesoureiro de eleição e personagem central de escândalos de milhões de dólares durante o governo. A imprensa publicou as histórias, as pessoas foram para as ruas com as caras pintadas, mas o Congresso poderia ter salvado Collor. Isso se ele não tivesse instabilizado sua relação com o Legislativo.
Com o impeachment, subiu ao Planalto outro vice, Itamar Franco, que soube fazer seu papel e conduzir o Brasil com uma equipe recheadas de nomes respeitáveis nos ministérios, como Jamil Haddad (Saúde), Antônio Houaiss (Cultura), Maurício Corrêa (Justiça) e a maior estrela, o intelectual e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda. Foi concebido o Plano Real, que, por sua consistência na leitura do mundo e da economia, gerou a estabilidade que elevou o ministro a presidente.
O Brasil de Marina
Voando duas décadas no tempo, chegamos a 2014 com um Brasil bem diferente: inserido no mundo globalizado, com inflação (ainda) sob controle, maior poder de compra e consumo, mas também problemas crônicos. Educação ruim, aumento da violência, corrupção desenfreada. Em meio a isso, vem nova sucessão presidencial, com um partido que está no poder há três mandatos e outro que esteve por lá nos dois anteriores.
Marina Silva é, agora, a terceira via. Em um cenário convencional, ela tinha tudo para ser a anticandidata. Ninguém lhe nega o carisma que possua: é uma mulher de luta, que se criou politicamente com o trabalho junto aos movimentos sociais, encarnou o espírito do PT e teve como mote uma questão premente para o Brasil, a causa do meio ambiente.
Mas somente isso não faria dela nada mais do que uma deputada federal, talvez senadora (como foi) de um Estado periférico. O que, então, Marina Silva — hoje não mais uma militante aguerrida da terra de Chico Mendes, mas sim uma senhora evangélica com discurso de sustentabilidade — traz em si para, da noite para o dia, conseguir fazer com que quem estava indeciso ou disposto a anular seu voto mudar de ideia e indicar para ela sua preferência eleitoral?
O voto em Marina, pelo menos nesse primeiro momento, continua a ser o voto do “não”. Quem é eleitor de primeira hora dela, por sua trajetória de vida pública, pode ficar horrorizado com isso, mas é a verdade: a acreana que agora toma as rédeas do espólio de Eduardo Campos no PSB é, hoje, o depósito de uma espécie de voto de protesto.
Isso pode, em princípio, não ser agradável aos aliados, mas não significa, em si, um demérito. Como também não é demérito compará-la, neste momento, a Fernando Collor de Mello, hoje “apenas” um senador da República por um partido convencional, o PTB.
O fato de Marina Silva, mesmo ainda não lançada oficialmente como candidata substituta, já na primeira pesquisa superar em intenções de voto o até então vice-líder da corrida eleitoral, Aécio Neves (PSDB), mostra que entraram no jogo os descontentes com a política tradicional. Está de volta o espírito adormecido das ruas. Isso não é nenhuma novidade em termos de análise do quadro. Mas o fato é que, assim como Collor representou a esperança de milhões de brasileiros em 1989, Marina agora é porta-voz da desesperança de outros tantos agora.
Os principais analistas políticos acham que ainda é muito cedo para avaliar as consequências da mudança brusca do cenário eleitoral, mas se mostram um tanto reticentes quanto à sustentabilidade dos índices da socialista. Creem que são grandes as chances de eles arrefecerem nas próximas semanas, tanto pela menor estrutura diante de PT e PSB quanto pela mudança do estado de ânimo da população.
Há, porém, razões para não estar tão seguro de que será exatamente assim. É que Marina tem outra semelhança com Collor: ela também apresenta um alto grau de intransigência em seu pensamento. Ao contrário do ex-presidente, ela é “low profile”, não busca tanto os holofotes. Mas, quando está debaixo deles — afinal, ela tem seu carisma e eles a buscam —, mostra que não está na política para abrir mão de suas convicções e dar uma declaração mais direcionada à imprensa ou para agregar um grupo com o qual ela não tenha uma afinidade de origem. Marina não faz política para agradar a ninguém e, por isso, nesse sentido, está no córner oposto ao em que estão figuras como os aqui já citados Tancredo Neves, Lula (que só obteve sucesso ao trocar o estilo “sapo barbudo” pelo “paz e amor”) e aquele que foi seu cabeça de chapa, Eduardo Campos.
É aí que entra uma questão importante: até que ponto a intransigência de Marina, eleitoralmente, será vista de forma negativa? Se os eleitores estavam tão desmotivados para votar ou em Dilma ou em Aécio Neves ou em Eduardo Campos — que só ganhou verdadeira atenção das pessoas após sua morte, é bom lembrar — isso tinha um motivo de ser. Assim como em 2010, o “fenômeno Marina”, como ficou conhecida a ex-petista após seus 20 milhões de votos, queria dizer alguma coisa.
Ora, se era a insatisfação com o status quo da política e do País o que teria dado tais números a Marina, o que melhorou nestes quatro anos? Pelas jornadas de junho do ano passado, parece que, se houve mudanças, não foi para melhor. Pelo contrário, a rejeição à política e aos políticos parece ter aumentado e ainda ecoam os gritos de “sem partido, sem partido!” do meio das multidões nas avenidas das grandes cidades brasileiras.
Marina encarna esse sentimento de intransigência. O voto nela é, sim, um voto moral, acima de tudo, até porque o brasileiro médio nunca foi de se preocupar tanto com o meio ambiente, sustentabilidade e as outras bandeiras que a idealizadora da Rede sempre defendeu. O que os eleitores veem nela é a possibilidade de fazer com que tudo se reorganize de forma diferente, nem que para isso tenha o País de passar pelo caos.
O fato de ser, então, uma versão feminina de Fernando Collor não é um entrave ao crescimento de Marina. As próximas pesquisas podem ditar o rumo para onde irá sua candidatura, se alçará voo de águia ou voo de pato. O que não dá para negar — e disso tanto Dilma Rousseff como Aécio Neves sabem muito bem — é que a presença de Marina no quadro eleitoral causou um impacto não previsto.
O reaparecimento de Marina Silva na cena antecipou o aquecimento do debate. Catalisou a eleição. Nas redes sociais e nas conversas via celular, em diálogos ou em grupo, as pessoas passaram a discutir os efeitos da novidade e os rumos da política. O quanto isso afetará o resultado nas urnas ainda é uma incógnita.